No Sudão do Sul, meninas são dadas a famílias como indenização por 'sangue derramado'

                                                                               

Miriam Gathigah| IPS/ Envolverde | Torit ( Sudão do Sul) - 18/07/2015 - 15h30

Violência de gênero: sul sudanesas têm três vezes mais probabilidade de morrer durante gravidez ou parto do que terminar ensino básico
      
A desigualdade de gênero no Sudão do Sul é tão extrema que uma jovem tem três vezes mais probabilidades de morrer durante a gravidez ou o parto do que terminar o ensino básico, segundo denúncia do Plano Internacional, uma das principais organizações mundiais dedicadas ao desenvolvimento da África.

Uma grande maioria das meninas desse país da África oriental sofrerá pelo menos uma forma de violência de gênero em suas vidas, mas as oriundas do Estado de Equatoria Oriental sofrem uma prática particularmente detestável, tradicional em ao menos cinco das 12 tribos locais: sua entrega em “indenização pelo sangue derramado”.
                                                                               John Robinson/IPS
Apenas 7% das meninas e mulheres jovens do Sudão do Sul terminam o curso primário, e apenas 2% chegam ao secundário
John Robinson/IPS
                                                                 
Apenas 7% das meninas e mulheres jovens do Sudão do Sul terminam o curso primário, e apenas 2% chegam ao secundário

“Quando uma pessoa mata outra, a família afligida espera que lhe deem ‘dinheiro de sangue’ como compensação pelo sangue derramado”, explicou à IPS Dina Disan Olweny, diretora da não governamental Coalizão de Organizações de Mulheres e Jovens do Estado. A maioria das tribos exige compensação quando se mata alguém em um dos conflitos habituais sobre gado e pastagens, assassinatos por vingança e outros motivos de atrito entre as aldeias.

Embora muitas tribos reclamem entre 20 e 30 cabras como indenização, Olweny contou que “a maioria das famílias não pode pagar ou não está disposta a fazê-lo, e preferem entregar suas filhas”. Segundo a especialista em proteção infantil Shanti Risal Kaphle, “uma menina é considerada uma mercadoria que pode ser dada em troca da perda da vida de alguém, ou como ‘dinheiro pelo sangue derramado’, para manter a família e a comunidade em paz”.

Kaphle explicou que a vida da menina é negociada “sem sua informação nem consentimento, e ela está sujeita a violência, abuso e exploração”. Essa prática não escapa da atenção do governo, que fixou em US$ 500 o valor pela indenização de uma vida, mas a população tribal ainda prefere receber uma menina como pagamento, argumentando que a quantia determinada pelo Estado é insuficiente.

Os especialistas dizem que uma menina também é preferida como compensação pelos familiares das vítimas porque dessa forma pode se casar com um dos seus sem que seja preciso pagar o dote, ou pode ser dada em casamento quando completar 12 anos e, em troca, a família recebe um rebanho de cabras.

Muitas das meninas entregues por esse conceito têm apenas cinco anos de idade. Espera-se que esqueçam suas famílias biológicas e comecem novamente, cortando todo contado com seus familiares naturais. Neste ponto suas vidas podem tomar um giro dramático para pior. Essas meninas podem ser “submetidas a trabalho infantil e abuso sexual, físico e emocional. Para fugir desse inferno, muitas preferem se suicidar”, denunciou Olweny.

Os sudaneses do sul dizem que as leis consuetudinárias que perpetuam e legitimam essas formas de abuso têm um papel fundamental na resolução dos conflitos, já que se considera um método barato e acessível, e as decisões são tomadas com base nos costumes com os quais estão familiarizados. Também se considera que as leis e as decisões consuetudinárias são mais amigáveis e demoram menos, segundo Kaphle.

Porém, essa prática é apenas mais um dos inumeráveis abusos que sofrem as meninas do Sudão do Sul. O Estado de Bahr El Ghazal Ocidental, por exemplo, tem a tradição que obriga muitas jovens a abandonarem seus estudos para se casarem precocemente. Linda Ferdinand Hussein, diretora da não governamental Organização de Mulheres para a Formação e Promoção, contou à IPS como funciona essa tradição.

               Miriam Gathigah/IPS           
                                                             
Dina Disan Olweny (foto), diretora da Coalizão de Organizações de Mulheres e Jovens do Estado, defende o fim das tradições danosas às meninas

“Quando a mulher de um homem morre por algum motivo, ele pode exigir a devolução do dote que pagou pela noiva, cujo valor é variável. Mas a maioria das famílias não está disposta a pagar, por isso dão ao homem uma das irmãs mais novas da falecida esposa, a título de indenização”, explicou.

Quatro anos depois da independência do Sudão do Sul, os especialistas em proteção da infância fazem soar o alarme. “A violência de gênero contra as meninas continua sendo cometida em uma diversidade de maneiras, tanto em tempos de paz como durante o conflito armado”, disse Hussein.

Um informe publicado dia 30 de junho pela Missão das Nações Unidas na República do Sudão do Sul revela que o Exército Popular de Libertação do Sudão e outros grupos armados associados empreenderam uma campanha de violência contra a população desse país, caracterizada por sua “brutalidade e intensidade”, a qual incluiu violação de meninas e jovens e sua posterior imolação dentro de suas casas incendiadas.

Um documento divulgado no ano passado pela organização humanitária Care, intitulado “A Menina Não Tem Direitos: A Violência de Gênero no Sudão do Sul”, destaca as injustiças que sofrem as meninas neste país. Segundo a organização Plano Internacional, 7,3% das meninas se casam antes de completarem 15 anos, e 42,2% terão se casado entre os 15 e 18 anos. 

Embora 37% se matriculem no ensino primário, apenas 7% concluem seus estudos e somente 2% avançam para o nível secundário.

* Texto publicado originalmente no site da Envolverde. (Com Opera Mundi)

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