A contradição de Guantánamo
* Luciano Rezende
Na década de 40, em Havana, era muito comum ouvir pela rádio a voz de Joseíto Fernández que, em um programa de enorme sucesso chamado La Guantanamera (mulher de Guantánamo), alternava trovas havaneiras com notícias extraídas das páginas policiais. Ao final de cada assunto se podia ouvir o famoso bordão "Guantanamera, guajira guantanamera". Daí o dito popular cubano "me cantó una guantanamera" quando se quer dizer que alguma pessoa disse algo triste.
Já a famosa canção Guantanamera, tal como a conhecemos na atualidade, surgiu em 1963. Uma alegre música guajira (camponesa) embalada pelos "versos sensillos" de José Martí que nos mostra outra Guantánamo, distinta desta que é conhecida mundialmente por sediar um campo de detenção (ou concentração) e representar um dos mais infames crimes contra os direitos humanos cometidos pelos EUA sob o tacão de George W. Bush.
Essa introdução pode ser útil para entender a contradição de Guantánamo: uma província (estado) da ilha revolucionária de Cuba que abriga uma base militar dos EUA desde 1903. Há mais de um século a alegria contagiante dos guajiros guantanameros e a truculência militar yankee convivem em um mesmo torrão de uma nação soberana. São exatos 117,6 quilômetros quadrados (ou 11.760 hectares, para facilitar a conta), incluindo grande parte das melhores baías do país, ocupados pelos Estados Unidos. Mas a título de aluguel e de escárnio, o Tio Sam paga todos os anos a quantia de 4.085 dólares (cerca de dez mil reais), ou seja, 34,7 centavos por hectare em cheques anuais que o governo de Cuba se recusa a receber por elementar dignidade e absoluto desacordo com o que ocorre nesse espaço do território nacional.
Mesmo assim os cheques são encaminhados anualmente, de forma provocativa, ao Tesoureiro Geral da República de Cuba, cargo e função que há muito já não existem. Porém, esse aluguel é a provocação menor entre uma série de outros deboches que partem ininterruptamente do vizinho imperialista (com gargalhadas da mídia hegemônica mundial) que só não tem graça para as nações que almejam verem respeitadas suas soberanias.
Como bem lembra o governo de Cuba em célebre nota intitulada "Declaração do Governo de Cuba à Opinião Pública Nacional e Internacional", datada de 11 de janeiro de 2002, a base naval norte-americana de Guantánamo é ocupada, desde 1903, como resultado de Convênio para as Estações Carvoeiras e Navais, assinado entre o Governo dos Estados Unidos e o Governo de Cuba, então presidido por Tomás Estrada Palma, em circunstâncias que o país não tinha praticamente nenhuma independência, e pela imposição de uma emenda draconiana aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos e assinada pelo presidente McKinley, em março de 1901, conhecida como Emenda Platt.
Importante que se diga que tudo isso ocorreu quando Cuba estava ocupada pelo exército dos Estados Unidos, que ali se estabeleceu depois de uma intervenção militar para "ajudar" Cuba em sua guerra de independência contra a metrópole espanhola. Muy amigos! A referida Emenda dava aos Estados Unidos o direito de intervir em Cuba e foi imposta ao texto da Constituição como condição para a retirada das tropas americanas do território cubano. Em virtude desta cláusula, foi subscrito o mencionado Convênio para as Estações Carvoeiras e Navais de fevereiro de 1903, em Havana e Washington, que incluía duas áreas do território nacional de Cuba: Baía Honda e Guantánamo.
Trinta e um anos mais tarde, em 29 de maio de 1934, com o espírito da política norte-americana de "boa-vizinhança", sob a presidência de Franklin Delano Roosevelt, foi assinado um novo Tratado de Relações entre a República de Cuba e os Estados Unidos da América, que revogava o de 1903, e com ele a emenda Platt. Nesse novo Tratado a Baía Honda ficava definitivamente excluída como possível base, mas se mantinha a permanência da base naval de Guantánamo e a plena vigência das normas que a regiam.
Com o triunfo da Revolução em Cuba a situação piorou e essa base se converteu em causa de numerosos atritos entre os dois países. A imensa maioria dos mais de três mil cidadãos cubanos que ali trabalhavam foram expulsos de seus postos de trabalho e substituídos por pessoal de outros países. Eram freqüentes os disparos a partir dessa instalação, a ponto de matarem soldados cubanos. Ao longo de todo o período revolucionário, por decisão unilateral dos governantes dos Estados Unidos, dezenas de milhares de migrantes, haitianos e nacionais cubanos, que tratavam de viajar aos Estados Unidos por seus próprios meios, eram concentrados nessa base militar.
Durante cinco décadas esta tem sido empregada para múltiplos usos e nenhum deles está contido no acordo com que se justificou sua presença em território cubano. Cuba, por todo esse tempo, vem conduzindo habilmente a situação a ponto de não cair na armadilha do inimigo e tampouco entrar na provocação, apesar de toda a sorte de afrontas. Aliás, o governo de Cuba sempre alertou que essa base militar é precisamente o lugar onde soldados norte-americanos e cubanos se enfrentam frente a frente e, por essa razão, onde se necessita mais serenidade e senso de responsabilidade. Afirma que embora dispostos a lutar e morrer em defesa sua soberania e de seus direitos elementares, o mais sagrado dever do povo cubano e de seus dirigentes tem sido preservar a nação de evitáveis, desnecessárias e sangrentas guerras.
Ali é o ponto onde pessoas interessadas em criar conflitos entre os dois países poderiam, com maior facilidade, instrumentar planos que servissem para provocar ações agressivas contra Cuba. Entretanto, a maior das ações provocativas vem de 2002, quando os EUA decidem por efetivar um campo de detenção na base naval de Guantánamo. A partir daí, a soberana ilha de Cuba se vê obrigada a sediar um verdadeiro centro de torturas. Os EUA aproveitam, assim, o vazio jurídico existente para deter, interrogar e torturar centenas de prisioneiros, privando-os dos direitos mais elementares, tais como o de saberem de que são acusados, terem acesso a advogado de defesa ou ao menos contatar as suas famílias e informá-las de sua localização.
Assim, a iniciativa do presidente eleito Barack Obama de fechar em até um ano o centro de detenção de Guantánamo, a despeito de ser uma ótima peça publicitária para seu governo, merece ser saudada. O governo de Cuba considera como "bom sinal", mas reclama, por direito, a devolução de todo o território ocupado ilegalmente. As forças progressistas de todo o mundo não devem se contentar apenas com essa decisão.
Há de se cobrar também o fechamento de outros campos de detenção americanos espalhados por todo o mundo, onde existem prisioneiros em condições similares, vítimas de torturas, e dezenas de outras prisões que circulam em navios em alto mar, por águas internacionais, com regime jurídico indefinido. Ademais, há de se julgar os Estados Unidos por todos os seus crimes de guerra. Só assim, quando o último yankee partir de Guantánamo, o canto da guajira deixará de simbolizar mau agouro para anunciar a boa nova que virá. A Guantanamera, então, mais uma vez fará jus à letra de seu herói nacional, José Martí, que deu a própria vida pela independência de Cuba. Até lá continuaremos a postos denunciando a política belicista do imperialismo e exigindo a incorporação de todo o território ocupado de Guantánamo ao seu legítimo dono: o povo de Cuba.
* Luciano Rezende, Engenheiro Agrônomo, mestre em Entomologia e doutorando em Genética. Da Direção Nacional da União da Juventude Socialista (Imagem de Joseíto Fernández é de La Jiribilla)
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