Marielle Franco e o país que nunca foi

                                                                       

Ga­briel Brito (*)


Cons­ter­nação e pavor são apenas duas de tantas pa­la­vras que podem nos de­finir neste mo­mento, após o co­varde as­sas­si­nato da ve­re­a­dora Ma­ri­elle Franco e An­derson Gomes, que di­rigia o carro pela rua dos In­vá­lidos, Lapa, após evento po­lí­tico aberto ao pú­blico. 

O Brasil não é país, não é so­ci­e­dade, não é re­pú­blica, que dizer qual­quer ra­bisco de de­mo­cracia. É um quintal onde a carne negra segue sendo a mais ba­rata do mer­cado, como sempre, en­quanto a es­po­li­ação total dos ho­mens, mu­lheres e na­tu­reza pre­cisa au­mentar seu es­paço de re­pro­dução.

O crime he­di­ondo não cabe em ne­nhum dos dis­cursos po­lí­ticos do­mi­nantes. Trata-se da crô­nica, em ca­pí­tulo mais ilustre, do pão nosso de cada dia, amas­sado por la­drões de terno e gra­vata e má­fias de todo tipo a co­mandar cada passo da nossa vida.

O crime he­di­ondo tam­pouco cabe nos pa­té­ticos no­ti­ciá­rios, que mesmo de­mons­trando sin­cero pesar não de­dicam me­tade do tempo e ver­bor­ragia gastos nos si­mu­la­cros de pro­testos contra a cor­rupção, en­ce­nados pela gente branca “de bem”, os pró­prios be­ne­fi­ciá­rios e her­deiros da rou­ba­lheira co­ti­diana que marca a nossa vida.

Até tentam mos­trar res­peito e in­dig­nação. Mas é ní­tido como não “sentem a coisa”, não se re­torcem de dor por dentro. Não há ma­ni­fes­ta­ções cons­tantes de in­dig­nação e pre­o­cu­pação, como po­demos ver nos ri­dí­culos de­bates sobre a crise econô­mica que se­quer os atinge neste as­pecto. Ri­dí­culos porque de­fendem a pauta que apro­fun­dará a mesma tra­gédia san­grenta que são obri­gados a co­brir – e se pro­teger. 

Ri­dí­culos de­bates também sobre a tal in­ter­venção fe­deral com o Exér­cito. Gas­taram mais tempo dis­cu­tindo se de­víamos chamar de “in­ter­venção fe­deral” ou “in­ter­venção mi­litar”. Aquela cri­ança com mo­chila re­vis­tada por sol­dado não me­receu o mesmo tempo. Gente branca “de bem”, rei­tere-se. Re­pita “de bem” mil vezes, todo dia.

Estão aba­tidos. Mas mo­men­ta­ne­a­mente, é claro, porque fazer isso com uma ve­re­a­dora é de fato im­pac­tante para esses parvos que fe­cham os olhos aos in­te­resses ines­cru­pu­losos de quem toma as de­ci­sões que eles mesmos tanto exigem pra “re­solver a crise”. Matar a mo­le­cada na que­brada e jogar num ma­tagal vá lá, mas uma eleita na nossa festa de­mo­crá­tica? Pega mal, vamos tentar mos­trar in­dig­nação. 

Fica pa­tente que as ins­ti­tui­ções ofi­ciais não têm mais qual­quer ser­ventia para a pro­moção da jus­tiça e do nosso bem estar. Só po­demos brincar se acei­tarmos todas as re­gras que os donos de tudo e seus as­se­clas, in­clu­sive ar­mados, per­mi­tirem. 

Se formos só­cios do roubo e do es­cárnio, tudo bem, viva a de­mo­cracia. Se qui­sermos in­ter­ditar a trans­fe­rência de nossas apo­sen­ta­do­rias para a bur­guesia fi­nan­ceira, por­rada na cara, in­clu­sive de mu­lheres e idosos, como se viu ontem na Câ­mara Mu­ni­cipal pau­lis­tana que vo­tava o puro e sim­ples as­salto da ve­lhice de tra­ba­lha­dores para os seus amados fi­nan­ci­a­dores da car­reira po­lí­tica, os pró­prios sa­cer­dotes do deus-mer­cado. Um deles, o mais fun­da­men­ta­lista, de­pois de en­ganar a ci­dade por um ano e três meses agora quer brincar de go­vernar o es­tado mais rico do país. “Lo­co­mo­tiva” rumo ao abismo. Haja cha­cina de­pois.

Por isso mesmo de nada adi­antam a es­tu­pe­fação e até luto por parte de quem de­fende que se­jamos rou­bados dia e noite, men­tindo, omi­tindo e frau­dando de­bates fun­da­men­tais de forma ab­so­lu­ta­mente in­can­sável. 

A conta é muito sim­ples. Se você quiser deixar os ha­bi­tantes da Maré ou do Jardim São Luiz sem renda, pois os lu­cros pri­vados de uma su­per­casta pre­cisam eter­nizar sua as­censão, mesmo sem pro­duzir um prego, o sangue es­cor­rerá mais e mais. Seja porque os es­po­li­ados saiam pra tomar por mal aquilo que não lhes dão por bem, seja porque algum ca­nalha de oca­sião in­ven­tará um ini­migo in­terno a ser com­ba­tido – “sem o pe­rigo de uma nova Co­missão da Ver­dade”, como dito por um desses abu­tres de farda que in­sis­timos em aceitar na nossa vida.

Pois é isso. O Rio de Ja­neiro está fa­lido de­pois de uma dé­cada de ne­go­ci­atas dos fa­mosos ho­mens brancos li­be­rais, ba­nhados em con­fete e es­puma diu­tur­na­mente na mídia que mo­no­po­liza a pa­lavra e a opi­nião, tão ciosa do bem estar da eco­nomia – essa paixão platô­nica pela qual nu­trem.

Foram mais de 100 bi­lhões de isen­ções fis­cais pros Eikes da nossa vida se es­bal­darem. Onde estão estes he­róis agora? Onde está Edu­ardo Paes, que tanto des­prezou as opi­niões con­trá­rias à mer­can­ti­li­zação total da ci­dade?

Um Es­tado e uma so­ci­e­dade fa­lidos só podem ser a por­teira aberta pra cri­mi­na­li­dade total. Tanto faz se foi mi­lícia, PM ou facção do nar­co­trá­fico. No fim das contas estão todos de­ses­pe­rados pelo mesmo butim, o mesmo be­ne­fício ma­te­rial que somos es­ti­mu­lados a buscar desde a in­fância. 

Onde até os ser­vi­dores pú­blicos ficam sem sa­lário e os ho­mens brancos li­be­rais su­gerem fe­cha­mento de uni­ver­si­dades pra “eco­no­mizar gastos” (esses imundos chamam in­ves­ti­mento em edu­cação de “gasto”), ao lado da eterna tara de mi­li­ta­rizar os ban­tus­tões do apartheid tão ar­du­a­mente er­guido por eles, só resta o saque, a pi­lhagem, a luta ar­mada com pro­pó­sitos anti-hu­manos.

Como nos foi dito pela pró­pria Ma­ri­elle há poucos dias, é este Es­tado, dos ho­mens brancos li­be­rais, que “nega a seus agentes o di­reito a uma po­lí­tica de se­gu­rança me­lhor”. Tá bom assim, as eva­sões fis­cais e contas em offshores só en­gor­daram nesses tempos de crise. O trá­fico nem se fala, um ne­go­cião in­fa­lível. 

Que a ralé, in­clu­sive aquela em­pre­gada pelo Es­tado, do­pada pela des­po­li­ti­zação in­ces­sante com a qual somos bom­bar­de­ados, se mate todo dia, cada vez mais, é uma ex­ce­lente no­tícia para esta es­cória ilus­trada.

Não querem nos dar um país de­cente, acham bo­nito atri­buir a fa­lência ge­ne­ra­li­zada a di­reitos hu­manos, tra­ba­lhistas e so­ciais. Só po­demos nadar em pis­cinas de sangue cada vez mais fundas.

Vem aí mais uma farsa elei­toral e a im­be­ci­li­dade pro­mete vi­cejar como nunca. Não há em­prego, renda, di­reitos, se­gu­rança, mas vão jurar de pés juntos que o pro­blema é a mu­lher abortar, abrir a boca, viver de igual pra igual. Ou o gay amar quem quiser à luz do dia. Ou os ne­gros se for­marem e pós-gra­du­arem, como Ma­ri­elle con­se­guira. Ou o gari rei­vin­dicar sua apo­sen­ta­doria. 

Aliás, os ho­mens brancos li­be­rais acabam de aprovar re­a­juste para os po­li­ciais mi­li­tares em SP. Até aí ótimo, mas agora passam a ga­nhar o dobro por hora de tra­balho em re­lação aos “es­quer­distas que dou­trinam as cri­an­ci­nhas na es­cola pú­blica”. Es­cola pú­blica onde os pro­xe­netas nunca pu­seram um pé, mas lutam ar­du­a­mente pra fe­char. “Poupar re­cursos na crise”, dizem os mais de­sa­ver­go­nhados.

In­can­sá­veis na ma­nu­tenção da se­gre­gação que tem cara e cor, esses ho­mens brancos li­be­rais, agora mesmo, dis­cutem, como “me­dida” contra o as­sas­si­nato de Ma­ri­elle, o fim do ate­nu­ante ju­rí­dico em crime x ou y, o au­mento da pena para crimes de em­bos­cada e ou­tras ni­nha­rias re­vol­tantes.

Não há ne­nhuma saída ra­ci­onal para o pe­queno Brasil. Zerar tudo e co­meçar de novo é o mí­nimo. E isso ja­mais po­derá ser feito por meio de um pacto dito ci­vi­li­zado. Eles matam quantos mi­lhares pre­ci­sarem pra manter o pri­vi­légio e o roubo le­ga­li­zados. Per­deram a ver­gonha até de de­fender o ne­o­es­cra­vismo. Ontem mesmo um homem ca­sado com ex-mu­lher de ve­re­ador mi­li­ciano foi as­sas­si­nado na zona oeste ca­rioca, na frente do filho de 5 anos. Não tem des­canso.

Aliás, an­te­ontem, pra quem não en­tende ta­manha li­gação das tra­gé­dias a este ente me­ta­fí­sico de­no­mi­nado mer­cado, o líder co­mu­ni­tário Paulo Sergio Al­meida também foi as­sas­si­nado. A razão? Talvez por de­nun­ciar os crimes am­bi­en­tais da mi­ne­ra­dora no­ru­e­guesa Hydro, que apesar de pi­lhar o pobre es­tado do Norte não con­segue evitar que os re­jeitos de sua for­tuna in­vadam os rios de onde os que só veem o pro­gresso passar tiram al­guma so­bre­vida. O exem­plar ca­pi­ta­lismo es­can­di­navo...

Se­jamos prá­ticos: se um Es­tado ca­nalha como este ad­mite 60 mil ho­mi­cí­dios por ano é porque a tra­gédia é ir­re­ver­sível de­mais. Fora que também sig­ni­fica ser bem mais, pois esse é o nú­mero de corpos que chega ao IML. E como dito pela mesma Ma­ri­elle em seus úl­timos ins­tantes por essa pobre terra, “ontem foram mais dois no valão”. 

Agora temos que ler gente da es­tirpe do go­ver­nador-es­po­li­ador Pezão dizer que se tra­tava de al­guém ad­mi­rável ou um clep­to­crata que já devia estar preso há pelo menos um ano dizer que la­menta muito e vai in­ves­tigar. Como se eles não co­lo­cassem todo dia um ti­jo­linho a mais nessa es­piral de tra­gédia e, claro, nos muros do nosso mal­dito apartheid, que sim­ples­mente se re­nova nessas ins­ti­tui­ções. Como se eles pró­prios, como nos dis­sera Ma­ri­elle, não ti­vessem “lei­loado o Es­tado”.

Fa­lando nas ins­ti­tui­ções tão alvas, ainda somos obri­gados a lidar com “mo­bi­li­zação na­ci­onal” (assim chama, pa­te­ti­ca­mente, um certo mo­no­pólio mi­diá­tico) de ma­gis­trados que ga­nham seus 30 ou 50 mil reais por mês pelo au­xílio-mo­radia de mais al­guns mi­lhares de reais, mesmo se re­sidem na ci­dade onde des­pa­cham sua inu­ti­li­dade so­cial. Mas claro que qual­quer ser­vidor pú­blico apo­sentar com di­reito a 3 mil reais men­sais “faz mal pra eco­nomia”. 

Nada de novo. O quin­talzão que só sabe ex­portar ma­téria prima sempre foi assim, por mais que te­nham ven­dido um ates­tado de mai­o­ri­dade nos úl­timos anos, com­prado por meio de pro­pinas e acha­ques, en­quanto matam as Ma­ri­elles do campo e da ci­dade a todo ins­tante. 

Uma in­sur­reição ge­ne­ra­li­zada, que pa­ra­lise o país e sua sa­grada eco­nomia pelo tempo que for ne­ces­sário, é a única saída digna. Mas tudo de­verá se­guir como está.

A en­tre­vista que pu­bli­camos com Ma­ri­elle Franco em 24 de fe­ve­reiro
In­ter­venção fe­deral no Rio: “leilão do Es­tado e falta de in­ves­ti­mento nos pro­fis­si­o­nais da se­gu­rança

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania


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(Com o Correio da Cidadania)

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