COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE


                                     
                                   
O delegado Calandra, o "Capitão Ubirajara" ( de costas) depõe na CNV
                                           
Maria Amélia diz ter sido torturada

 Delegado que atuou no Doi-Codi se contradiz



O delegado aposentado da Polícia Civil Aparecido Laertes Calandra (o "Capitão Ubirajara") cumpriu a convocação da Comissão Nacional da Verdade e prestou depoimento hoje de manhã à CNV. Ouvido após sete ex-presos políticos testemunharem, o ex-agente, que serviu no Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), do II Exército, em São Paulo, onde ele afirma ter trabalhado oito anos, e também no Dops, caiu em diversas contradições ao ser confrontado com documentos que comprovam que ele atuou na linha de frente da repressão política.

Acompanhado de seu advogado, Paulo Esteves, Calandra respondeu às perguntas formuladas pelos membros da CNV Pedro Dallari (coordenador) e José Carlos Dias. Perguntado se havia trabalhado no Doi-Codi, Calandra primeiramente negou, dizendo que trabalhava como assessor jurídico do 2º Exército, entretanto, ao ser confrontado com vários documentos assinados por ele (veja foto), quando trabalhava no Doi-Codi, o ex-delegado disse que trabalhou 8 anos naquele centro de tortura, mas que era um burocrata.

Questionado mais de uma vez sobre o que era exatamente a sua função de assessoramento jurídico no Doi-Codi, Calandra disse que confeccionava autos de apreensão, requisições diversas. Ao ser confrontado com o teor de sua ficha funcional da Polícia Civil , a qual registrava ofício do 2º Exército, datado de 14 de abril de 1977, elogiando-o por "eficiência e dedicação, na execução das mais diversas atividades, durante o ano de 1976, visando à consecução dos objetivos propostos no combate à subversão e ao terrorismo, como integrante do Sistema de Informações do 2º Exército", o ex-delegado disse que estava sendo elogiado por sua atividade burocrática.

Indagado como ele poderia afirmar que estava sendo elogiado por "combate à subversão e ao terrorismo" atuando apenas burocraticamente, Calandra voltou a negar que tenha torturado pessoas ou desrespeitado direitos humanos, seja quando trabalhou no Dops ou no Doi-Codi. Ele afirmou também nunca ter visto ou ouvido torturas e que nunca foi conhecido como capitão Ubirajara. E atribui a engano os fatos de que é acusado: "Atribuo isso a engano pessoal das pessoas que estão fazendo as acusações", disse.

Para os membros da CNV, Pedro Dallari e José Carlos Dias, o depoimento de Calandra "não é crível". "Não é crível que o senhor não tenha tido contato com qualquer pessoa, ou não tenha tido nenhuma informação sobre o que se publica e o que notoriamente acontecia no Doi-Codi de São Paulo. Portanto, os esclarecimentos que o senhor poderia prestar seriam muito úteis à comissão. Por razões que só o senhor sabe avaliar, o senhor está tomando outra opção, que nós temos que respeitar, porque vivemos num estado de direito", afirmou Dallari à Calandra no final da audiência.

VÍTIMAS – Antes de Calandra, a CNV ouviu os depoimentos de cinco ex-presos políticos: da assessora da Assembleia Legislativa de São Paulo Maria Amélia Almeida Teles; do vereador paulistano Gilberto Natalini, presidente da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog; da aposentada Darci Miyaki; do jornalista Sérgio Gomes e do deputado estadual Adriano Diogo, presidente da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva. A CNV exibiu também vídeos com depoimentos de outros dois ex-presos: o deputado federal Nilmário Miranda  e o jornalista Artur Scavone , gravados, respectivamente nos dias 9 e 10 de dezembro.

Nos depoimentos, os presos políticos foram categóricos em afirmar que Calandra participou das torturas e outras sevícias no Doi-Codi e que ele era uma figura entre os agentes da repressão daquele centro de tortura que perdia em importância apenas para Ustra. "Ele era do segundo nível da cadeia de comando", afirmou Adriano Diogo, que disse categoricamente que Calandra torturou sua esposa, na ocasião em que o casal foi preso, em março de 1973.

"Sua especialidade era a humilhação. Gostava especialmente de torturar mulheres. Ele torturou minha mulher", disse o deputado.

Darci Miyaki afirmou que foi violentada várias vezes no Doi-Codi de São Paulo e que sofreu choques nas suas partes íntimas. "Não dá para descrever, um torturador enfiar um fio na sua vagina, na sua parte mais íntima. Me tornei uma mulher estéril. O ato sexual, depois de tudo isso, se tornou algo muito estéril pra mim", afirmou a militante, presa e torturada no Rio e depois transferida para São Paulo, onde também foi violentada. "A primeira coisa que fizeram comigo foi tirar a minha roupa", afirmou.

A aposentada afirmou que a violência sexual também se estendia aos homens. "O Ubirajara (Calandra) entrou na minha cela e disse: 'o Helcio está sendo empalado'", contou Darci. Helcio era Helcio Pereira Fortes, preso também no Rio, e assassinado no Doi-Codi de São Paulo em janeiro de 1972.

Gilberto Natalini e Nilmário Miranda contaram que foram torturados pessoalmente por Calandra. "Numa das sessões de choque e espancamento, os torturadores se revezavam na máquina de choque, Calandra entre eles", afirmou Natalini.

Miranda disse ter sido interrogado com o uso da cadeira do dragão, cadeira de metal ligada a eletrodos por Calandra. "Aquilo era para machucar, para desestabilizar, para demonstrarem que têm poder sobre seu corpo. Tentar te intimidar", afirmou.

Amélia Teles emocionou-se ao lembrar de sua prisão com o marido e o militante comunista Carlos Nicolau Danielli, assassinado no Doi-Codi de São Paulo, sob tortura. O coronel Ustra sequestrou os filhos de Amélia, então com 4 e 5 anos na época e os levou até a sala onde ela e o marido eram torturados, nus, com choques elétricos pelas equipes do Doi-Codi. "Eles perguntaram: mãe, porque você tá azul e o papai está verde", contou Amelinha.

Perguntada se havia sido torturada diretamente por Calandra, Amelinha não teve dúvidas. "Fui torturada e interrogada por ele. Pessoalmente", disse. A tortura aplicada, contou, foram choques elétricos durante interrogatório, ocorrido em 1973, na qual foi questionada sobre a esposa de Danielli.

O advogado José Carlos Dias avaliou a audiência como uma das mais importantes realizadas pela CNV. "Várias pessoas vieram contar os horrores que passaram lá. Uma mulher contou sobre a violência gratuita, inclusive contra o que é mais sagrado, que é a sua intimidade e ele nega tudo isso. É impossível. Os vizinhos ouviam os gritos e ele que estava lá não ouviu? É uma desfaçatez! Agora nós cumprimos o nosso dever que foi perguntar e demonstrar que vivemos em um Estado de direito e que damos todas as garantias, e que não vivemos mais na época da tortura", afirmou.

DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA

Na entrega da 19ª Edição do Prêmio dos Direitos Humanos, a representante do Movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, defendeu a desmilitarização da Polícia Militar. Segundo ela, não foi coincidência receber das mãos do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a estatueta do prêmio. "Essa justiça não aparece para nós", disse.

Débora recebeu o prêmio na categoria Enfrentamento à Violência, e discursou em nome dos 23 agraciados e dos dois premiados com menção honrosa.

"Quando a gente sente na pele o que é perder um filho, a gente também se põe no lugar das vítimas do passado, da ditadura militar, para a gente comemorar o fim dessa ditadura, a gente tem que desmilitarizar a polícia", disse, sendo aplaudida pelo público, estimado em 3 mil pessoas, presente ao evento.

Para a representante do movimento, uma democracia com uma polícia militarizada é uma "falsa democracia". Débora pediu à presidenta Dilma Rousseff, que participa da premiação, reparação pelos crimes cometidos durante maio de 2006.

O Movimento Mães de Maio é formado por mães que tiveram os filhos assassinados em ações de retaliação aos ataques da organização criminosa Primeiro Comando da Capital contra policiais militares e civis no estado de São Paulo, em maio de 2006.  De acordo com o movimento, na capital paulista e na Baixada Santista, cerca de 500 jovens foram mortos e as ações de retaliação tiveram a participação de agentes do Estado.

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