Morre Cony, mago da palavra e da condição humana

                                                                            

Paulo Roberto Pires (*)

O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony morreu, por volta das 23h de sexta-feira (5), aos 91 anos. Ele estava internado desde 26 de dezembro no Hospital Samaritano, no Rio. A causa da morte foi falência múltipla de órgãos. A informação foi confirmada ao G1 pela  assessoria de imprensa da Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual o autor era membro desde 2000.

Com uma longa carreira de jornalista, iniciada ainda nos anos 1950, e atuação nos principais jornais e revistas do país ao longo das últimas décadas, Cony ganhou era considerado um dos maiores escritores brasileiros vivos e ganhou diversos prêmios.

É autor de 17 romances, como “O ventre” (1958), “Pilatos” (1973), “Quase memória” (1995), que vendeu mais de 400 mil cópias, e “O piano e a orquestra” (1996). Com os dois últimos, ganhou o Prêmio Jabuti, uma das mais tradicionais distinções literárias do Brasil.

Também escreveu coletâneas de crônicas, volumes de contos, ensaios biográficos, obras infantojuvenis, adaptações e criou novelas para a TV. Foi comentarista de rádio, função que exerceu até o fim da vida, na CBN.

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio em 14 de março de 1926. Era filho do jornalista Ernesto Cony Filho e de Julieta Moraes Cony. Cursou humanidades e filosofia no Seminário de São José.

Começou a carreira de jornalista em 1952, como redator do “Jornal do Brasil” – e entre 1958 e 1960 colaborou no “Suplemento Dominical” do mesmo veículo, escrevendo contos, ensaios e fazendo traduções.

Seu primeiro romance foi “O ventre” (1958), que havia sido escrito em 1955, quando o autor tinha 29 anos, para um concurso promovido pela ABL. Depois, vieram “A verdade de cada dia” e “Tijolo de segurança”, com os quais ganhou, por duas vezes consecutivas, o prêmio Manuel Antônio de Almeida.

Já em 1961, entrou para o “Correio da Manhã”, nas funções de redator, cronista, editorialista e editor. Em 1964, após o Golpe Militar, chegou a ser preso em diversas ocasiões e se exilou na Europa e em Cuba.

Mais tarde, trabalhou por mais de 30 anos na revista “Manchete” e foi diretor de “Fatos & Fotos”, “Desfile” e “Ele Ela”.

Entre 1985 e 1990, dirigiu o setor de teledramaturgia da Manchete, tendo sido criador das novelas “Marquesa de Santos”, “Dona Beija” e “Kananga do Japão”.

Em 1993, substituiu Otto Lara Resende como cronista da “Folha de S.Paulo”. Também entrou para o conselho editorial do mesmo jornal.

Em 1998, foi condecorado pelo governo francês no Salão do Livro de Paris com a disitinção L’Odre des Arts et des Lettres. Em 23 de março de 2000, foi eleito para a cadeira número 3 da ABL.

Carlos Heitor Cony foi casado por 40 anos com Beatriz Latja. Ele tinha duas filhas, Regina e Verônica, de outro casamento, e um filho, André, de uma terceira relação.

Veja, abaixo, prêmios recebidos por Carlos Heitor Cony:

Duas vezes o Prêmio Manucel Antônio de Almeida, pelos romances “A verdade de cada dia”, em 1957, e “Tijolo de segurança”, em 1958;
Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra, em 1996;
Prêmio Jabuti em 1996, pelo romance “Quase memória”;
Prêmio Jabuti em 1997, pelo romance “O piano e a orquestra”;
Prêmio Jabuti em 2000, pelo romance “Romance sem palavras”;
Em 1998, foi condecorado pelo governo francês no Salão do Livro de Paris com a disitinção L’Odre des Arts et des Lettres;
Grande Prêmio da Cidade do Rio de Janeiro, em 2014, atribuído pela Academia Carioca de Letras.


Depoimentos sobre Carlos Heitor Cony

— Juca Kfouri, jornalista, em depoimento à GloboNews:

“Me aproximei dele na Copa do Mundo da França. Eu tive com ele pelo menos duas passagens marcantes. Fomos jantar em um restaurante finíssimo, e eu pedi um filé, mas eles pediram iguarias. E a conta foi fora de qualquer propósito, mas evidentemente foi dividida. Dois dias depois, leio na coluna dele que eu paguei o filé mais caro da minha vida. Essa era a veia humorística dele, a capacide de transformar algo do cotidiano em crônica”.

— Merval Pereira, jornalista e escritor, ao G1:

“Cony é maior escritor brasileiro vivo. Uma perda muito grande. Eu tinha relação com ele muito boa, afetuosa, além da admiração pelo escritor e jornalista. Um dos hobbies dele era pintura e ele me deu uma gravura dele, assinada por ele. Guardo com muito carinho na minha casa”.

— Milton Jung, escritor, em depoimento à GloboNews:

“Meu privilégio foi dividir um quadro com ele na CNB discutindo temas do dia a dia. Eu no papel de jornalista levantada o tema e o Cony vinha com a história. […] Durante 16 anos ele permitiu que tívessemos a riqueza e a inteligência dele com um viés histórico. Ele disse coisas incríveis sobre a morte. Quando fez 90 anos ele não queria festa”.

— Nélida Piñon, escritora, em depoimento à GloboNews:

“Ele gostava de ser reconhecido com grande escritor. Foi um convívio maravilhoso. Há de destacar o homem com sólida formação intelectual e escritor brilhante. Nós conversávamos sobre Deus. Ele tinha uma nostaliga de um Deus que não queria acolher no coração dele. Ele teve um grande amor pela Mila, a cachorrinha da vida dele. Ele me disse que nunca foi tão amado quanto foi pela Mila”.

— Viviane Mosé, filósofa e poeta, em depoimento à GloboNews:

“Eu, Cony e Xexéo participamos de um programa de rádio por muitos anos na CNB. Às vezes a gente divergia, mas ele convivia muito bem com a diferença. Outra coisa que me marca muito é a força de vida, a gente fazia o programa todo dia, e o Cony mesmo doente, mesmo com a voz embargada, jamais estava fora. Era presente, lutava pela vida, fazia viagem internacional para ser homenageado. Era a valorização desse ato simples de existir. Ele era uma pessoa viva, intensa”.


‘Ninguém quer morrer sofrendo, chorando e gritando. Eu, pelo menos, não. Quero morrer numa boa’, diz Carlos Heitor Cony (Foto: Divulgação)

Leia a crônica de Paulo Roberto Pires sobre Carlos Heitor Cony, publicada na Folha de S.Paulo

Cony encarnou como poucos a figura de escritor profissional

Nada que é escrita foi estranho a Carlos Heitor Cony. Em 70 anos ininterruptos de trabalho, encarnou como poucos no Brasil a figura do escritor profissional. Visitado com frequência pela musa incontornável da encomenda, fez do deadline o horizonte frequente de uma longa lista de romances, relatos jornalísticos, adaptações de clássicos, biografias, roteiros de cinema e até argumentos de telenovelas.

Virtude ambígua em literatura que se quer emulada por gênios, a versatilidade terminou sombreando o soberbo talento de um autor de difícil definição, vincado pelo desencanto do jovem seminarista que abjurou a fé para passar a vida recusando qualquer pertencimento coletivo, da estética à política.

Foi Ênio Silveira quem decidiu publicar em 1958 o romance que Cony, um jovem jornalista, viu recusado num concurso oficial por seu conteúdo”forte”. Sufocante, “O Ventre” acompanha a trajetória de um filho da classe média carioca que, fruto do adultério da mãe, vive num mundo inóspito que tudo lhe recusa.

Nascia assim um escritor que conjugava o fino trato existencial dos personagens com uma popularidade incomum. Contratado pela Civilização Brasileira, entregava praticamente um livro por ano. Dentre estes, há pelo menos duas joias, “Informação ao Crucificado” (1961), relato de tintas autobiográficas sobre um seminarista e a dúvida da conversão, e “Antes, o Verão” (1964), tristíssima crônica de um fim de casamento ambientada numa casa de praia varrida por ventos e areia.

No ano do golpe de 64, o romancista best seller torna-se desassombrado crítico do regime. Mais de mil pessoas vão à Cinelândia na noite de autógrafos de “O Ato e o Fato”, compilação de crônicas do jornal Correio da Manhã que dão conta dos movimentos sinuosos da quartelada.

O encontro da política com sua literatura meditativa, para dentro, não é pacífico. Preso seis vezes pela ditadura, escreve, entre uma cadeia e outra, “Pessach: a Travessia”. Nesse romance de 1967, consuma-se a visão do homem radicalmente só, desta vez indisposto com a luta armada e com princípios tidos como pacíficos por determinada militância de esquerda.

Perseguido pelos militares e marginalizado por seus opositores, submerge numa longa colaboração com Adolpho Bloch, das revistas à extinta TV Manchete. Em “Pilatos”, romance iconoclasta de 1974, declara romper com a literatura. Para que se tenha a temperatura do livro, seu protagonista vaga pelo Rio de Janeiro carregando um vidro com o próprio pênis amputado.

Cony só voltaria à literatura, e em grande estilo, 20 anos depois. Quase memória, o delicado romance em que acerta contas com o pai, desperta reações apaixonadas. Sempre achei comovente testemunhar como um escritor reencontra, para valer, seu público leitor.

Seria injusto exigir dessa fase final a excelência de seus melhores momentos. Mas dela fica ainda “A Casa do Poeta Trágico” (1997). A enviesada história de amor que nasce entre as ruínas de Pompeia traz ecos do magnífico “Viagem à Itália”, de Roberto Rossellini, e a marca inconfundível do romântico antissentimental que Cony sempre foi.

À margem do cânone, a léguas da unanimidade, Carlos Heitor Cony não é óbvio. Em algum momento, de alguma forma, ele não se deixava capturar. Sua grande arte talvez tenha sido a fuga, garantia de que nem o mundo nem ninguém iria esmagar sua radicalíssima singularidade, princípio desde sempre inegociável.

(*) PAULO ROBERTO PIRES é jornalista, crítico e editor da revista “Serrote”

(Com a Associação Brasileira de Imprensa)

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