Crise política e escalada do capital no Brasil (Este artigo - publicado na íntegra - é para ser cuidadosamente estudado. Vale a pena. José Carlos Alexandre)

                                                                               
Rosa Maria Marques e Patrick Rodrigues Andrade (*)

A crise política no Brasil insere-se na entrada, em força, do gigante sul-americano na crise estrutural do capitalismo após o período especulativo das commodities e, consequentemente, na impossibilidade do capital imperialista dito ocidental – o acobertado no chapéu norte-americano – resolver a crise a seu favor: a resolução de uma crise estrutural exige a alteração da estrutura…
É essa realidade cada vez mais evidente, somada à impossibilidade de esconder o envolvimento da generalidade dos eleitos numa corrupção crescente que fomenta na população uma desconfiança cada vez maior, mesmo em sectores da classe trabalhadora – aquela a que chamam classe média – que já apoiaram o “impeachment”…


Apresentação

Desde a reeleição de Dilma Rousseff, em outubro de 2014, o país viu-se emerso numa crise aberta. De fundamento aparentemente econômico, de início, rapidamente se configurou em crise política, o que resultou na abertura do processo de impeachment da presidenta eleita. E a despeito da abertura do impeachment, a crise política não parece estar resolvida, mesmo do ponto de vista dos “de cima”.

Os últimos “vazamentos” de conversas gravadas entre importantes membros do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), publicados no jornal a Folha de São Paulo, que envolvem, entre outros, o ex-presidente José Sarney e o atual presidente do Senado, é apenas um dos inúmeros indícios de que as classes dominantes não conseguiram, até o momento em que este artigo estava sendo finalizado, fazer um acordo que contemple seus interesses no plano da representação política. Se, por um lado, está claro qual é o projeto de sociedade que desejam implantar, o que exige completar as reformas neoliberais iniciadas nos anos 1990, por outro, não dispõem de um partido e de lideranças capazes de dirigir esse processo sem criar maiores instabilidades. E o fato de parte significativa dos deputados e dos senadores estarem envolvidos em processos em nada ajuda, fomentando a desconfiança, cada vez maior, junto a setores da classe média até então favoráveis ao impeachment, de que este foi em parte alimentado pelo compromisso assumido por grandes figuras da política, de dar um fim à “Operação Lava-Jato” [1], com vista a que essa não envolvesse os partidos da oposição e se restringisse ao Partido dos Trabalhadores (PT).

A instabilidade política é aprofundada pela ação dos trabalhadores, dos movimentos sociais e dos segmentos contrários ao impeachment que, desde o momento da votação da abertura de seu processo no Senado, têm realizado inúmeras manifestações em todo o país. Para o dia 10 de junho, está prevista uma grande manifestação unitária, chamada pela Frente Brasil Popular e pela Frente Povo Sem Medo [2]. Além disso, a ocupação de prédios vinculados ao Ministério da Cultura, mesmo depois de fazer o governo recuar de sua extinção, continua a acontecer. Esse conjunto de ações mostra que, do lado da atual “oposição”, isto é, dos setores contrários ao golpe, não haverá trégua, apesar da repressão que já se desenha em vários momentos.

Este artigo tem como propósito destacar os aspectos maiores que deram origem à crise ora vivenciada. Nele procuramos evidenciar, do ponto de vista econômico e político, quais foram os segmentos da sociedade, os setores de atividade e as frações das classes dominantes beneficiadas pelas políticas desenvolvidas pelos governos Lula e Dilma. Isso é apresentado na primeira parte. Na segunda parte, tratamos das frações das classes dominantes que estiveram diretamente envolvidas na desestabilização do governo Dilma desde o momento de sua reeleição, sublinhando o papel da grande mídia como o verdadeiro partido da direita no Brasil, que se apresenta como o representante acabado dos interesses do chamado capital financeiro [3] internacional. Na sequência, na terceira parte, são discutidas as principais propostas dessas últimas frações no tocante ao mercado de trabalho, direitos sociais, papel e funcionamento do Estado, entre outros aspectos, e de que forma a implantação dessas propostas se coaduna com os interesses do capital internacional em avançar sobre a economia do país. Ainda nessa parte, destacamos que o avanço do discurso abertamente de direita, que se traduz na defesa da intolerância sem pejo em vários espaços públicos, ameaça às conquistas obtidas desde o início do processo de redemocratização do país, muito embora muitas vezes parte delas tenha tido pouca efetividade, dada a resistência antes surda por parte da sociedade brasileira. Em Considerações Finais, afirmamos que, embora essas notas tenham caráter exploratório, dado que o processo em análise se encontra em curso, se bem-sucedida for a crise para aqueles que a deflagraram, o resultado da retomada da agenda de reformas de cunho neoliberais (que de certa forma estavam contidas no último período) será uma maior privatização e “estrangeirização” da economia e uma crescente intolerância e repressão aos movimentos sociais e de trabalhadores.
                                                                      
1 – Os interesses nos governos Lula e Dilma

Depois do período inicial do governo Lula, quando a grande mídia escrita e televisiva tentou caracterizar o presidente como alguém que não tinha nenhum lustro, sistematicamente destacando seus erros de português e gafes, e mesmo durante a Ação Penal 470 (conhecida como “Processo do Mensalão”), quando tentou sob todas as formas demonstrar que os atos dos envolvidos eram de seu conhecimento, pode-se dizer que, caladas e/ou contidas as forças discordantes movidas unicamente pela franca oposição ideológica, Luiz Inácio Lula da Silva era quase uma unanimidade nacional. Não por acaso que, ao final de seu mandato, em dezembro de 2010, seu governo registrava 83% de aprovação junto à população segundo pesquisa realizada pelo Datafolha [4]. Vale lembrar que Lula, em sua primeira eleição (2002), ganhou em todos os estados do país (com 61,27% dos votos), com exceção de Alagoas, base do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Para sua reeleição (2006), no entanto, obteve “apenas” 56,05% dos votos, tendo vencido em todos os estados da região nordeste, na maioria dos estados do Norte (com exceção do Acre e de Roraima) e nos estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Ao contrário da primeira eleição, o resultado eleitoral mostrava uma clivagem entre o Brasil mais pobre, formado pelas regiões nordeste e norte, e as demais regiões. Fugindo a essa divisão, destacavam-se os resultados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro; este último, tradicionalmente sempre foi menos conservador que o resto dos estados considerados desenvolvidos e/ou ricos. Frente a esses resultados, quais teriam sido os interesses consolidados nos últimos anos do segundo mandado de Lula para justificar sua expressiva aprovação ao final de 2010?

O primeiro segmento social beneficiado pela política desenvolvida pelo governo Lula foi aquele formado da população muito pobre e pobre. Embora o Programa Bolsa Família seja bastante conhecido no Brasil e mesmo fora dele, é preciso lembrar o significado de sua implantação: foi a primeira vez que um governo dirigiu uma política de transferência de renda de tal magnitude para a parcela mais pobre do país, beneficiando cerca de 28% de sua população. Esse segmento, que antes não fazia parte da base de apoio do Partido dos Trabalhadores (PT), passou a sustentar o governo, o que se evidenciou nos votos obtidos por Lula, junto às regiões mais pobres, em sua reeleição (MARQUES et al, 2009; SINGER, 2009).

Outro segmento, que foi significativamente beneficiado pelo governo Lula, ainda no campo dos trabalhadores e para além de suas bases tradicionais formadas por sindicatos e movimentos de luta pela terra, foi aquele situado na base da pirâmide salarial, com renda de um salário mínimo ou próximo a ele. Este segmento, devido à política de valorização do salário mínimo implantada, teve aumento de 54% em termos reais. Em relação aos demais trabalhadores, destaca-se, ainda, a redução da taxa de desemprego e o aumento real da renda média. A política de valorização do salário mínimo, a redução do desemprego (o mais baixo de toda a série) e o aumento da renda média tiveram prosseguimento no primeiro governo Dilma (MARQUES e ANDRADE, 2016).

Poder-se-ia, ainda, mencionar uma série de políticas iniciadas no governo Lula, que foram em parte responsáveis pelo alto nível de aprovação observado ao final de 2010 e em março de 2013 (Dilma, 79%): expansão do crédito consignado para aposentados, servidores e trabalhadores do mercado formal; criação de 18 universidades federais; construção de moradia para a população de baixa renda (Programa Minha Casa Minha Vida); concessão de bolsas para a população de baixa renda, junto a universidades privadas (Prouni); linha de crédito para o financiamento dos estudantes dos cursos do ensino superior privado (Fies); introdução de cota para negros nas universidades públicas; redução dos impostos sobre a cesta básica (em março de 2013, a política de redução foi levada a seu extremo, quando Dilma anunciou que, no ano, o governo renunciava à arrecadação de impostos e contribuições sobre o faturamento da cesta básica); entre outras medidas e programas.

No caso das classes dominantes, para podermos destacar quais foram as frações beneficiadas, é preciso fazer uma distinção entre o governo Lula e o governo Dilma. No governo Lula, o chamado agronegócio e a indústria de commodities produtora de petróleo e ferro, voltado para a exportação, foram considerados um dos pilares de sustentação do desempenho da economia brasileira e, particularmente destacados como subserviente aos interesses imperialistas na organização internacional do trabalho por parte da esquerda crítica. De fato, a redução da restrição externa provocada pelos expressivos superávits na conta Transações Correntes até 2006 e o crescimento do PIB deveram-se a mudanças internacionais favoráveis (entre as quais, destaca-se a acelerada expansão da economia chinesa) que resultaram no boom dos preços das commodities e na redução dos preços dos produtos manufaturados importados, neles incluídos bens de capital. Segundo Pinto (2010), essas circunstâncias resultaram no aumento contínuo do poder da burguesia produtora e exportadora de commodities, de modo que esse setor de atividade viesse a ultrapassar, em 2007, o setor bancário-financeiro, em termos de participação no lucro líquido total das empresas que representavam 40% do PIB. Esse aumento de poder só não foi maior porque parte do lucro líquido do setor de commodities foi fortemente influenciado pelos elevados lucros da Petrobrás. Essa empresa estatal, bem como a Vale, foi responsável por 61,8 % do lucro líquido do setor no primeiro governo Lula (TEIXEIRA e PINTO, 2012, p. 929).

Contudo, os benefícios obtidos pelas frações de classes envolvidas na produção e exportação de commodities, nela incluído o agronegócio, deveu-se muito mais à dinâmica externa do que à política macroeconômica aplicada pelo governo Lula, com destaque para a manutenção de elevadas taxas de juros e da valorização do real frente ao dólar. Mas apesar dos efeitos negativos do real valorizado, a quantidade exportada mais do que compensava o efeito preço. As elevadas taxas de juros praticadas no governo Lula, de 2003 até 2008 (embora com queda de 2,17 pontos percentuais em termos reais), favoreceu fortemente a fração bancária-financeira interna e externa.
                                                          
Para fazer frente à crise de 2007/8, o governo, a partir de 2009, tomou uma série de medidas que visavam ampliar o mercado o interno e diminuir seu impacto na economia brasileira. Foram elas: redução da taxa de juros e dos impostos, com destaque para a compra de automóveis populares, motocicletas e eletrodomésticos, e para aplicação no mercado de capitais e em operação de empréstimos e financiamentos externos; ampliação da participação dos bancos públicos no crédito das empresas e das famílias; forte intervenção no câmbio para evitar desvalorização abrupta do real [5]; ampliação da linha de financiamento para o as exportações pré-embarque do BNDES; entre outras medidas. A partir desse momento, e principalmente nos anos iniciais da primeira gestão do governo Dilma, aprofundaram-se as políticas direcionadas ao mercado interno, muito embora também a elas tenham se associado medidas voltadas para o setor exportador.

A política de transferência de renda para a população pobre e muito pobre, a valorização do salário mínimo (que incide sobre os salários mais baixos e sobre parcela importante dos aposentados e beneficiários da assistência social) e a ampliação do crédito consignado, combinaram-se com a redução dos impostos e a maior presença dos bancos públicos no crédito, resultando na ampliação do mercado interno e favorecendo os setores produtores não exportadores e as empresas de varejo. Não é por acaso que, nesse momento, proprietários de empresas de varejo como o Magazine Luiza defenderam as políticas conduzidas pelo governo: a ampliação de seu faturamento foi propiciada pela expansão do mercado interno. No caso das montadoras, parte de sua produção exportável foi redirecionada para vendas no país, dada a redução dos impostos. Contudo, o arrefecimento da economia mundial, a diminuição da taxa de crescimento da China e a manutenção do câmbio ainda em níveis elevados, continuaram a corroer a capacidade de exportação das commodities brasileiras. Além disso, segundo Bresser (2015), a contínua manutenção do real valorizado não só impediu que a indústria com vocação a exportar o fizesse, como levou a sua retração.

No primeiro Governo Dilma, essas políticas foram em grande parte aprofundadas e a elas se somaram outras, como, por exemplo, a redução do custo da energia elétrica para a indústria e as famílias [6]. Mas talvez o maior destaque fique por conta da desoneração das empresas das contribuições sociais calculadas sobre os salários, no intuito declarado de tornar os produtos brasileiros mais competitivos no mercado internacional (MARQUES e MENDES, 2013). Iniciada em dezembro de 2011, a desoneração sobre a folha (em parte substituída por uma contribuição sobre a receita bruta) abrangia 56 setores de atividade industrial (a maior parte), comercial, transporte e serviços em setembro de 2015. Apesar dessa desoneração, o quadro exportador não se alterou e a economia foi desacelerando, até apresentar resultado negativo nesse último ano. Em um quadro de arrefecimento da economia, a crescente renúncia fiscal foi um dos fatores que fragilizou as contas do governo federal, o que ficou evidente ao final de 2014, quando registrou um déficit primário de 0,57% do PIB.

Mas de todos os setores de atividade beneficiados pelos governos Lula e Dilma, aquele que mais se destaca é o da indústria da construção. Esse setor, bastante concentrado, mas de controle brasileiro, que, em 2012, teve 46% de sua receita bruta realizada por apenas seis empreiteiras (CBIC, 2016), teve seus negócios bastante favorecidos nos governos do PT. Além do crescimento econômico ocorrido no período Lula [7], com expansão do emprego e da renda das famílias, cabe destacar a ação empreendida para retomar o investimento em determinadas áreas consideradas estratégicas e o incentivo dado pelo governo para que construtoras realizassem obras em outros países, com destaque para a América Latina e a África. Em relação ao primeiro objetivo, houve a criação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007, com o intuito de retomar o planejamento e a construção, no âmbito do governo federal, de grandes obras de infraestrutura social urbana, logística e energética do país. Os investimentos realizados foram compostos por recursos públicos e privados, das empresas participantes dos empreendimentos. Em 2011, foi lançado um novo PAC, envolvendo mais parceiros privados e públicos. Entre as várias modalidades no campo da infraestrutura social urbana, destaca-se o Programa Minha Casa Minha Vida. Já entre os investimentos que visam ampliar a capacidade energética do país, salienta-se a Usina Hidrelétrica Belo Monte, no Pará, bastante contestada pelos movimentos sociais devido aos seus impactos no modo de vida dos indígenas da região e no meio ambiente. Já em relação ao incentivo do governo federal à realização de empreendimentos de infraestrutura fora do país, ele foi resultado da política externa iniciada por Lula, que estreitou os laços com países africanos de língua portuguesa e estabeleceu uma parceria estreita com os integrantes da Unión de Naciones Suramericanas (Unasur), formada pela Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. Para os empreendimentos, foi fundamental o financiamento realizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Entre os diferentes empreendimentos envolvidos, destacamos as obras do Porto de Mariel, em Cuba, realizadas pela empresa Odebrech [8]. Não por acaso, na campanha realizada pela grande mídia contra o governo Dilma e a favor de seu impeachment, era “denunciado” o favorecimento das construtoras responsáveis por esses empreendimentos externos. Também não por acaso, as sete maiores empresas do setor foram investigadas pelo juiz Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava-Jato, sendo que diversos de seus executivos já foram por ele condenados a amplas penas, entre eles o presidente da principal empreiteira do país, Marcelo Odebrech (19 anos e 4 meses. Lembremos que a pena máxima para homicídio simples – não qualificado – no Brasil é de, no máximo, 12 anos).

2 – A direita se “reorganiza”

Diante do exposto, uma questão relevante é buscar identificar quais foram as frações das classes dominantes que estiveram (estão) diretamente envolvidas na desestabilização do governo Dilma, um fenômeno evidenciado pelo menos desde o momento de sua reeleição e que levaram à abertura do processo de impeachment. Do ponto de vista eleitoral, o desempenho da chapa encabeçada por Dilma Rousseff, em 2014, foi semelhante ao de Lula em 2006, replicando inclusive um resultado muito semelhante nos Estados [9]. Vale lembrar que 2006 foi um dos auges de repercussão midiática do chamado “Mensalão”, momento em que também o PMDB passou a fazer parte da base aliada do governo. Mas qual foi a mudança mais evidente entre 2006 e 2014?
Em 2006, tinha-se a divulgação dos primeiros resultados da política social implantada pelo governo Lula, além de um cenário internacional que favorecia setores centrais à estratégia de desenvolvimento capitalista incentivada pelo governo. Em 2014, à crise internacional (outrora apresentada como mitigada pela ação governamental em 2008/2009) somaram-se componentes internos diretamente relacionados à continuidade e, principalmente, ao aprofundamento do conjunto de políticas ditas “neodesenvolvimentistas” [10]. Nesse momento de crise, aprofundam-se as contradições no interior da classe dominante. O “pacto de classes” fiado pelo PT - fundado em políticas sociais de rápido impacto, na expansão do mercado interno e no direcionamento de aparelhos estatais como suporte da expansão internacional de empresas domésticas -, que já havia sido abalado quando Dilma contrariou os interesses da fração bancária financeira interna e externa, no momento da redução da taxa de juros, e quando fica evidente o fim do ciclo das commodities, é claramente rompido. As diferentes frações da classe dominante, com exceção do setor de infraestrutura e construção civil (cujos importantes dirigentes estão atualmente presos), passaram a se realinhar em torno de interesses comuns, tendo como elemento organizador a grande mídia oligopolista [11]. Esta, sob qualquer ponto de vista, desde os anos 1990, claramente representa os interesses do grande capital financeiro internacional, cuja concretude se materializa na defesa do avanço da agenda neoliberal no país (“flexibilização” do mercado de trabalho, desvinculação de recursos orçamentários, maior abertura de setores de atividade ao controle do capital internacional, constituição de centros de poder impermeáveis a quaisquer interesses “populares” etc).

A “onda conservadora” no Brasil, iniciada no rescaldo das manifestações de junho de 2013, reacionária aos frágeis avanços sociais e refratária às “demandas progressistas” (sejam elas no campo econômico ou no campo dos costumes), foi orientada politicamente e animada justamente por esse oligopólio midiático. Dessa forma, ele atuou efetivamente como o partido da direita (ao representar os interesses gerais das classes dominantes) e de oposição programática ao governo. Apoiando-se nas insatisfações manifestas em 2013, essa ponta de lança dos interesses locais associados ao grande capital internacional definiu seu adversário: : o Partido dos Trabalhadores e tudo aquilo que ideologicamente ele pudesse representar – de acusado de inventor do clientelismo no Brasil, passando pelos típicos preconceitos de classe e chegando ao mais reacionário anticomunismo [12] de viés fascista.

A mídia oligopolista passou a exercer o papel de “organizador do dissenso” e de agitação política, conformando o “aspecto popular” das manifestações anti-PT. Essas, como apontado em diversas pesquisas, foram compostas centralmente por camadas da alta classe média brasileira. A título de ilustração, na maior manifestação de rua pró-impeachment de 2016, em São Paulo, a pesquisa do Datafolha apontou que 77% dos presentes tinham ensino superior [13], mesmo percentual daqueles que se declararam de cor branca e em sua maioria homens com idade superior a 36 anos (40% do total tinham 51 anos ou mais); além disso, 37% declararam terem renda superior a 10 salários mínimos (incluindo os que declararam ter renda superior a 5 salários mínimos, chega-se a 63% dos manifestantes).

O espaço ideológico para uma restauração neoliberal teve eco também junto às classes populares, dado o baixo grau de sua politização. Uma pesquisa (março de 2016), da Confederação Nacional da Indústria (CNI), que tinha como objeto a rotatividade no mercado de trabalho, apontou que um percentual expressivo de trabalhadores atribui como responsáveis por esse problema o governo (31%) e as leis trabalhistas (24%). Essa responsabilização é maior precisamente entre os entrevistados com menor grau de instrução [14]. Numa chave paralela, em 2014, pesquisa conduzida pelo Datafolha com a chamada “classe C” (famílias com renda entre 2 a 5 salários mínimos) apontou que menos de 10% dos entrevistados atribuíam sua ascensão social a políticas governamentais. Do total, 89% atribuíam essa ascensão ao esforço próprio. Além disso, no quesito dos principais problemas brasileiros, após a saúde (com 65% das respostas), foram apontadas a inflação com 59% e a corrupção com os mesmos 59%.
                                                                 
Essas informações subsidiam a hipótese de que, mesmo desde 2013, o principal fator de deflagração da crise política não foi a ascensão do movimento popular (apesar das vitórias alcançadas pelas revoltas contra o aumento das tarifas de transportes, as manifestações já contemplavam, em agosto, pautas claramente implantadas pela direção do “partido da grande imprensa brasileira”, tais como reinvindicações genéricas contra a corrupção e contra uma até então desconhecida “Proposta de Emenda Constitucional 37”) [15], mas sim uma ofensiva pela direita, a saber, do grande capital bancário-financeiro e de aparelhos privados de hegemonia (destacadamente a mídia), que expressam interesses políticos de uma fração burguesa associada (ou com perspectivas de ampliar a associação) ao grande capital internacional.

Essa ofensiva se deu, de um lado, pela crítica à condução da política econômica e, por outro, pelas críticas às políticas sociais – questão de maior destaque na classe média. No que se refere às disputas internas à classe dominante, a ofensiva manifestou-se contra a chamada “burguesia interna” [16], que havia se aproximado e sustentado explicitamente os governos do PT desde 2006. Em termos econômicos, tal como mencionado anteriormente, fazia parte dessa burguesia interna as chamadas empreiteiras, hoje investigadas pela Operação Lava-Jato.

Em sua tentativa de fazer avançar a aprofundar as políticas implantadas por Lula no bojo da crise de 2008/2009, uma medida de destaque do governo Dilma foi a redução da taxa básica de juros (Selic), que caiu de 10,75% a.a. no final de 2010 para 7,25% a.a. no final de 2012, isso com uma inflação na casa de 5,9% a.a., ou seja, com uma clara redução da rentabilidade real da dívida pública atrelada à Selic. A crítica difundida a essa atuação governamental foi sua “arbitrariedade” e “artificialidade”, baseada na compreensão de que os fundamentos da economia brasileira não respaldariam essa iniciativa, taxada de “inconsequente” e “irresponsável” por vários ideólogos neoliberais, bem como por uma cobertura midiática, típica de certo “jornalismo denúncia”, que acusava o governo de ter abandonado o rigor exigido por um regime de metas de inflação, instituindo na prática o teto da meta de inflação como seu centro. Essa condução da taxa de juros colocou explicitamente, em 2012, o governo em rota de colisão com o setor bancário, expressa através de atritos com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Além dessa redução da taxa básica, o governo decidiu ainda utilizar os Bancos do Brasil (BB) e Caixa Econômica Federal (CEF) como mecanismos para reduzir o spread bancário dos bancos privados, abrindo linhas de empréstimos a taxas de juros menores que a média do mercado, tendo como resultado o aumento da participação dos bancos públicos nas operações de crédito do sistema financeiro.

Outra intervenção importante do governo Dilma foi sobre o câmbio. Após um período de apreciação do real (entre meados de 2010 e meados de 2011), em que o câmbio chegou a ficar abaixo de R$1,55, foi instituída uma alíquota de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) sobre as posições vendidas em dólar futuro (acima de US$ 10 milhões) no mercado brasileiro. Anteriormente, já haviam sido também alteradas as alíquotas de IOF sobre investimentos estrangeiros em carteira [17]. Semelhante à condução da política monetária (que passou a trabalhar com o teto da meta e redução do rendimento real dos títulos de dívida pública), a política cambial do início do governo Dilma ampliou seus objetivos frente à de seu antecessor. Além de atuar para “limpar flutuação” (reduzir a volatilidade cambial) e de acumular reservas (com vistas à redução da vulnerabilidade externa), passou também a intervir na formação da taxa de câmbio (basicamente na interação entre mercado à vista e mercado futuro). Essa nova forma de atuação promoveu a desvalorização do real, com o objetivo de reduzir o grau de especulação nos mercados de câmbio e recuperar certa competitividade da indústria brasileira. Embora esse último objetivo não tenha sido conseguido, dado o aprofundamento da crise internacional e a diminuição do ritmo de crescimento da economia chinesa, a tentativa de manter a taxa de juros em patamares menores e a desvalorização do real constituíram ataques diretos aos interesses materiais da fração bancário-financeira brasileira e aos setores associados ao grande capital internacional, acendendo o alerta sobre a necessidade de reordenamento das prioridades políticas. Restaria ainda lembrar os efeitos da política de contenção do nível de preços, destacadamente da tarifa de energia elétrica e do preço da gasolina. Essa política gerou severo descontentamento juntos aos acionistas das empresas envolvidas.

As dificuldades enfrentadas pelo governo em dar resposta à crise e as circunstâncias nas quais ocorreu a reeleição de Dilma em 2014 estabeleceram o cenário de intervenção da direita, construído de forma articulada interna e externamente. Além de seu governo não mais dispor de uma expressiva base, inclusive entre frações da classe dominante antes sua apoiadora, o Congresso Nacional eleito foi de perfil o mais conservador desde a redemocratização do país [18] e a oposição parlamentar adotou explicitamente a tática de “sangrar” o governo, nas palavras do senador Aloysio Nunes (PSDB). Somou-se a isso o inconformismo do PSDB com sua derrota eleitoral, que se manifestou com a solicitação de recontagem dos votos, seguida da auditoria das urnas e depois do questionamento das contas de campanha da presidenta eleita; o avanço da Operação Lava-Jato para outros partidos que não apenas o PT. Finalmente, mas não menos importante, há que se destacar a ofensiva estadunidense contra os governos não alinhados a ele, chamados de “progressistas”.
                                                                                    
É nesse contexto que a campanha presidencial de Dilma, principalmente no segundo turno, ainda que de forma tímida para setores à esquerda do PT, veiculou peças publicitárias que opunham a população (pobre) aos interesses dos “bancos”, buscou retomar bandeiras históricas (de ampliação de direitos) quase esquecidas nas últimas gestões, definiu-se claramente pela manutenção do emprego contra os ajustes reclamados pela oposição, entre outros. Contudo, Dilma, para sermos generosos, equivocou-se: não só os opositores não pretendiam fazer ajuste e sim reformas cabais na economia e nas políticas sociais, como não estavam dispostos a renegociar novo pacto de conciliação de classe. Dilma, entendendo que as dificuldades eram passageiras, considerou que um ajuste era suficiente para tudo resolver. Para sinalizar sua “boa intenção” e na tentativa de recompor parte de seu apoio junto ao chamado “mercado”, nomeou Joaquim Levy (sujeito de confiança do mercado) para o Ministério da Fazenda.

Ao final, a crise não era passageira, muito pelo contrário; não houve tecnicamente um ajuste e sim contingenciamento provocado pela abrupta redução da arrecadação de impostos; e a oposição, ao contrário do desejado por Dilma, aprofundou suas críticas e se armou para destituí-la. O que estava em jogo era, como veremos mais adiante, quais reformas seriam levadas a cabo.

A discussão feita até o momento nesta seção pode sugerir a seguinte interpretação: as frações das classes dominantes, que estiveram envolvidas diretamente na desestabilização do governo Dilma, agiram dessa maneira devido ao conflito distributivo que se abriu com a crise e às respostas a ela dadas pelo governo. Ainda que isso seja parte de nossa resposta, essa interpretação captura apenas um aspecto da crise política. Os desdobramentos da crise apontam para questões mais profundas. Nossa hipótese de trabalho é que uma parte importante da resposta gira em torno da posição internacional da economia brasileira e das relações de classe no interior da cadeia imperialista, em especial suas rivalidades internas.

Corroboram nesse sentido, vários indícios. Em primeiro lugar, chamamos atenção ao fato de que conflitos distributivos entre as classes dominantes, em formações sociais capitalistas, não são historicamente resolvidos mediante a colocação de capitalistas na cadeia; ainda mais com base em uma operação policial centrada na figura de um juiz federal de primeira instância, tendo como princípio uma operação que prendeu um “doleiro” (um operador de câmbio no mercado negro) e que recentemente chegou a vazamentos de grampos da presidência da república. Essa é uma questão, aliás, amplamente difundida pela mídia internacional, desde os aparelhos hegemônicos internacionalmente (como CNN, Wall Street Jornal, New York Times, etc.) até a mídia alternativa “pós-Snowden”. De nosso ponto de vista, portanto, ainda que a crise tenha se expressado internamente como uma ofensiva política de frações da classe dominante, destacadamente a burguesia bancário-financeira, hegemônica historicamente pelo menos desde o início dos anos 1990, contra um governo possivelmente “desenvolvimentista”, ela não parece ser apenas a feição particular de um conflito distributivo entre frações da classe dominante.

Em segundo lugar, chama a atenção o modo como uma expressiva gama da “mídia alternativa” [19] estrangeira tem localizado a questão: em torno da posição dos BRICs e de uma estratégia geopolítica patrocinada desde o núcleo duro da dominação central que visa anular qualquer política externa brasileira “não-alinhada” (para recuperarmos um termo hoje em desuso). Desse modo, é importante estabelecer uma diferença entra a expressão política explícita da crise (econômica e política) e os limites estruturais colocados pela dinâmica do aprofundamento do desenvolvimento capitalista brasileiro, isto é, dos limites enfrentados na expansão das relações sociais capitalistas desde o Brasil e para fora.

Em terceiro lugar, é sabido que, durante os governos Lula (e como menor intensidade nos governos Dilma), a política externa brasileira teve uma sensível reorientação, priorizando relações Sul-Sul e se articulando fortemente à política interna, quando o Estado brasileiro passou a atuar como suporte e trampolim para a expansão capitalista para outros países de setores ligados à infraestrutura e construção, destacadamente na América Latina e África. Isso, por sua vez, não significa afirmar que a política externa, em especial dos governos Lula, tenha tido um caráter “anti-imperialista”, tal como afirmam setores ligados ao PT; porém, é inegável a necessidade de se reconhecer que ela, em alguns aspectos, entrou em rota de colisão com interesses imperialistas [20].

Um conflito marcante como os interesses do grande capital internacional e, em particular, dos Estados Unidos (EUA), foi a forma como o governo Dilma conduziu a regulamentação da exploração do Pré-sal, que sofreu pesadas críticas por parte dos “representantes literários” dos interesses imperialistas no Brasil. Seu modelo de exploração do Pré-Sal não seguiu o regime de “concessões e royalties”, que prescinde da participação de empresa estatal, e no qual a empresa investidora tem o direito sobre a produção (após royalties) e a receita do governo é definida “em dinheiro”. O modelo adotado foi o regime de “partilha”, que definiu a Petrobras como empresa parceira obrigatória e monopolista da exploração; esse modelo pressupõe a participação estatal, em que o investidor recebe “óleo de custo” como pagamento para recuperar seus custos. O “óleo de lucro” é repartido entre o consórcio explorador e o governo (via empresa estatal). Isto é, a propriedade do “óleo” extraído é do Estado e o país recebe “duas vezes”, como participante do consórcio e como governo.

Uma das formas de materialização dos interesses imperialistas são os acordos comerciais criados pelos Estados Unidos: TPP (Trans-Pacific-Partnership Agreement), TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) e TISA (Trade in Services Agreement) [21]. A depender do modo como venham a ser implantados (quantidade de países, cláusulas específicas capazes de garantir ou não alguma soberania estatal na definição de estratégicas econômicas particulares, etc.), eles poderão, na prática, substituir a própria Organização Mundial do Comércio (OMC) na regulação do comércio internacional e como espaço de arbitragem de disputas econômicas internacionais.

Como se pode observar em diversos materiais publicados [22], tais acordos não se limitam apenas a “questões comerciais”, mas envolvem: redução de autonomia (ou “soberania nacional”) em áreas como regulação financeira e de investimentos; em setores de infraestrutura (setor energético, transportes, etc.); “liberalização” (leia-se abertura à competição internacional e à “estrangeirização”) de serviços (como serviços postais, educação e saúde); o fim de requerimentos de participação doméstica em setores considerados estratégicos (política de conteúdo local); diretrizes de regulação trabalhista comum; além de mídias e políticas sociais. Além disso, como se observa particularmente no TPP (acordo em estágio mais avançado no momento), a própria resolução de disputas econômicas (mesmo entre governo e empresas) seria encaminhada para tribunais internacionais.

Nada mais ilustrativo dessa estratégia de realinhamento internacional, sob a égide estadunidense, que a própria declaração de Barack Obama (em maio de 2016) publicado no Washington Post: “A construção de muros para nos isolarmos da economia global somente nos priva das incríveis possibilidades oferecidas por ela. Ao contrário, a América deve escrever as normas [da economia mundial]. A América deve dar ordens [call the shots]. Outros países devem jogar segundo as regras estabelecidas pela América e nossos parceiros, e não ao contrário. Isso é o que o TPP nos dá o poder de fazer [23]” (OBAMA, 2016).

3 – O fim do interregno: o retorno da agenda neoliberal em sua completude.

Uma das críticas permanentes dos setores de esquerda com relação à política macroeconômica dos governos do PT dizia respeito ao fato de ter sido mantido o tripé, isto é, a manutenção da meta de inflação, do superávit primário e o regime de câmbio flutuante. Isso não só era prova da continuidade da política econômica com relação a seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, como constituía a marca inconteste de seu neoliberalismo, apesar de suas políticas sociais redistributivistas, dirigidas aos setores mais pobres da população. Essas últimas apenas lhe davam a adjetivação de social na expressão “social liberal”. Contudo, a bem da verdade, no primeiro governo Dilma, como mencionado anteriormente, essas metas foram bastante relaxadas, devido a seu intuito de contrabalançar o impacto sobre a economia de restrições externas, especialmente o decorrente do fim do ciclo das commodities, na tentativa de prosseguir na estratégia de ampliação do mercado interno. Por outro lado, sempre é possível se caracterizar medidas realizadas, tanto nos governos Lula como Dilma, como neoliberais, principalmente quando se associa qualquer processo de privatização como expressão da negação do Estado.
                                                               
De nosso ponto de vista, os aspectos apontados, assim como vários outros, expressam “tão-somente” a crença desses governantes de que era possível conduzir a nação atendendo simultaneamente, de forma perene, interesses de frações da classe dominante e dos trabalhadores, e sem indispor as demais frações da classe dominante contra seus propósitos. Como bem a história nos ensinou, mesmo quando, em determinados momentos, os interesses de frações da classe dominante parecem coincidir com o dos trabalhadores, em situações limites, as bases sobre as quais se assentavam a colaboração mostram toda a sua impossibilidade. É na ruptura dessa continuidade que se revela o conjunto de propostas atualmente defendidas por todos os setores que, mais cedo ou mais tarde, se colocaram a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A profundidade e significado das mudanças / reformas ora em pauta implicam não só o desmonte do que foi realizado durante os governos do PT, principalmente no campo das políticas sociais e do avanço do reconhecimento das diferenças, como um retrocesso em relação ao que foi inscrito na Constituição de 1988, fruto do processo de democratização do país e expressão do pacto possível naquele momento. Nesse sentido, é possível se afirmar que o que está em questão é uma ofensiva de restauração neoliberal [24] em sua completude.

O principal documento que expressa as mudanças que estão sendo propostas é o “Ponte para o futuro”, elaborado pelo PMDB, do qual pertence Michel Temer, um dos principais articuladores do impeachment, que assumiu interinamente a presidência da República quando do afastamento de Dilma [25]. Mas o diagnóstico da situação brasileira e as propostas desse documento, em matéria de políticas sociais, de finanças públicas e da função do Banco Central, não diferem do que consta da Agenda Brasil, conjunto de propostas apresentado por um grupo de senadores em agosto de 2015, e mesmo do detalhamento publicado no jornal Estadão, em 14 de setembro de 2015, de autoria de alguns economistas de viés neoliberal [26]. Vejamos resumidamente suas principais propostas.
Para responder à questão fiscal, isto é, para reduzir o gasto público e garantir a realização do superávit primário, e em nome de um “orçamento verdadeiro” (sic), o documento propõe:

a) A desvinculação do piso dos benefícios previdenciários e assistenciais ao salário mínimo;

b) A desindexação do salário mínimo ao desempenho da economia e à inflação;

c) O fim das vinculações de percentuais da receita à educação e à saúde pública;

d) O avanço do uso livre sobre as receitas de contribuições [27];

e) Bem como a introdução do critério de idade, de 60 e 65 anos, para o acesso à aposentadoria de mulheres e homens, respectivamente. Sobre esse ponto, a proposta já evoluiu para a defesa de uma idade única (65 anos), para ambos os sexos [28].

Para se ter a dimensão da implicação das mudanças com relação ao salário mínimo e ao piso dos benefícios previdenciários e assistências, precisamos lembrar que é abundante a quantidade de estudos que apontam que sua valorização (levando em conta a inflação passada e o desempenho da economia dos dois últimos anos) e a indexação do piso dos benefícios a ele foram as principais causas da diminuição da desigualdade entre os ocupados ocorrida na última década. Maior do que o Programa Bolsa Família, embora o impacto desta política não seja desprezível.

No caso do mercado de trabalho, o salário mínimo beneficia tanto os trabalhadores formais como os informais, e se apresenta como o mínimo que um trabalhador deve receber como assalariado. No caso dos benefícios previdenciários e assistenciais, apresenta-se como uma renda mínima da inatividade, não importando seu motivo. Já a introdução desse indexador aos benefícios, em 1988, teve como fonte inspiradora a necessidade de as políticas públicas atuarem positivamente sobre os baixos rendimentos a que estavam submetidos os aposentados e os trabalhadores de mais baixa renda. Levando-se isso em conta, qualquer proposta “progressista” que pretenda pensar o Brasil do futuro, no caminho da superação da crise atual, não pode estar fundada na diminuição da renda da base da pirâmide de rendimentos brasileiros. Aqueles que não manifestam nenhum tipo de vergonha ou de constrangimento ao propor a desindexação dos benefícios e a interrupção da valorização do salário mínimo, assim denunciam de que lado estão na sociedade brasileira.

A essas propostas, e ainda no campo fiscal e das políticas sociais, se somou, mais recentemente, a ideia de revisão do nível de cobertura do Programa Bolsa Família, para ser dirigido somente aos 5% mais pobres da população brasileira. Como mencionado pela presidente Dilma em seu discurso na manifestação do 1º de maio, no Anhangabaú, na cidade de São Paulo, isso significa excluir do programa 36 milhões de brasileiros, ficando ele restrito a apenas 10 milhões. É interessante levar em conta que a contribuição da implantação dessa proposta para o resultado das contas públicas é irrisória, pois a totalidade do programa Bolsa Família não chega a 0,5% do PIB, enquanto os juros da dívida interna são de 8% do PIB. A conclusão sobre o sentido dessas propostas, portanto, não pode ser outra: trata-se de retomar a agenda neoliberal dos anos 1990, anulando as conquistas introduzidas pela Constituição de 1988 e os avanços em matéria de políticas sociais realizados durante os governos PT.

A proposta de desindexação dos recursos da saúde e da educação é tão grave quanto a desvinculação dos benefícios ao salário mínimo, mas implica outros aspectos que merecem ser rapidamente mencionados. Em primeiro lugar, trata-se de sinalizar à sociedade, e isso em alto e bom som, que a saúde e a educação Não são prioridades na escala de valores do Estado brasileiro e que seu acesso deverá ser “garantido” cada vez mais mediante a renda individual de cada um ou família. A introdução de percentuais sobre os recursos da União, Estados e Municípios tinha (tem) como propósito definir mínimos de comprometimento dos entes públicos com essas políticas, que independiam (independem) da orientação política do gestor de plantão. São políticas de Estado, portanto. A proposta retira esse papel do Estado e, no seu lugar, deixa para o chamado “mercado” a resolução do acesso à saúde e à educação. Quando em nome de um equilíbrio fiscal, cujo objetivo é gerar superávit fiscal para honrar o pagamento dos juros da dívida pública, é proposta a desindexação dos recursos para a saúde e a educação, fica evidente a quem estão servindo os autores da proposta “Uma ponte para o futuro”. E o futuro que será produzido pela retirada da desindexação seria o pior possível: a completa segmentação da saúde e da educação. Sabemos bem que essas áreas já se apresentam segmentadas, apesar da Constituição de 1988. Por exemplo, no caso do gasto com saúde, 53,5% é realizado pelo setor privado (Planos e seguros de saúde e pagamento direto pelo usuário) e o sistema público (SUS) enfrenta um subfinanciamento estrutural desde sua origem, estando muito abaixo do que aplicado em sistemas públicos semelhantes em outros países. O que mudaria com a desindexação é que estaria vedada a alteração da situação atual, de modo que a segmentação e o subfinanciamento somente iriam se ampliar.

A concretude da desindexação, mas não restrito a isso, é a proposta de o governo trabalhar com o chamado “orçamento zero”, quando os recursos destinados a cada área e a cada ano são resultado de negociação, fruto de disputa, independentemente de qualquer preceito constitucional. A proposta é que o equilíbrio fiscal de longo prazo seja o princípio maior da administração pública. Para garantir a aplicabilidade desse preceito, propõem a criação de cum Comitê Independente para sugerir a continuidade ou o fim dos programas governamentais de acordo com os seus desempenhos. O resultado disso, certamente é a diminuição da capacidade de atuação política do poder executivo, isto é, de sua independência, pois além desse comitê propõem a criação de uma instituição que funcionaria como uma autoridade orçamentária. Em outras palavras, trata-se de introduzir, no aparelho de Estado, práticas existentes nas empresas privadas, tais como auditoria constante e escolhas definidas a partir do critério da economicidade. Porém, o aspecto mais nefasto dessas propostas é a institucionalização de “centros de poder” independentes e impermeáveis às demandas da chamada sociedade civil, que não estejam de acordo com os interesses político-materiais das frações de classe particulares que controlem tais instituições. Afinal, mesmo que alguma frente política divergente da fração burguesa hegemônica chegue ao Poder Executivo federal, o governo não teria controle sobre a política monetária, o orçamento público e o monitoramento e avaliação das políticas públicas.
                                                                  
As propostas de desindexação contemplariam, ainda, pelo menos em tese, a possibilidade da desvinculação das receitas da Seguridade Social, tal como insinuadas ou apresentadas em outros documentos de mesmo teor. Propor sua desvinculação ou aumentar a já existente, de 20%, é a consequência lógica da análise presente no documento “Uma ponte para o futuro”. E aí estaria completada a tarefa de desmontar, de fazer retroceder completamente, os avanços em políticas sociais introduzidas pela Constituição de 1988. Além de modificar aspectos de sua concepção, ao eliminar o piso equivalente a um salário mínimo para os benefícios, tornaria seus recursos incertos, dependentes de prioridades estabelecidas a cada orçamento, a partir dos interesses e das forças presentes em cada votação no Congresso Nacional. De uma política de Estado, a Seguridade Social passaria a ser o resultado de meras contingências conjunturais. Mas tudo isso é mediado pela não questionável necessidade de sempre atender os interesses dos credores e de manter elevadíssimas taxas juros, pois na conta do que deve ser cortado ou reduzido, em momento algum é pensado se redefinir as condições que estabelecem essa já eterna submissão aos interesses do capital financeiro internacional e nacional [29].

Ainda no campo dos direitos, mas relativo aos instrumentos legais que regulam as relações entre o capital e o trabalho, há propostas (inclusive já tramitando no Congresso Nacional) que propõem a flexibilização e a terceirização do trabalho para todas as atividades no interior de uma empresa e a precedência do acordado sobre o legislado. Como sabido, não é por acaso que as relações de trabalho são objeto de regulação por parte do Estado na maioria dos países. Trata-se de reconhecer que, entre os trabalhadores e os empregadores, os primeiros apresentam-se no mercado de trabalho numa situação mais frágil, pois dependem do emprego e da renda para viverem. E exatamente porque não há alternativa para eles (precisam trabalhar para ter alguma renda; não podem ficar esperando, parados, para que o salário aumente) é que, se não houver nenhuma regulação, estarão submetidos às piores condições de salário e de condições de trabalho. Na hipótese da terceirização se aprofundar, por exemplo, estaremos assistindo o aprofundamento da segmentação já existente entre os trabalhadores no país. Além da diferença entre os formais e informais, estaremos criando várias instâncias de trabalhadores de segunda classe entre os formais, dado que os terceirizados não necessariamente terão os mesmos direitos que os demais. Além disso, é bom lembrar que estes últimos, por serem importantes para as empresas (pois integram o chamado “núcleo duro”), teriam também melhor capacidade de barganha nas negociações. Por outro lado, sendo admitida a precedência do acordado sobre o legislado, significa dizer que, dependendo da situação do trabalhador ou de seu coletivo, podem ser acordados entre as partes quaisquer níveis salariais e condições de trabalho, o que implicaria a possibilidade de assistirmos retrocessos em termos de jornada de trabalho, de salários e condições de trabalho inomináveis.

Desse conjunto de propostas, que constam do documento “Uma ponte para o futuro” ou que estão sendo veiculadas principalmente nos principais jornais do país, conclui-se que se trata de completar as reformas neoliberais, que não foram adiante durante os governos do PT devido a uma série de circunstâncias. Em tempos de crise econômica profunda do capitalismo, a retirada de direitos constitui a única ação concertada pelas classes dominantes. E esta não se apresenta como um instrumento de sua superação, para o qual não têm resposta, e sim para a manutenção de sua forma de dominação. Corrobora esta conclusão o conjunto de propostas apresentadas durante os 18 dias de governo “interino” de Temer: além do que aqui já foi mencionado, destacam-se: a) as ações e declarações de José Serra (PSDB) como ministro das Relações Exteriores que, ao rebater duramente as críticas e denúncias oficiais de países da América Latina contra o processo de impeachment (entendidas por eles como um golpe), afastou-se dos aliados construídos durante os governos Lula e Dilma, indicando um reposicionamento que pode ser entendido como de apoio à estratégia dos Estados Unidos na região (BBC, 2016); b) as declarações do ministro da Saúde, Ricardo Barros (Partido Progressista – PP), em entrevista, de que era preciso redimensionar o Sistema único de Saúde, dando a entender que a saúde pública, hoje universal, deveria ser dirigida somente àqueles que não dispõem de um Plano de Saúde ou aos que têm renda suficiente para efetuar pagamento direito dos serviços privados de saúde, e que o caminho seria a expansão da cobertura dos Planos de Saúde (FOLHA DE SÃO PAULO, 2016b); c) a nomeação de Maria Silvia Bastos Marques, com amplo currículo junto às privatizações ocorridas nos anos 1990, para a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES e o anúncio de que o mesmo poderá financiar as privatizações futuras. Como não resta muito a ser privatizado, embora empresas de capital misto ainda existam, destacam-se como alvo de um processo de privatização os bancos públicos (Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal). Vale lembrar que esses foram justamente os instrumentos utilizados pelo governo Dilma quando se contrapôs aos interesses do capital bancário-financeiro. Por outro lado, sua possível privatização implica em abandonar qualquer política diferenciada de crédito para setores e segmentos, tais como a agricultura familiar e aquisição de casa própria para a população de baixa renda.

Essas propostas e outras, de todo modo, já estavam sendo discutidas no Congresso Nacional mediante encaminhamento de projetos de lei e comissões de inquérito. Exemplo disso podemos encontrar no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), criada na Câmara dos Deputados, em 2015, que, embora tenha sido instituída para investigar supostas irregularidades nos empréstimos concedidos pelo BNDES (entre 2003 e 2015), propôs que a taxa de juros aplicada pela instituição, significativamente menor que a do mercado, fosse utilizada somente para programas do setor público brasileiro e não mais para operações com o setor privado (o que sempre foi uma das características diferenciais do banco e um dos alicerces da política de fomento à indústria brasileira). Para a “governança” do banco, foi sugerida a adoção de “instrumentos de isolamento político para os diretores e suas decisões”, fazendo referência contrária ao estatuto do BNDES que normatiza que os diretores do banco serão nomeados pela presidência da república. O relatório ainda destacou que os apoios financeiros aprovados pelo BNDES, que utilizem recursos aportados diretamente pelo Tesouro Nacional ou que impliquem “alguma exposição a risco de crédito” para a União, devam ser avaliados também na perspectiva da gestão fiscal governamental (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2016).

Considerações finais

A crise política no Brasil, para além dos truísmos a ela usualmente atribuídos (“complexa”, combinada com crise econômica, etc.), não se trata simplesmente de uma forma “crítica” de resolução de conflitos distributivos entre as classes dominantes locais, em que os custos da crise seriam socializados para o conjunto dos trabalhadores. Esse é apenas seu aspecto mais evidente e que já se desenhava com o ajuste (proposto, mas não levado a cabo) por Dilma. O que se coloca como fundamento mais grave da crise é o movimento de realinhamento do Brasil (e da América Latina) com os interesses imperialistas estadunidenses, após quase uma década de não-alinhamento.
                                                                 
Do ponto de vista externo, trata-se, de uma ofensiva neoliberal, sob a égide dos Estados Unidos, sobre toda a América Latina (e sobre os chamados BRICS). Trata-se de levar a cabo as reformas incompletas ou não realizadas no período anterior da dominância neoliberal na região. Apenas para exemplificar, lembramos que, no caso brasileiro, a legislação trabalhista apresenta-se como um grande empecilho à flexibilização total do mercado de trabalho. Este, apesar de seus problemas, regulamenta a contratação e a demissão dos trabalhadores do mercado formal de trabalho, estando longe do “éden dos direitos naturais” do qual o livre-cambismo estadunidense extrai suas bases. Dentro desse escopo, um conjunto de ferramentas têm sido articulado visando uma maior fragilização do Mercosul (Mercado Comum do Sul) e a interrupção de qualquer política que fortaleça a Unasur, apontando para uma completa “estrangeirização” de atividades econômicas (petróleo, compras públicas, processos licitatórios, etc.). Porém, mesmo as reformas neoliberais já não são consideradas “razoáveis” e suficientes pelo grande capital internacional, estadunidense ou não, e seus asseclas locais; o objetivo é o de um direcionamento visando reorganizar toda a inserção externa da região. Isso se evidencia mediante o conjunto de acordos patrocinados pelos Estados Unidos (TPP, TTIP e TISA), que ampliarão a subordinação da região aos países centrais de conjunto (expressos fundamentalmente na OTAN).

Internamente ao Brasil e ponto de vista econômico, o resultado da ofensiva neoliberal será uma maior privatização do pouco que ainda resta e, principalmente, uma maior “estrangeirização” da economia. Os alvos de destaque são a justamente a Petrobrás e o setor de infraestrutura e construção civil brasileiro, objetos de investigação da Operação Lava-Jato. Do ponto de vista político, o resultado, que já tem se desenhado, será uma crescente intolerância e repressão aos movimentos sociais e de trabalhadores. Nesse aspecto, o avanço da direita não se restringe a esses “atores”: ele se dá sobre todo o conjunto de direitos humanos, isto é, não apenas aqueles direitos tidos como de segunda e terceira geração, mas também os de quarta, que incorporam o reconhecimento identitário de outrem. É necessário destacar que foi durante a experiência dos governos do PT que ocorreu o crescimento, no interior da então “base aliada” fiadora da “governabilidade”, de setores profundamente reacionários (destacadamente a bancada evangélica no Congresso Nacional), que visam explicitamente criminalizar qualquer forma de aborto e que constituem a face institucionalizada da perseguição e violência contra LGBTTs.

Por último, outro aspecto importante, que se pode concluir da experiência dos governos do PT, diz respeito aos limites colocados por um projeto fundado na conciliação de classes. Esse, como bem demonstra a história do capitalismo, está fadado a fracassar toda vez que, em seu interior, não se construa a via de sua superação pelo lado das massas populares. Isso não acontecendo, esses governos resultam tão somente como a antecâmara do avanço da direita sobre os movimentos sociais, de trabalhadores e do conjunto dos oprimidos.

Notas:
[1] na origem uma rede de doleiros, mas se estendeu à lavagem de dinheiro, pagamento de propina e corrupção em atividades da Petrobrás.
[2] A Frente Brasil Popular é formada de inúmeras organizações, entre as quais destacamos: a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional de Estudantes (UNE), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); a Frente Povo Sem Medo, embora integrada por essas mesmas organizações citadas anteriormente, com exceção do MST, abrange também o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Intersindical Central da Classe Trabalhadora e coletivos e organizações ligados ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
[3] Utilizamos o termo “capital financeiro”, apesar de suas várias acepções, justamente por sua ampla utilização. Em termos mais precisos, entendemos o mesmo como aquele apresentado por Marx como capital portador de juros, o que, na contemporaneidade, carrega um conjunto de determinações mais complexas, tais como sua dimensão de capital fictício.
[4] O Datafolha é um instituto de pesquisa e opinião do Brasil. Foi criado em 1983 pelo Grupo Folha da Manhã, vinculado ao jornal Folha de São Paulo. Hoje atua como empresa independente.
[5] Para um detalhamento das medidas realizadas, ver MARQUES e NAKATANI, 2011.
[6] Isso implicou a revisão dos contratos estabelecidos com as concessionárias de energia elétrica, gerando extremo descontentamento. Lembramos que esse setor foi beneficiado com a privatização do serviço nos anos 1990.
[7] De 4,06%, em média, no governo Lula; de 2,31% no de FHC. E de 2,08% nos três primeiros aos de Dilma e apenas 0,1% em 2014. Apesar do fraco desempenho da economia com Dilma, a taxa de desemprego foi a mais baixa da série histórica e a renda média dos trabalhadores manteve-se em alta.
[8] Segundo site da Odebrecht, a empresa atualmente desenvolve projetos em 29 países. Além de países da América Latina (praticamente toda a América do Sul, com exceção do Uruguai) e africanos, está presente nos Estados Unidos, Reino Unido, Holanda, Portugal, Espanha, Luxemburgo, Áustria, Alemanha, China e Cingapura.
[9] A única diferença foi a acachapante derrota sofrida em São Paulo, em que o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) apresentou uma diferença de aproximadamente sete milhões de votos. Apesar do nome, esse partido não tem vinculação com a socialdemocracia,
[10] Expressão usada para caracterizar a política econômica desenvolvida pelos governos Lula e Dilma, bem como o ciclo de políticas econômicas implantadas no início do século XXI por governos latino-americanos não alinhados com aquilo que se difundiu como neoliberalismo tout court. Ela não se confunde com o “novo desenvolvimentismo” de Luiz Carlos Bresser-Pereira (2016).
[11] Trata-se basicamente das Organizações Globo (das quais faz parte a Rede Globo), do Grupo Abril (revista Veja etc), Grupo Folha (jornal Folha de São Paulo etc) e do Grupo Estado (jornal Estado de São Paulo). Esses grupos atuam mediante propriedade cruzada de diferentes veículos de comunicação – jornal, revista, rádio AM, rádio FM, TV aberta e paga, provedor de internet, etc. No que se refere à quebra desse monopólio, reivindicação histórica dos movimentos sociais, nada foi feito durante dos governos Lula e Dilma. Não só quaisquer propostas de sua regulamentação não avançaram, como os governos continuaram a ele destinar recursos de propaganda, tendo como único critério a audiência. Afora isso, foi criada, em 2007, a Empresa Brasil de Comunicação, responsável pela TV Brasil, pela TV Brasil Internacional, entre outros meios.
[12] O que não faltam são os chamados “casos isolados”, que vão desde agressão a pessoas na rua pelo fato de usarem camiseta vermelha, chegando, mais recentemente, a perseguições em universidades e a organizações como sindicatos e movimentos populares.
[13] Como aponta a própria Folha de São Paulo (2016a), o índice do município de São Paulo de pessoas com ensino superior é de 28%.
[14] Dados da pesquisa disponível em http://arquivos.portaldaindustria.com.br/app/cni_estatistica_2/2016/04/04/212/RetratosDaSociedadeBrasileira_30_Rotatividade_dados.xlsx. Acesso em: 5 maio 2016.
[15] Que limitava a competência do Ministério Público na realização de investigações criminais.
[16] Como, em nossa perspectiva, o cerne da crise se localiza nas contradições abertas no interior da classe dominante, mas potencializado pelas restrições impostas ao capital devido à continuidade da crise econômica internacional e pelos interesses estadunidenses na retomada de um controle mais estrito sobre a América Latina, é importante apresentar a conceituação de “burguesia interna”. Esse é um conceito (produzido pelo marxista grego Nicos Poulantzas - 1978) que visa caracterizar uma forma de fracionamento da burguesia que vai além da diferenciação “burguesia nacional” e “burguesia compradora” (ou “associada”). Essa última teria seus interesses materiais intimamente vinculados ao interesse imperialista internacional; a “burguesia nacional” seria caracterizada historicamente em tons fortemente anti-imperialistas e a burguesia interna apresentaria uma relação contraditória com os interesses claramente imperialistas. Dispondo de uma base de acumulação própria, a burguesia interna é uma fração de classe marcada por uma relação conflitiva com as frações burguesas dominantes articuladas na cadeia imperialista internacional. Ou seja, trata-se de uma conceituação que não reduz a atuação dessa fração burguesa a um “espaço nacional fechado” e que destaca sua posição contraditória ante os interesses tipicamente imperialistas.
[17] Bem como a criação de uma regulação financeira que impunha recolhimento compulsório sobre as posições vendidas dos bancos no mercado de câmbio à vista. Para maiores detalhes sobre política macroeconômica do governo Dilma nesse período ver CAGNIN, et al. (2013).
[18] Para exemplificar, dos 531 deputados da Câmara Federal, a bancada evangélica é composta de 75, a ruralista de 109 e a empresarial, isto é, interessada na flexibilização do mercado de trabalho, renúncias e incentivos fiscais de 221 deputados (DIAP, 2014).
[19] Essa posição pode ser identificada, por exemplo, nas publicações de Paul Craig Roberts (2016), insuspeito de qualquer queda «esquerdista», que foi Secretário Assistente do Tesouro no governo de Ronald Reagan e é editor associado do Wall Street Journal.
[20] Não deixa de ser curioso que a embaixadora dos Estados Unidos no Brasil (desde agosto de 2013, momento de clara ascensão de manifestações de direita) seja Liliane Ayalde. A mesma serviu como embaixadora dos Estados Unidos no Paraguai de 2008 a 2011, tendo transferido seu cargo meses antes do “impeachment” do presidente Fernado Lugo (22 de junho de 2012). No dia 24 de maio de 2016, o governo dos Estados Unidos anunciou novas mudanças na embaixada no Brasil, substituindo-a Peter Michael McKinley, o atual representante dos EUA no Afeganistão. De todo modo, no hay que creer en brujas, pero que las hay, las hay.
[21] O Acordo de Parceria Transpacífica (TTP) engloba os Estados Unidos, Japão, Canadá, Austrália, Chile, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura e Vietnã; esses países representam cerca de 40% do PIB mundial. O Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) é um acordo negociado centralmente entre Estados Unidos e União Europeia (UE); os potenciais signatários desse acordo representariam cerca de 70% do PIB mundial. Já o Acordo sobre o Comércio de Serviços (TISA), também liderado pelos EUA e UE, envolve cerca de 50 países. Todos esses acordos têm sido negociados em sigilo.
[22] Particularmente nos vazamentos feitos pelo site Wikileaks e mesmo em declarações do governo dos EUA e da Comissão Europeia.
[23] “But building walls to isolate ourselves from the global economy would only isolate us from the incredible opportunities it provides. Instead, America should write the rules. America should call the shots. Other countries should play by the rules that America and our partners set, and not the other way around. That’s what the TPP gives us the power to do” (Barack Obama).
[24] Apesar de divergências conceituais que um exame mais cuidadoso das variadas utilizações do termo “neoliberalismo” podem oferecer – de uma perspectiva restrita à operacionalização de variáveis econômicas básicas como câmbio e juros, como mencionado anteriormente, e passando por outras que “veem” o neoliberalismo como decorrente de pretensa oposição entre “Estado” e “Mercado” –, há pelo menos uma razão que já justificaria sua utilização: no Brasil, os chamados “neoliberais” odeiam ser identificados enquanto tais, pois a disputa política simbólica foi parcialmente vencida pelas esquerdas brasileiras nos anos 1990, sendo identificado a este termo, desemprego, privatizações e perdas de direitos. Ademais, o destaque é a restauração como uma ofensiva política articulada por forças sociais que estavam, até o momento, sentindo-se ameaçadas.
[25] Michel Temer era o vice de Dilma Rousseff e, por isso, o primeiro na linha de sua sucessão.
[26] Os economistas são: Marcos de Barros Lisboa, Bernard Appy, Marcos Mendes e Sérgio Lazzarini.
[27] A Constituição de 1988 determinava que as receitas de contribuições fossem de uso exclusivo da Seguridade Social, que compreende principalmente a cobertura das aposentadorias e pensões, os benefícios assistenciais e a saúde pública. Desde 1994, 20% das receitas de contribuições e impostos podem ser livremente usadas pelo governo federal.
[28] É preciso lembrar que a Fórmula 85/95, atualmente em vigor, que é o resultado da soma do tempo de contribuição (30 anos e 35 anos, para mulheres e homens, respectivamente) com a idade (55 anos e 60 anos) já contempla a mudança demográfica no seu componente de idade, mas, diferentemente do que o PMDB e outros partidos estão propondo, reconhece que as situações de ingresso no mercado de trabalho são muito desiguais, refletindo a desigualdade geral do país.
[29] O que, vale destacar, não é uma mera contingência, mas sim uma expressão dessa restauração neoliberal patrocinada pela fração bancário-financeira brasileira em consórcio com frações associadas ao grande capital internacional, como já comentado.

São Paulo, 30 de maio de 2016.
                                                                  
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(*) Rosa Maria Marques é Professora titular da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUCSP); Patrick Rodrigues Andrade é Professor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUCSP).

(Com odiario.info, de 8 de junho de 20160)

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