O ‘não’ de Dilma a Obama

                                                                       
                                                        
Eric Nepomuceno

Não há antecedentes de que um convidado suspendesse uma “visita de Estado”, e ao fazê-lo a presidente do Brasil mostra a gravidade da situação. A Casa Branca insinuou que manterá o sistema de vigilância apesar do escândalo.

A única concessão de Rousseff foi aceitar que se divulgasse que a decisão foi adotada juntamente com Obama.

Sem surpreender ninguém, a presidente Dilma Rousseff anunciou formalmente que suspendeu a visita de Estado que realizaria a Washington no final de outubro. Claro que, na formalidade, houve que incluir certas mesuras diplomáticas. Assim, oficialmente a visita não foi suspensa, mas postergada, e não se tratou de uma decisão de Brasília, mas da conclusão a qual chegaram, em comum acordo, Dilma e seu frustrado anfitrião, Barack Obama, em uma ligação telefônica na tarde da segunda-feira.

Como em toda mentira, há, nessa, algo de verdade. Solícito, Barack Obama efetivamente ligou para Dilma no entardecer de segunda-feira. Lançou um chamamento para que a visita não fosse cancelada. 

A mandatária brasileira, em todo caso, se mostrou inflexível: sem que se esclarecesse a questão da espionagem que alcançou seus telefones (fixos e móveis, institucionais e pessoais) e seus correios eletrônicos, sem a garantia de que essa espionagem seria suspensa de imediato, sem um pedido público de desculpas, não havia clima algum para a visita. Quando se diz que ao anunciar que a viagem estava cancelada Dilma não surpreendeu ninguém, isso inclui Obama.

Haverá novas medidas, que respondem não só à irritação pessoal da presidenta brasileira, mas também à gravidade do acontecido. Na nota em que se anuncia a suspensão da visita de Estado, fica dito que “as práticas ilegais de interceptação das comunicações e os dados de cidadãos, empresas e membros do governo brasileiro constituem um fato grave, atentatório à soberania nacional e aos direitos individuais, e incompatível com a convivência democrática entre países amigos”. Mais claro, impossível.

Desde que explodiu o escândalo e ficou patente o mal-estar brasileiro, a Casa Branca tratou de matizar o tema. Mas ao mesmo tempo, e em uma atitude insólita, Washington insinuou, sem explicitar, que manterá o sistema de espionagem, como se fosse algo natural. Ontem, em sua nota anunciando a “postergação” da visita, a Casa Branca disse que Obama procurará “um caminho diplomático”, juntamente com Dilma, “para solucionar o incômodo mal-estar provocado na relação bilateral”.

Há um detalhe importante nesta história. De acordo com a hierarquia do cerimonial da Casa Branca, uma coisa é uma visita oficial – Dilma já realizou uma, Lula fez várias – e outra, muito mais categorizada, é uma “visita de Estado”. O mais visível dessa hierarquia é que uma “visita de Estado” inclui uma janta de gala na Casa Branca e uma cerimônia militar de recepção ao visitante. O último presidente brasileiro a ser agraciado com esta honra foi Fernando Henrique Cardoso, há quase vinte anos. Dilma seria a única “visita de Estado” prevista para 2013.

Não há antecedentes de um convidado que tenha suspendido esse tipo de viagem. Por mais que se trate de filigranas diplomáticas, a medida da presidenta brasileira mostra a gravidade da situação.

Não se trata, nem de longe, de uma decisão intempestiva, nascida sobre a base de um humor de momento. Foi uma resposta meticulosamente estudada e debatida com a cúpula da diplomacia brasileira e com o mais restrito círculo de assessores e conselheiros de Dilma Rousseff. O próprio Lula, que em um primeiro momento se mostrou mais inclinado a uma posição dura, mas não extrema, respaldou a decisão de suspender a viagem.

É, em suma, um gesto contundente. A única concessão de Brasília foi aceitar que se divulgasse que a decisão foi adotada juntamente com Barack Obama e que, em lugar de uma suspensão, se trata de uma postergação.

Os Estados Unidos continuam sendo o principal sócio comercial do Brasil. Pode ser que a decisão de Dilma provoque críticas por parte do empresariado brasileiro. Entretanto, cancelar a viagem não trará nenhuma consequência negativa. Na agenda da visita de Estado não havia nada específico ou relevante. Ninguém esperava algum anúncio significativo no campo dos investimentos, ou de novos acordos tarifários, e menos ainda alguma novidade no vasto campo da cooperação bilateral.

Estaria, claro, o peso simbólico da visita e talvez algum sinal de que, como sobremesa à ceia de gala, surgissem indicativos de avanços em questões pendentes entre os dois países, muito especificamente em aspectos do comércio bilateral. Nada, em todo caso, que não possa continuar sendo negociado e discutido pelas vias naturais da diplomacia.

Uma visita de Estado seria, principalmente, um gesto político de ambos os governos. Dilma concluiu que não é o momento apropriado.

Ao contrário: muito mais positivo seria outro gesto político, ou seja, dizer a Washington que para tudo existe algum limite nesta vida e neste mundo.

Que ninguém se surpreenda se em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, daqui a poucos dias, Dilma volte ao tema para criticar muito duramente as ações invasivas da Casa Branca. O tema não está fechado com a suspensão da visita.

Eric Nepomuceno, para o Página/12 

Tradução: Liborio Júnior (Com o Diário Liberdade)

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