A porta cultural dos pobres


Carlos Lúcio Gontijo

(...) Nosso tempo não vai rodar, amiga!/ Ficaremos a vida inteira sentados no último degrau das escadas do caminho/ Olhando apenas para uma única porta/ Que não se importa/ Que nem parece porta de se abrir! (CLG, versos de poema publicado em 1977).

Sabemos das limitações de nossa função literária e jornalística, em um país que se esquece de seus problemas num grito de gol, no carnaval ou numa roda de samba, e onde o analfabetismo caminha pari passu com o semi-analfabetismo e a ignorância. Há um determinado gosto pelo conservadorismo, nota-se um indisfarçável cinismo em se lutar por uma ordem que, na realidade, é uma imoralidade, uma desordem consentida, que funciona em nome de uma minoria, que tem o poder de regular a máquina burocrática, que distribui a ração mínima para a subsistência e sobrevivência das grandes massas.
O ditador líbio Kadafi, há mais de quatro décadas no poder e que, ainda assim ou por isso mesmo, se tornou homem de confiança e interlocutor entre o Oriente e o Ocidente, agora tem os seus desmandos autoritários claramente estampados, enquanto o Congresso brasileiro se reúne por horas a fio, em cívico esforço dos representantes do povo, para conceder cinco reais de aumento à multidão de trabalhadores ativos e inativos (os aposentados e pensionistas), que têm seus salários regulados pelo salário mínimo e que contraditoriamente, dentro do decantado regime democrático, são transformados em cidadãos responsáveis pelo equilíbrio das contas públicas.
É muito triste constatar a paisagem-horizonte que nos assinala que nada avançamos em matéria de igualdade social, na qual prevalece o direito de uma meia dúzia de privilegiados, que tem os seus desejos colocados sempre acima dos anseios da maioria sofrida e padecendo em inconcebível estado de miséria. Em nosso romance “O Contador de Formigas”, introduzimos uma inaudita informação revelada por historiadores dando-nos conta de que, em uma antiga casa de ópera, em Ouro Preto, fora descoberta, durante trabalhos de restauração, uma porta que servia de acesso apenas aos operários, que deviam entrar pelos fundos e assistir às encenações em pé, mesmo que todas as cadeiras estivessem desocupadas.
Para os puristas, os amantes do tudo ou nada, os cristãos e ateus radicais, os moralistas da modernidade, os agentes de plantão dos proclamados direitos humanos, a constatação de um fato desses – abertamente praticado, sem os panos-quentes da hipocrisia em que se embebe a sociedade de nossos dias – pode lhes parecer uma descabida e acintosa agressão, um ato discriminatório, um escândalo. Mas em comparação com o que hoje se pode observar, detectamos que a situação era pelo menos mais verdadeira. O pior é convivermos com palácios das artes hipoteticamente abertos a toda a população, quando de fato servem ou estão ao alcance tão-somente de uns poucos abastados com poder aquisitivo suficiente para pagar o preço alto de ingresso a seus espetáculos de arte e cultura.
Infelizmente, ao feitio de frustração de best-seller adquirido e jamais aberto em mansão de grã-fino, os melhores auditórios para o desenvolvimento e desempenho da arte popular são medidos pela moeda da sensibilidade e não pelo status social de suas plateias, deixando-nos implícita a ideia de que nem toda porta “democraticamente” aberta é porta de entrada: às vezes menos dói a placa de é proibido o acesso do que o intangível cerceamento preconceituoso, sutil e civilizadamente capaz de impregnar, com seus silenciosos grilhões, todo o ambiente. Como escrevemos em um de nossos livros: A certeza da escuridão costuma doer-nos menos que a falsa promessa de luz!”
Carlos Lúcio Gontijo
Poeta, escritor e jornalista
http://www.carlosluciogontijo.jor.br/

Comentários