A Venezuela que eu vi

                                                                          
 Bruno Carvalho  

É um dever de solidariedade romper a barragem mediática contra a Venezuela. Não para iludir falhas ou ocultar problemas, mas para compreender porque resiste o processo bolivariano à sabotagem e ao ataque directo das maiores potências imperialistas: porque, apesar de todas as dificuldades, mantém o apoio do povo.

Regressar a Caracas é como regressar a casa. Quando se abre a porta automática das chegadas no Aeroporto Simón Bolívar, a atmosfera pesada de humidade e calor é a garantia de que chegámos às Caraíbas. Lá fora, Marciano Briceño, ex-responsável internacional da Juventude Comunista da Venezuela, e Carlos Casanueva, antigo combatente da Frente Patriótica Manuel Rodriguez, braço armado do Partido Comunista do Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet, dão-me boleia até ao Hotel Limón, em Parque Central.

 Fazemos a viagem dentro de um Saipa, um carro iraniano baptizado de Turpial e que durante anos, graças ao governo de Hugo Chávez, pôde ser adquirido a preços vantajosos pelos venezuelanos. Nas curvas, o automóvel geme e Marciano diz-me que se trata de uma peça difícil de encontrar e que por isso é muito cara.

Desde que Estados Unidos e União Europeia aprovaram um conjunto de sanções contra a Venezuela, os bancos internacionais bloqueiam as transferências e impedem a importação de produtos de todo o tipo. As principais potências mundiais querem impedir o acesso a medicamentos, alimentos, materiais de construção, produtos de higiene e peças de automóveis, entre outros. 

O objectivo é asfixiar o povo venezuelano. Apertar-lhe o pescoço enquanto a imprensa diz que o problema é dos pulmões. Apesar de o governo tentar controlar alguns preços, os empresários e comerciantes, entre os quais muitos portugueses, tratam de açambarcar os produtos e inflacionar os preços.

Carlos Casanueva recorda o que aconteceu ao seu país quando ousou eleger um presidente com um programa eleitoral de esquerda. Durante meses, no Chile, viveu-se uma situação económica igualmente marcada pelo açambarcamento e escassez de alimentos, sabotagem dos sistemas de distribuição e transporte de mercadorias e o caos geral no abastecimento, acompanhados de uma campanha de ódio contra o governo pela imprensa de então, que provocavam mal-estar na população. 

Foi então que Salvador Allende decidiu criar as Juntas de Abastecimento e Controlo de Preços (JAP). Copiando o modelo do presidente que acabou morto dentro de um palácio presidencial bombardeado por militares golpistas, Nicolás Maduro anunciou, em 2016, os Comités Locais de Abastecimento e Produção (CLAP).

Na estrada que atravessa a cordilheira que separa o mar de Caracas atravessamos vários túneis. À entrada de cada um deles, surgem os rostos de Simón Bolívar e Hugo Chávez. Como quem não volta a casa há alguns anos, procuro saber se está tudo no sítio. Se Caracas continua a ser a mais bonita das cidades feias, se continua a ser a cidade da eterna Primavera, a cidade que encontrei de cada uma das vezes que cá vim desde que aqui vivi quase meio ano em 2008.

Por este caminho, chegou José Martí a Caracas, em 1881, vindo de Nova Iorque, para estabelecer-se seis meses na capital venezuelana em busca de apoio político e económico para a causa da independência de Cuba. 

Sobre a sua chegada à que chamou a Jerusalém da América Latina, escreveu: «Contam que um viajante chegou a Caracas ao anoitecer e, sem sacudir a poeira do caminho, não perguntou onde se comia ou dormia, senão como se ia aonde estava a estátua de Bolívar. E contam que o viajante, sozinho com as altas e perfumadas árvores da praça, chorava diante da estátua que parecia que se mexia como um pai quando se aproxima de um filho.»

No primeiro dia, de manhã, regressei à mesma estátua onde um dia se ajoelhou José Martí. Depois de esperar pelo metrô um terço do tempo a que estou habituado em Lisboa, vi a cidade à luz do dia. Esforço-me por me lembrar de tudo o que li e ouvi em jornais, rádios e televisões em Portugal e desato a olhar para todos os pormenores. 

Ao contrário do que espelha a maioria dos órgãos de comunicação social, o dia-a-dia na capital caribenha transcorre com normalidade. Não há qualquer sinal da crise humanitária. Nos dias anteriores à minha chegada, dizia-se que a maioria dos semáforos em Caracas estavam avariados. Passaram-se dias até encontrar um que não funcionasse. 

Os principais serviços públicos e o comércio estão abertos. Há jornais e canais de televisão da oposição. Nas ruas, vê-se propaganda de partidos contrários ao governo. Não há qualquer sinal de tensão como a que vivi nas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, assediadas pelo governo fascista da Ucrânia. Não há sinais de magreza extrema como vi entre camponeses pobres ou sinais da morte a rondar o rosto de crianças indígenas quando visitei a Colômbia no ano passado.

Há de facto uma crise económica e sabia-o de antemão. Como me contou Carlos Casanueva, não era novidade que os Estados Unidos e a União Europeia tentavam aplicar com a Venezuela a mesma estratégia que aplicaram com o Chile. 

A diferença é que contra Salvador Allende conseguiram comprar as forças armadas enquanto que na Venezuela os militares continuam a ser um pilar essencial na preservação do regime democrático e do processo bolivariano. 

Com a especulação fazem disparar a inflação e com as sanções tentam replicar na Venezuela o que fizeram com Cuba sabendo que, por razões históricas, políticas e sociológicas, é infinitamente mais difícil que o povo venezuelano resista a uma situação desse tipo. O certo é que me veio à memória a criminosa decisão, depois da Guerra do Golfo, do Conselho de Segurança da ONU de ampliar as sanções sobre o Iraque em 1991, com a consequente morte de mais de um milhão de pessoas, sobretudo crianças.

Pelas ruas e avenidas de Caracas, há murais por todas as partes. Hugo Chávez gostava de repetir a frase de José Martí de que «amor com amor se paga». 

Lembro-me da maré popular que o acompanhava em cada comício e de quando reconhecia que apesar de não ser capaz de retribuir tanto amor ele lhes pertencia e deles seria até morrer. E assim foi. Por todas as partes, sobretudo nas fachadas dos 2,4 milhões de apartamentos entregues às famílias mais pobres, aparece a assinatura do homem que só entrou para o exército porque queria ser jogador de basebol.

Mas, apesar da normalidade, a asfixia sente-se. Apesar das acusações, a verdade é que tudo o que depende do governo é praticamente grátis: os transportes, o combustível, a electricidade, o gás, a água, as telecomunicações. As rendas estão congeladas há anos e é praticamente impossível que um proprietário possa despejar um inquilino. 

Todos os preços que dependem de privados andam pelas nuvens. Por isso, com os cabazes quinzenais entregues pelas organizações dos CLAP em cada bairro, o governo tenta fazer chegar à população produtos básicos a preços acessíveis sem intermediários.

É uma guerra, dizem as forças de esquerda, que tem as suas vítimas. Foi o caso de vários portugueses donos de uma padaria no bairro de Altagracia, junto ao palácio presidencial. Um dia, a população fartou-se, invadiu a loja e chamou os serviços de fiscalização do Estado. 

Para além de inflacionar os preços, escondiam produtos para encenar a escassez de produtos. Conversei com um dos jovens que participou na expropriação da padaria e o resultado é magnífico. Produz-se mais pão e a preços mais acessíveis do que antes. Mas tiveram que resistir. Durante vários dias, geraram-se batalhas campais em frente à loja que antes se chamava Mansion Bakery e que agora se chama La Minka.

Por outro lado, é certo que os venezuelanos estão a emigrar mais do que antes. Toda a gente tem um familiar no exterior. Mas também é certo que esta questão está a ser instrumentalizada. Percentualmente, saíram tantos venezuelanos do país como portugueses do nosso durante o governo liderado por Passos Coelho e Paulo Portas. 

Para estas contas, as organizações internacionais juntam também todos aqueles que não estão a emigrar mas a regressar aos seus países. Como é o caso dos portugueses e de outras nacionalidades como a colombiana. Muitos deles regressam pouco depois à Venezuela em choque pelas condições que encontram noutros países. Mas o certo é que a emigração é um sintoma de uma crise que é real e tem culpados bem definidos.

Numa daquelas conversas que duram horas com o ex-ministro do Comércio de Hugo Chávez, Eduardo Samán, ficou claro que uma das derrotas do processo bolivariano foi não ter conseguido até ao momento, sobretudo durante o período de bonança, superar a dependência do petróleo e diversificar a economia. 

Hoje, o barril de petróleo abaixo dos 50 dólares é um rastilho de pólvora para um país em que mais de 90% das exportações são ouro negro. Ora, se a Venezuela importa quase tudo e se passou a receber menos de metade dos dólares que recebia antes, isto gerou uma profunda crise económica com menos consequências sociais, apesar de tudo, que aquelas de outros governos capitalistas anteriores apostados em preservar os lucros dos grandes grupos económicos e financeiros.

Durante cerca de duas semanas, de Caracas a Maracay e de Choroní a Chiriviche, conversei com empresários, operários, pescadores, livreiros, ex-ministros, deputados, comerciantes, jornalistas, autarcas, sindicalistas, sobretudo chavistas mas também opositores.

Está claro que a oposição nunca esteve tão fragilizada. Profundamente dividida, é criticada pela esmagadora maioria da população. Inclusivamente por aqueles que odeiam o processo bolivariano. O desespero é grande e pedem a intervenção externa. Por outro lado, a crise económica também tem efeitos políticos. 

Para uma mãe não importa muito se o responsável pela escassez de fraldas é o governo ou o bloqueio do imperialismo. Ela quer fraldas. É nesta brecha que cresce a contestação daquela camada da população que resgatada da miséria durante os governos de Hugo Chávez não pensou ver decair a sua qualidade de vida.

Ouvi várias pessoas definirem-se chavistas mas acusarem Nicolás Maduro de trair o legado do seu antecessor. Retenho uma conversa, também de horas, com um importante empresário. Fiel ao legado de Hugo Chávez e defensor de Nicolás Maduro, recordou um elemento importante. A Venezuela nunca invadiu nenhum país. 

A única vez que saíram forças do seu território foi para libertar outros países da ocupação espanhola. E deixou um aviso, quase como um canto poético. Se ousarem invadir a Venezuela, haverá contentores de armas espalhados por todas as praças Simón Bolívar que há no país. 

Lembrei-me das palavras de Pablo Neruda e deste povo que despertou com Hugo Chávez. «Padre, le dije, eres o no eres o quién eres? Y mirando el Cuartel de la Montaña, dijo: “Despierto cada cien años cuando despierta el pueblo”».

Fonte: https://www.abrilabril.pt/internacional/venezuela-que-eu-vi

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