Atravessando a tempestade em direção à nova ordem

                                                                                   

                                                                        

 Luís Roberto Barroso (*)

I. O tempo que nos tocou viver

Uma vez mais, ao longo de 2018, o Supremo Tribunal Federal esteve no centro dos acontecimentos políticos do país. Um relativo desprestígio da política e a exposição decorrente das competências criminais do Tribunal – que deveriam ser amplamente reduzidas – atiram-no, muitas vezes, na linha de tiro das paixões políticas e dos interesses contrariados.

Hoje, como ontem, continuamos a precisar, com urgência aflitiva, de uma reforma política que restitua ao Congresso Nacional a centralidade que ele deve desfrutar em uma democracia. Para tanto, é necessário atrair novas vocações, melhorar a qualidade do debate público e aumentar a representatividade dos parlamentares. O que ocorre hoje é que muitos dos jovens idealistas, em lugar de irem para a política, vão para o Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, e de lá tentam mudar o mundo.

Enquanto não se fizerem essas mudanças, prosseguiremos com um modelo no qual, com frequência, são os próprios agentes políticos que provocam a jurisdição do Tribunal, judicializando excessivamente a vida. Uma suprema corte pode e deve ser proativa na defesa da democracia e dos direitos fundamentais. Porém, quanto ao mais, deve ser autocontida e deferente para com aqueles que têm voto, com exceção dos casos de manifesta violação à Constituição.

Os críticos severos do Supremo devem ter em conta que o país atravessa uma tempestade política, econômica e ética. E, com frequência, o Tribunal tem sido chamado para arbitrar crises que são gestadas nos outros vértices da Praça dos Três Poderes. 

Seria uma ilusão supor que pudesse escapar incólume em um ambiente polarizado politicamente e que vive as tensões da substituição de uma velha ordem por uma nova ordem.

Na velha ordem era legítima a apropriação privada do Estado por elites extrativistas, o desvio de dinheiro público para o bolso e para as campanhas eleitorais, assim como o fisiologismo, o nepotismo, os superfaturamentos, os achaques e o compadrio. 

A nova ordem que procura nascer reflete a imensa demanda que se desenvolveu na sociedade brasileira por integridade, idealismo e patriotismo. Estamos procurando mudar paradigmas inaceitáveis e empurrar a história na direção certa. As resistências são muitas. Nós não somos atrasados por acaso. Somos atrasados porque o atraso é bem defendido.

Vivemos as turbulências do processo de elevação da ética pública e da ética privada no Brasil. Este é o tempo que nos tocou viver. Não é o caso de se reclamar da história ou do destino. Os países, como as pessoas, passam pelo que têm que passar para amadurecerem e se aprimorarem. O máximo que cada um pode fazer é cumprir bem o próprio papel.

A seguir, a análise do ano no Supremo Tribunal Federal, com a seleção dos dez casos mais importantes. Abro a retrospectiva, no entanto, propondo uma solução para o problema que mais tem desgastado o Tribunal: o excesso de decisões individuais, sobretudo nos casos institucionalmente relevantes.

II. Pelo fim da monocracia

A ideia inicial foi de Alexandre de Moraes, colega que senta ao meu lado na bancada do Supremo Tribunal Federal: cautelares em ações diretas deveriam ser colocadas imediatamente no Plenário Virtual, para ratificação ou não. Se não forem confirmadas, não produzem efeitos.

Acoplei à ideia dele a minha própria: todas as decisões cautelares ou liminares, em todos os tipos de processos, deveriam ser prontamente colocadas em Plenário Virtual (ou no ambiente virtual da Turma, conforme o caso), para manifestação do conjunto dos Ministros. 

Como regra, o pronunciamento do colegiado deverá se dar em até cinco dias, valendo o silêncio de algum Ministro como ratificação. Em casos de urgência, mediante proposta do relator, esse prazo poderia ser reduzido para 48 horas. A exigência valeria não apenas para ações diretas, mas também para mandados de segurança, Habeas Corpus, reclamações e tudo o mais, com pouquíssimas exceções.

Essa providência simples contribuiria para a reinstitucionalização do Supremo, abolindo a possibilidade de um Ministro, isoladamente, falar em nome do Tribunal. A perda do poder individual – que, de resto, não deveria mesmo existir – seria largamente compensada pela reconquista de credibilidade. Não tendo armas nem a chave do cofre, é a credibilidade, mesmo, a fonte da nossa autoridade.

III. Dez decisões emblemáticas em 2018

Não foi fácil a seleção deste ano, em que muita coisa importante aconteceu. Aqui vão as minhas escolhas, divididas em três áreas: criminal, trabalhista e direitos fundamentais.

Em matéria criminal, o Tribunal restringiu drasticamente o foro privilegiado, ratificou a possibilidade de execução da pena criminal após a decisão de 2º grau e considerou inconstitucional a condução coercitiva. Quanto a esse último ponto, não é desimportante assinalar que o instituto existia desde 1941 e só veio a ser considerado ilegítimo quando o direito penal chegou no andar de cima. 

Merecem destaque, também, o habeas corpus coletivo para gestantes e mães, assim como a validação dos acordos de colaboração premiada celebrados pela Polícia. Não entrou na seleção final, mas foi bastante expressiva, a decisão que reconheceu legitimidade ao Ministério Público para execução prioritária da multa penal (ADI 3.150, red. para acórdão Min. Luís Roberto Barroso).

Em matéria trabalhista, o ano também foi atipicamente repleto. O Tribunal validou a terceirização, mesmo em se tratando de atividade fim, assim como chancelou itens da reforma trabalhista, inclusive e notadamente o fim da contribuição sindical. Embora iniciado o julgamento, não foi concluída a deliberação acerca do ponto da reforma que prevê o pagamento de honorários sucumbenciais e periciais em reclamação trabalhista. 

Por fim, nada obstante não tenha figurado na lista final, guarda significativa relevância a decisão que assegurou a estabilidade das gestantes, mesmo quando a gravidez era desconhecida do empregador (RE 629.053, Rel. Min. Alexandre de Moraes).

Em termos de direitos fundamentais, decisão do Plenário assegurou a liberdade de expressão política em universidades, que vinha sendo tolhida por decisões da Justiça Eleitoral. Além disso, considerou-se que a prática do ensino domiciliar (homeschooling) não poderia ser admitida até a superveniência de lei regulamentadora e foi garantido o direito de transgêneros procederem à mudança do nome social no registro civil, independentemente de operação de mudança de sexo. 

E, muito embora não tenha entrado na lista dos dez mais, foi também de grande importância o julgado que assegurou 30% do Fundo Partidário para candidaturas femininas. Uma observação relevante: o Tribunal, que com frequência se divide ao meio em questões penais, sobretudo quando envolvem combate à corrupção política, costuma votar por unanimidade, ou largas maiorias, nos temas envolvendo direitos fundamentais.

A seguir, a lista dos casos mais emblemáticos do ano, na minha visão, apresentados em ordem cronológica de data de julgamento.

1. Habeas corpus coletivo para gestantes e mães. HC 143.641, Relator Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento concluído em 20.02.2018.

A 2ª. Turma do Tribunal considerou cabível o habeas corpus coletivo e, no mérito, por maioria de votos, concedeu a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar, no caso de mulheres presas que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência. O benefício concedido não exclui a aplicação das medidas alternativas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.

2. Mudança do nome social por transexual. ADI 4.275, Red. para acórdão Min. Luiz Edson Fachin e RE 670.422, Rel. Min. Dias Toffoli. Julgamento concluído em 1º.03.2018.

O Plenário do Tribunal decidiu, por unanimidade, que as pessoas trans podem alterar o nome e o gênero nos assentamentos de registro civil, independentemente de se submeterem a procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. O Tribunal também decidiu, nessa parte por maioria, que a alteração pode ser feita administrativamente, perante o registro civil, independentemente de autorização judicial.

3. Reiteração da possibilidade de execução penal após condenação em 2º grau. HC 152.752, Rel. Min. Luiz Edson Fachin. Julgamento concluído em 4.04.2018.

O Tribunal, por maioria de 6 votos a 5, considerou válida a decretação da prisão de ex-Presidente da República, após condenação pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Reiterou-se, assim, entendimento que já havia sido manifestado por três vezes em 2016 – no HC 126.292, no julgamento de medida cautelar nas ADCs 43 e 44 e em repercussão geral julgada em Plenário virtual no ARE 964.246 – no sentido de que a execução de decisão penal condenatória proferida em segundo grau de jurisdição, ainda que sujeita a recurso especial ou extraordinário, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade. Medida cautelar em ADI, concedida na véspera do recesso e que contrariava essa orientação, foi prontamente revogada pela Presidência do Tribunal.

4. Foro privilegiado. AP 937-QO, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Julgamento concluído em 3.05.2018

Ao decidir questão de ordem em ação penal contra Prefeito Municipal, o Tribunal assentou duas teses que superaram a jurisprudência anteriormente vigente: (i) o foro por prerrogativa de função, no caso de parlamentares, somente se aplica aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo, e não a todo e qualquer crime; e (ii) após concluída a instrução processual, com a intimação para a apresentação das razões finais, a competência do STF não será afetada se o parlamentar deixar o cargo, qualquer que seja a razão.

5. Condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório. ADPFs 395 e 444, Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgamento concluído em 14.06.2018.

Por maioria de votos, o Plenário declarou a condução coercitiva do réu ou do investigado para interrogatório, constante do art. 260 do Código de Processo Penal, vigente desde 1941, não recepcionada pela Constituição de 1988. Considerou-se que o emprego da medida representava restrição à liberdade de locomoção e violação à presunção de não-culpabilidade. Ficou ressalvado que a decisão não desconstituía interrogatórios realizados até aquela data, mesmo que o réu ou investigado tivesse sido conduzido coercitivamente.

6. Colaboração premiada firmada com a autoridade policial. ADI 5508, Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento concluído em 20.06.2018.

O Tribunal decidiu, por maioria, ser constitucional a celebração de acordo de colaboração premiada pelos delegados de polícia, na fase do inquérito policial. Entendeu-se que tal possibilidade não interfere com a atribuição constitucional do Ministério Público de titular da ação penal, prevendo-se, todavia, a necessária manifestação do Parquet. 

Destacou-se que mesmo que a autoridade policial proponha a redução de pena ou perdão judicial para o colaborador, o acolhimento de tais benefícios depende de pronunciamento judicial, por serem atos privativos do Poder Judiciário.

7. Fim da contribuição sindical. ADI 5794 e ADC 55, Red. para acórdão Min. Luiz Fux. Julgamento concluído em 29.06.2018.

Por maioria de 6 votos a 3, o Plenário declarou constitucional o ponto da Reforma Trabalhista que extinguiu a obrigatoriedade da contribuição sindical. Dentre os argumentos apresentados, enfatizou-se o direito de o trabalhador filiar-se ou não a um sindicato – e de contribuir ou não para ele –, criticou-se o modelo paternalista e dependente do Estado do sindicalismo brasileiro e assentou-se que o Congresso Nacional é o protagonista dessa discussão, por ser o modelo de gestão sindical uma matéria eminentemente política.

8. Terceirização. ADPF 324,Rel. Min. Luís Roberto Barroso. RE 958.252, Rel. Min. Luiz Fux. Julgamento concluído em 30.08.2018.

No julgamento de um recurso extraordinário com repercussão geral e de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, o Plenário, por 7 votos a 4, decidiu ser lícita a terceirização. A maioria entendeu que a terceirização, por si só, não implica precarização do trabalho ou violação à dignidade do trabalhador. 

Considerou-se legítima a terceirização tanto da atividade meio quanto da atividade fim da empresa. Previu-se, todavia, competir à contratante verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada, bem como responder subsidiariamente em caso de descumprimento das normas trabalhistas ou de obrigações previdenciárias.

9. Educação domiciliar (homeschooling). RE 888.815, red. para acórdão Min. Alexandre de Moraes. Julgamento concluído em 12.09.2018.

Discutiu-se nesta ação se a família teria ou não o direito de optar por dar aos seus filhos educação domiciliar, decisão frequentemente associada à liberdade religiosa. O Tribunal se dividiu entre Ministros que consideravam legítima a prática, os que a consideravam inconstitucional e os que a consideravam constitucional, mas condicionada à regulamentação prévia pelo legislador. Prevaleceu essa última corrente.

10. Liberdade de manifestação em universidades. ADPF 548, Rel. Min. Cármen Lúcia. Julgamento concluído em 31.10.2018.

O Tribunal, por unanimidade, considerou inconstitucionais, por violação à liberdade de manifestação do pensamento e à autonomia universitária, decisões de juízes eleitorais que determinaram, entre outras medidas, busca e apreensão de materiais de campanha eleitoral em universidades e a interrupção de manifestações públicas de apoio ou reprovação a candidatos nas eleições presidenciais. Diferentes votos destacaram que as decisões judiciais questionadas na arguição de descumprimento de preceito fundamental confundiam liberdade de expressão com propaganda eleitoral e remetiam a um passado autoritário que não se quer de volta.

Sou imensamente grato à equipe de assessores e ao corpo técnico do meu gabinete, pela inestimável colaboração que me prestam, tornando a vida melhor, mais fácil e mais divertida.


(*) Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e colaborador acadêmico (SeniorFellow) da Harvard Kennedy School.

(Com a Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2018)

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