Artigo de Mangabeira Unger: “Partindo para uma nova ordem global”


A revisão da atual ordem global deve ser uma ambição vital dos países do BRIC. Portanto, é hora de juntarem seus recursos e seus esforços
                                               

Roberto Mangabeira Unger, professor na Universidade Harvard e ex-ministro de Assuntos Estratégicos do Brasil

O mundo está inquieto sob o jugo da ditadura da falta de alternativas. Os países do BRIC e seu movimento oferecem uma das melhores perspectivas que temos no mundo atual para a derrubada desta ditadura. Na criação de alternativas que interessem a toda a humanidade, o bloco BRIC inclui quatro dos cinco países mais significativos do mundo. Cada um deles é uma fonte potencial de resistência às ortodoxias predominantes. Cada um deles tem os recursos espirituais e práticos para se imaginar um mundo diferente. Se os países do BRIC assumirem uma causa comum, eles podem trazer imenso benefício não só a si mesmos como ao mundo inteiro.

Eu proponho que se enfoque a tarefa diante dos países do BRIC de dois ângulos complementares. Uma perspectiva é aquela de seus projetos internos e a outra é a perspectiva da revisão da ordem global. A meta mais amplamente procurada no mundo atual é a organização de um crescimento econômico socialmente inclusivo, um crescimento econômico ancorado numa ampliação sustentável da oportunidade econômica e educacional, capaz de oferecer equipamento para a massa de homens e mulheres comuns.  

Hoje esta meta deve ser procurada num contexto particular. Esse contexto é o surgimento, no mundo inteiro, de um novo estilo de produção, um estilo que está além dos limites da tradicional produção em massa. Esta nova forma de produção se caracteriza não apenas pelo acúmulo de tecnologia, capital e conhecimento, mas também, e acima de tudo, por um novo conjunto de práticas de produção. Ele atenua o contraste entre a supervisão e a execução das tarefas produtivas. Mistura a cooperação e a competição nos mesmos domínios e transforma toda atividade produtiva em uma forma de inovação permanente de tal modo que as melhores firmas se assemelham mais às melhores escolas.

O problema é que esta nova economia, como às vezes a chamamos, ou estilo pós-Fordista de produção (por vir depois da produção em massa), está caracteristicamente isolada em estreitas vanguardas produtivas, fracamente ligadas ao restante de nossas economias nacionais. A vasta maioria da força de trabalho nos países mais ricos, bem como nos principais países em desenvolvimento, permanece excluída destes setores avançados de produção, e sua exclusão se tornou uma vasta fonte de desigualdade no mundo.

Os dispositivos tradicionais para a moderação dessa desigualdade, como a redistribuição compensatória através de taxação e transferência, e a defesa das pequenas contra as grandes empresas, são inadequados para essa tarefa. O que precisamos é abrir as portas de acesso a estes novos setores avançados da produção e assim ganhar conteúdo prático para a meta do crescimento econômico socialmente inclusivo. Isso significa hoje em nossos países, as economias representativas do BRIC, uma reinvenção da política industrial. Os agentes mais importantes em nossas economias são a multidão de pequenas e médias empresas responsáveis pela preponderância da produção e pela grande maioria dos empregos. Se pudéssemos equipar algumas destas firmas com os instrumentos de acesso às formas avançadas de produção, nós criaríamos uma produtividade inclusiva, e desencadearíamos uma revolução na abertura da oportunidade econômica.

Essa nova política industrial que nossos países podem ajudar a criar e disseminar através do mundo deve ter como seus endereços primários não as grandes empresas tradicionais, mas as pequenas e médias empresas. O método não deveria ser o subsídio do crédito, mas principalmente a abertura de acesso ao crédito, à tecnologia, ao conhecimento e às práticas avançadas. É um projeto que só pode vingar se começarmos a inovar nos arranjos institucionais que modelam as relações entre os governos e as empresas, bem como as relações entre as empresas.

O Terceiro Modelo

Existem hoje no mundo dois modelos principais de relações entre Estados e negócios. Existe o modelo americano da regulamentação à distância dos negócios pelo governo e existe o modelo norte-asiático da formulação de um comércio unitário e de uma política industrial impostos de cima para baixo pelo aparato burocrático do Estado.

O que precisamos é de um terceiro modelo – uma forma de coordenação estratégica entre governos e empresas que seja descentralizada, pluralista, participativa e experimental, com o fim de disseminar as práticas da nova economia através de amplos setores da sociedade.

Esta coordenação estratégica descentralizada deve ter como sua contrapartida o apoio de regimes de competição cooperativa entre as pequenas e médias empresas, a fim de que possam continuar a competir umas contra as outras, mas ao mesmo tempo compartilhem certos recursos comerciais, tecnológicos ou financeiros, e através desse compartilhamento se tornem economias de grande porte. Com base nisso, podemos começar a dar ao mundo um exemplo de como a nova economia pode se tornar o modelo de um novo estilo de crescimento econômico socialmente inclusivo.

Tal projeto doméstico – um projeto a ser executado dentro de nossos países – tem como sua contrapartida uma revisão da ordem global, e tal revisão deve ser uma ambição significativa do movimento dos países do BRIC. Desde a Segunda Guerra Mundial o que prevaleceu no mundo foi um projeto prepotente que tentava impor em toda a humanidade certo programa institucional como condição de acesso aos bens públicos globais, ou à segurança política e abertura econômica. O que queremos nos países do BRIC é uma nova ordem global mais acolhedora às alternativas, à divergência, á experimentação e ás heresias.

Aquele projeto prepotente foi concretizado muito desigualmente em diferentes domínios. Foi implantado com menor sucesso no domínio da segurança política. Foi implantado de modo bastante limitado nos arranjos monetários internacionais para os quais não existe hoje nenhum regime de aceitação geral, desde o colapso do sistema original de Bretton Woods em 1971. O projeto foi implantado mais vigorosamente no regime do comércio mundial. O regime de comércio mundial estabelecido sob os tratados da Organização Mundial do Comércio é a expressão mais consumada desta tentativa de impor um modelo ao mundo. Um princípio deste regime de comércio mundial, ao qual deveríamos resistir, é a tentativa de definir o livre comércio como um fim em si mesmo, a maximização do livre comércio. Mas o livre comércio não é um fim em si mesmo; o livre comércio é apenas um meio de atingir um fim.

A posição compartilhada que começa a emergir hoje entre os países do BRIC é que a meta deveria ser definida como a criação de uma economia mundial aberta hospitaleira à coexistência de diferentes estratégias nacionais de desenvolvimento e diferentes experiências de civilização, uma forma de abertura econômica que aceita a divergência ao invés de impor uma convergência compulsiva em instituições e práticas.

Similarmente, o regime estabelecido do comércio mundial é desenhado agora sob a égide do princípio do maximalismo institucional. Ele requer adesão não só à economia de mercado como a uma versão particular da economia de mercado. Ele quer banir, sob o rótulo de “subsídios”, todas as formas de coordenação estratégica entre governos e negócios que os países hoje ricos usaram para se tornarem ricos. E quer incorporar às regras do livre comércio o regime de propriedade intelectual estabelecido no final do século 19 que coloca muitas das inovações tecnológicas do maior interesse para a humanidade sob o controle de um punhado de empresas privadas multinacionais gigantes.

Nós desejaríamos uma revisão desta ordem, um globalismo pluralista, um globalismo que permita a cada um de nossos países abordar a economia mundial em termos que sejam favoráveis a nossa construção nacional, de modo que duas partes desta agenda do BRIC, a parte doméstica e a parte global, sejam apenas o lado oposto um do outro e juntos nos permitam derrubar a ditadura da ausência de alternativas, em benefício da humanidade.

A África do Sul e o mundo

Com seu imenso dinamismo e sua estrutura econômica diversificada, a África do Sul pode dar uma contribuição vital ao movimento do BRICS. Não só pode disseminar alternativas progressistas pelo continente africano, mas pode exemplificar para a África e para o mundo muitas das alternativas que são do maior interesse para nós.

Penso especialmente em quatro domínios em que a África do Sul tem as matérias com as quais fará uma contribuição notável:

Primeiro, ajudará a equipar milhões de pequenos empresários e empreendedores potenciais que lutam para abrir e para manter pequenas empresas no país. Se algumas destas pessoas podem ter acesso ao equipamento econômico e educacional necessário, a África do Sul poderá provocar uma revolução de produtividade que servirá como exemplo para a África e para a humanidade.

Em segundo lugar, a África do Sul pode mostrar como essa transformação estrutural é capaz de tocar o futuro da agricultura. Não há razão para distinguir agricultura familiar e agricultura empresarial; a agricultura em escala familiar pode adquirir características empresariais. A África do Sul pode demonstrar como evitar o contraste entre um campo vazio e cidades cheias de trabalhadores sem empregos, promovendo uma forma de industrialização rural que atenue o contraste entre cidade e campo.

Em terceiro lugar, a África do Sul está focada hoje no imperativo educacional. O que desejamos em nossos países – uma produtividade inclusiva – não pode ser criado sem uma transformação radical na forma de aprendizado dos estudantes e na forma de ensinar dos professores. Precisamos de uma forma de educação que seja analítica, questionadora, cooperativa e dialética, ao invés de informativa, autoritária e dogmática. Precisamos colocar uma educação geral analítica em um continuum com uma nova forma de treinamento vocacional que enfatize as capacidades genéricas, práticas e conceituais, ao invés de talentos específicos voltados para empregos e a máquina. E a África do Sul é um dos terrenos mais promissores para se demonstrar o potencial desta revolução educacional.

Uma quarta área em que a África do Sul pode fazer uma diferença imensa é a organização de uma nova forma de política democrática. O que temos hoje principalmente no rico mundo do Atlântico Norte é uma espécie de democracia sonolenta, uma democracia organizada para fazer a mudança depender da crise. E o que queremos é uma política democrática de alta energia que não precise do trauma como condição de transformação. Uma série de inovações constitucionais já está sendo debatida na África do Sul, que elevará o nível da participação popular na vida pública; isto criaria mecanismos constitucionais que rapidamente superariam o impasse entre os ramos políticos do governo; e que exploraria o potencial do federalismo para criar modelos alternativos para o futuro. O país pode trilhar um caminho decisivo, mas ao mesmo tempo permitir que certos setores ou locais resguardem suas apostas e mostrem um caminho diferente para o futuro nacional.

Esta é a África do Sul que queremos e necessitamos, e esta é a África do Sul que pode ascender no futuro – a África do Sul que exemplifica para a África e para o mundo o caminho de uma produtividade inclusiva e de uma democracia enérgica e aprofundada.
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Este artigo é baseado num discurso para líderes empresariais do BRICS feito durante as deliberações da força-tarefa do B20, intitulado “Inovação e desenvolvimento como uma prioridade global”, na reunião de cúpula do BRICS em Durban, África do Sul, em 27 de março de 2013. O artigo foi publicado pela revista "BRICS Business Magazine", com a qual o site Diário da Rússia mantém parceria. (Com o Diário da Rússia)


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