A memória da terra: o que o marco temporal não pode apagar

                                                                        

Andressa Lewandowski, Luísa Molina e Marcela Coelho de Souza (*)

 “Des­gra­çado país o que tenha medo de li­vrar-se dos pró­prios erros porque para li­berta-se deles tenha de exibi-los. Mil vezes exibi-los, e ex­pondo-os ins­pirar horror, para que nunca mais voltem a re­petir-se, do que en­ver­go­nha­da­mente ocultá-los e ocul­tando-os, pro­tegê-los, com o risco de vol­tarem amanhã, con­fi­ados na com­pla­cência que en­seja, senão es­ti­mula os abusos”. 

Mi­nistro Paulo Bros­sard

“Nossa His­tória não co­meça em 1988”, afirma a Ar­ti­cu­lação dos Povos In­dí­genas no Brasil. Con­co­mi­tante ao lan­ça­mento dessa cam­panha, al­guns de seus re­pre­sen­tantes per­cor­reram os ga­bi­netes dos mi­nis­tros do Su­premo Tri­bunal Fe­deral, em Bra­sília, ten­tando con­vencer os juízes da­quilo que pa­rece óbvio: o ca­ráter ori­gi­nário dos seus di­reitos ter­ri­to­riais. 

Trata-se de uma pe­re­gri­nação que tenta mos­trar ao tri­bunal – a quem cabe a pre­cípua guarda da Cons­ti­tuição Fe­deral (CF) –, o que diz e o que não diz a pró­pria Carta Magna. Isto é: mostra aos mi­nis­tros que a tese por eles de­no­mi­nada “marco tem­poral” de ocu­pação – que li­mita a de­mar­cação de terras in­dí­genas àquelas áreas sob a posse dos co­le­tivos in­dí­genas em 5 de ou­tubro de 1988 – é uma lei­tura equi­vo­cada e ar­bi­trária do texto cons­ti­tu­ci­onal, que ig­nora toda a vi­o­lência so­frida por esses povos nos pe­ríodos an­te­ri­ores a 1988. Vi­o­lência esta que, à luz do di­reito con­tem­po­râneo, não im­plica em nada menos do que crime de ge­no­cídio.

A in­tensa mo­bi­li­zação das or­ga­ni­za­ções in­dí­genas neste mo­mento – es­pe­ci­al­mente em Bra­sília, mas também em ou­tras ca­pi­tais – tem como foco o jul­ga­mento, pelo STF, de três Ações Civis Ori­gi­ná­rias (ACOs), que estão na pauta ple­nário do tri­bunal no dia 16 de agosto. Duas dessas ações foram mo­vidas pelo es­tado do Mato Grosso, que rei­vin­dica in­de­ni­zação pela de­mar­cação do Parque Na­ci­onal do Xingu e das terras in­dí­genas Nam­bikwára e Pa­recis. A ter­ceira, im­pe­trada pela Funai, pede a anu­lação de tí­tulos in­ci­dentes na TI Ven­tara, no es­tado do Rio Grande do Sul. 

A des­peito das es­pe­ci­fi­ci­dades de cada uma dessas ações, os três pro­cessos trazem mais uma vez ao ple­nário do Su­premo, ins­tância má­xima do tri­bunal, o de­bate sobre os sen­tidos e a ex­tensão da ex­pressão cons­ti­tu­ci­onal “terras tra­di­ci­o­nal­mente ocu­padas”, do ar­tigo 231 da CF. A úl­tima de­cisão do ple­nário en­vol­vendo esse de­bate foi em 2009, quando se de­cidiu pela de­mar­cação con­tínua da TI Ra­posa Serra do Sol – apli­cando na­quele caso es­pe­cí­fico (e ainda que de modo con­tro­verso) o cri­tério do marco tem­poral.

Mesmo sem ca­ráter vin­cu­lante, a uti­li­zação desse cri­tério no caso Ra­posa Serra do Sol serviu de re­fe­rência para pelo menos três ou­tros pro­cessos de de­mar­cação (TI Guy­ra­roká, TI Limão Verde, TI Por­qui­nhos), que foram sus­pensos ou anu­lados por de­ci­sões da se­gunda turma do STF. De­corre daí a im­por­tância das de­ci­sões acerca das ações agora em pauta. 

São três pro­cessos que podem ori­entar e con­so­lidar a ju­ris­pru­dência do STF sobre a questão, tor­nando-se pa­râ­me­tros con­cretos para os de­mais casos ju­di­ci­a­li­zados, e mesmo para a re­gu­la­men­tação do pró­prio pro­cesso ad­mi­nis­tra­tivo de de­mar­cação. Uma in­te­pre­tação que ad­mita o marco tem­poral para de­mar­cação só serve como ins­tru­mento po­lí­tico de grupos econô­micos cujos in­te­resses são di­a­me­tral­mente opostos aos dos ín­dios – grupos esses que são res­pon­sá­veis por grande parte do es­bulho e da vi­o­lência pro­mo­vida contra esses povos.

Por outro lado, se um cri­tério ou um marco ob­je­tivo é aquilo que faz falta para os mi­nis­tros ou para o Es­tado, basta lem­brar que a pró­pria Cons­ti­tuição de 1988 é um marco. Mas o que ela marca não é e nem pode ser um li­mite tem­poral para o di­reito a terra – uma vez que, como in­sistem os povos in­dí­genas, a his­tória deles não co­meçou em 1988, e tam­pouco ter­minou lá.  

Pa­rece tratar-se exa­ta­mente do con­trário: ao pro­teger “seus usos cos­tumes e tra­di­ções” e seus di­reitos ori­gi­ná­rios sobre as “terras que tra­di­ci­o­nal­mente ocupam”, a Cons­ti­tuição ce­lebra a re­sis­tência dos in­dí­genas, re­co­nhe­cendo os efeitos de­sas­trosos da po­lí­tica de co­lo­ni­zação, rom­pendo com o pa­ra­digma as­si­mi­la­ci­o­nista, e ga­ran­tindo aos povos ori­gi­ná­rios que, para “in­te­grar-se” à ci­da­dania na­ci­onal, não lhes seja exi­gido de­sin­te­grarem-se de sua con­dição in­dí­gena. A terra é jus­ta­mente parte fun­da­mental do di­reito à di­fe­rença. Trata-se de uma pro­messa de fu­turo que ce­lebra a plu­ra­li­dade cons­ti­tuinte do país, como afir­mação e po­si­ti­vação das di­fe­renças cons­ti­tu­tivas da na­ci­o­na­li­dade.

Terra é vida

A pe­re­gri­nação dos ín­dios a Bra­sília cobra essa pro­messa: de que seja re­co­nhe­cido o seu di­reito à di­fe­rença – o di­reito de existir en­quanto co­le­ti­vi­dade dis­tinta. Ao cobrá-la, re­petem o que todos os povos, de uma forma ou de outra, estão di­zendo a todo o mo­mento: que viver (de acordo com) a sua pró­pria cul­tura – ou existir en­quanto co­le­ti­vi­dade dis­tinta – não se dis­socia de viver em suas terras. Estar na terra, viver com/na terra é con­dição de exis­tência dos modos de vida desses povos. 

Não à toa, as rei­vin­di­ca­ções ter­ri­to­riais in­dí­genas são in­va­ri­a­vel­mente for­mu­ladas em termos de uma re­lação que esses povos des­crevem como in­trín­seca com suas terras – uma re­lação em que a terra só pode ser dita per­tencer a eles na me­dida em que eles mesmos se veem como per­ten­centes a ela. Per­ten­centes, isto é, tendo sua iden­ti­dade de­fi­nida, como in­di­ví­duos e co­le­ti­vi­dades, pelos laços com um ter­ri­tório que não é apenas re­curso econô­mico, mas uni­verso so­cial, po­lí­tico e re­li­gioso.

Vale notar que levar a sério essas afir­ma­ções está im­pli­cado no res­peito ao prin­cípio da au­to­de­ter­mi­nação in­dí­gena, como se vê na De­cla­ração da ONU sobre os di­reitos desses povos e na Con­venção 169 da OIT, ra­ti­fi­cada pelo Brasil. E é pre­ciso fazê-lo. Ex­traindo todas as con­sequên­cias dessas afir­ma­ções e do fato de que elas são res­pal­dadas por de­ter­mi­na­ções cons­ti­tu­ci­o­nais, torna-se pos­sível ter al­guma noção do que está em jogo hoje para os ín­dios, além de vis­lum­brar a di­mensão do re­tro­cesso imi­nente, em re­lação a al­gumas das mais caras con­quistas de nossa “Cons­ti­tuição ci­dadã”. 

Pois se a ga­rantia da terra é, para esses povos, ele­mento im­pres­cin­dível na ga­rantia da vida – se a vida, como ela é co­nhe­cida (se­gundo o pró­prio modo de vida, a pró­pria cul­tura) passa fun­da­men­tal­mente por estar na terra –, ex­pulsar co­mu­ni­dades in­teiras (com rein­te­gra­ções de posse, re­mo­ções e afins) ou negar-se a re­co­nhecer de­ter­mi­nadas áreas como Terra In­dí­gena é agir di­re­ta­mente sobre a pos­si­bi­li­dade de vida desses povos. Em ou­tras pa­la­vras, é pro­mover ve­tores et­no­cidas e ge­no­cidas (isto é, de morte, uma vez que cul­tura e vida são in­dis­so­ciá­veis para esses povos).

Foi in­clu­sive com esses ve­tores que a pró­pria Cons­ti­tuição buscou romper ao que­brar o pa­ra­digma as­si­mi­la­ci­o­nista e in­te­gra­ci­o­nista até então vi­gente – se­gundo os quais as formas de or­ga­ni­zação e modos de vida in­dí­genas es­ta­riam des­ti­nados a de­sa­pa­recer, com a dis­so­lução dessas co­le­ti­vi­dades en­quanto tais e as­si­mi­lação de seus mem­bros ao corpo dos “tra­ba­lha­dores na­ci­o­nais”. 

A pro­e­mi­nência da tese do marco tem­poral é uma das faces do fan­tasma desse pa­ra­digma, que volta a nos as­som­brar nestes tempos em que a re­tó­rica da ci­da­dania e da “in­clusão” dos ín­dios é mo­bi­li­zada, sem ne­nhum cons­tran­gi­mento, nos dis­cursos de au­to­ri­dades da Re­pú­blica. Basta re­cordar a re­cente de­cla­ração do mi­nistro da Jus­tiça Tor­quato Jardim a um grupo de ín­dios Te­rena, Ki­ni­kinau e Ka­diweu: “é pre­ciso es­ta­be­lecer uma re­lação econô­mica de custo be­ne­fício com a terra que jus­ti­fique vocês in­dí­genas per­ma­ne­cerem nelas”. Nada mais dis­tante do es­pí­rito e da letra da Cons­ti­tuição; nada mais dis­tante da jus­tiça.

Tra­di­ci­o­na­li­dade e ime­mo­ri­a­li­dade

O con­ceito de tra­di­ci­o­na­li­dade (pre­fe­rido pela Cons­ti­tuição ao de ime­mo­ri­a­li­dade) se re­fere ao modo de ocu­pação, sendo des­pro­vido de re­fe­rência tem­poral. Afinal, não se pode exigir fi­de­li­dade ter­ri­to­rial de 500 anos aos ter­ri­tó­rios in­dí­genas: se tal fi­de­li­dade já não se ve­ri­fica no Velho Mundo, o que dizer do Novo, cons­ti­tuído desde a Con­quista por pro­cessos de co­lo­ni­zação que in­cluíram ex­pulsão vi­o­lenta, des­lo­ca­mento e con­cen­tração for­çados, drás­tica re­dução de­mo­grá­fica e re­cor­rente de­sar­ti­cu­lação so­cial dos povos abo­rí­genes (1)?

É mais que evi­dente que tra­di­ci­o­na­li­dade não pode ser in­ter­pre­tada como an­ti­gui­dade; nas pa­la­vras fre­quen­te­mente ci­tadas do ju­rista José Afonso da Silva: “o tra­di­ci­o­nal­mente re­fere-se não a uma cir­cuns­tância tem­poral, mas ao modo tra­di­ci­onal de os ín­dios ocu­parem e uti­li­zarem as terras e ao modo tra­di­ci­onal de pro­dução, enfim, ao modo tra­di­ci­onal de como eles se re­la­ci­onam com as terras” (2). 

Isso não sig­ni­fica que o tra­di­ci­onal seja imu­tável; mas sig­ni­fica que um dos ar­gu­mentos le­van­tados a favor do ar­gu­mento do marco tem­poral, que po­demos ba­tizar “efeito Co­pa­ca­bana” (3) – se­gundo o qual, na au­sência de um tal marco, nada im­pe­diria os ín­dios de rei­vin­dicar Co­pa­ca­bana – seria in­tei­ra­mente des­pro­vido de sen­tido.

O que de­fine a tra­di­ci­o­na­li­dade da ocu­pação de um povo in­dí­gena, do ponto de vista dos seus pró­prios usos, cos­tumes e tra­di­ções, é uma forma de­ter­mi­nada de me­mória da terra, in­trin­se­ca­mente li­gada aos modos in­dí­genas de viver nela. A perda dessas terras e sua sub­se­quente des­fi­gu­ração com a con­versão em es­paços ur­banos, agrí­colas ou in­dus­triais — im­plica, com o tempo (às vezes mais, às vezes menos), na des­cons­ti­tuição dessa me­mória. Por essa razão mesma, o ar­gu­mento do “efeito Co­pa­ca­bana”, com todo seu apelo – pois de fato sa­bemos que foi in­dí­gena Co­pa­ca­bana, como tudo o mais – re­sulta numa fa­lácia pe­ri­gosa.

Em que sen­tido po­demos afirmar que a tra­di­ci­o­na­li­dade da ocu­pação re­fere-se a uma forma de­ter­mi­nada de me­mória? Que forma seria esta? As pes­quisas an­tro­po­ló­gicas vol­tadas para a questão da ter­ri­to­ri­a­li­dade in­dí­gena, em suas múl­ti­plas di­men­sões — econô­mica, po­lí­tica, cos­mo­ló­gica ou re­li­giosa — são unâ­nimes em rei­terar a re­lação cons­ti­tu­tiva entre modos de ha­bitar, modos de co­nhecer, e modos de re­me­morar (e assim trans­mitir) o co­nhe­ci­mento re­la­tivo às terras vi­vidas como ter­ri­tório (4) por esses povos. 

A in­ter­pre­tação ju­rí­dica da ocu­pação tra­di­ci­onal como ha­bitat de um povo, “terra ocu­pada pelos ín­dios, ocu­pada no sen­tido de uti­li­zada por eles como seu am­bi­ente eco­ló­gico” (5), apro­xima-se dessas con­clu­sões, mas con­tinua con­ce­bendo esse ha­bitat como am­bi­ente na­tural – no velho es­pí­rito de que o “sel­vagem” só é “bom” quando se apre­senta como parte da na­tu­reza, não tanto quando se rei­vin­dica su­jeito de sua pró­pria so­ci­a­bi­li­dade.

O que a ocu­pação tra­di­ci­onal cons­titui é um am­bi­ente so­cial, his­tó­rico e eco­ló­gico com­plexo, cri­a­ti­va­mente pro­du­zido pelos povos e co­mu­ni­dades con­cer­nidos, capaz de lhes ofe­recer uma exis­tência tanto mais sa­tis­fa­tória quanto cor­res­pon­dente a seus va­lores fun­da­men­tais e iden­ti­dades. 

Há mais de um sé­culo a ideia de que existem raças ou povos “pri­mi­tivos” (e ou­tros “su­pe­ri­ores”) foi ina­pe­la­vel­mente en­ter­rada por todas as ci­ên­cias so­ciais e hu­manas – e, um pouco de­pois, mas mais am­pla­mente, por to­ne­ladas de con­ven­ções e tra­tados in­ter­na­ci­o­nais que pro­cu­raram res­ponder à de­vas­tação cau­sada pelo ra­cismo, pelo au­to­ri­ta­rismo e pelo co­lo­ni­a­lismo ao longo do sé­culo 20. 

No fundo, é isso que está em jogo quando se diz ser ne­ces­sário atentar para as formas con­cretas da ocu­pação tra­di­ci­onal, uma vez que, na au­sência dos ins­tru­mentos me­to­do­ló­gicos ade­quados, elas se tornam in­vi­sí­veis sob o peso de pre­con­ceitos que in­sistem em negar a povos tra­di­ci­o­nais seu lugar na con­tem­po­ra­nei­dade.

As formas de uti­li­zação da terra das co­mu­ni­dades in­dí­genas, suas prá­ticas pro­du­tivas, são assim in­se­pa­rá­veis da his­tória de re­la­ções po­lí­ticas e cós­micas com seus co­a­bi­tantes ou vi­zi­nhos: en­ti­dades es­pi­ri­tuais, es­pé­cies ani­mais e ve­ge­tais, ou­tros povos, fa­zen­deiros, bois... Todos esses re­cursos na­tu­rais (e so­ciais) são lo­ca­li­zados em lu­gares es­pe­cí­ficos, e os sis­temas topô­nimos e tra­di­ções etno-his­tó­ricas e mí­ticas de cada povo re­gis­tram o co­nhe­ci­mento de suas pre­senças, das téc­nicas e dos pro­to­colos di­plo­má­ticos ne­ces­sá­rios a sua uti­li­zação. A ocu­pação tra­di­ci­onal, por­tanto, não é outra coisa que uma ocu­pação fun­dada nessa me­mória em que se en­tre­laçam va­lores mo­rais, co­nhe­ci­mento eco­ló­gico, re­gras so­ciais, por sua vez rei­te­rada prá­tica e nar­ra­ti­va­mente nas formas con­cretas e co­le­tivas de ha­bi­tação e uso.

Na me­dida em que as co­le­ti­vi­dades en­frentam as trans­for­ma­ções do mundo con­tem­po­râneo, com a in­ten­si­fi­cação e di­ver­si­fi­cação de suas in­te­ra­ções com as mais di­versas ins­tân­cias, é claro que muda o con­teúdo desta tra­di­ci­o­na­li­dade. Mas é claro também que os únicos juízes le­gí­timos do quão “tra­di­ci­o­nais” são essas al­te­ra­ções só podem ser os pró­prios su­jeitos, na me­dida em que a tra­dição nada mais é do que aquilo que os mantém como uma co­mu­ni­dade cul­tu­ral­mente di­fe­ren­ciada, com sua pró­pria iden­ti­dade, no que co­nhecem como seu ter­ri­tório.

Per­ma­nência e mo­bi­li­dade

Talvez o traço das ter­ri­to­ri­a­li­dades in­dí­genas mais in­vi­sível e in­com­pre­en­sível do ponto de vista mo­derno e do Es­tado seja o das formas de mo­bi­li­dade desses povos. Por isso, antes de mais nada, é pre­ciso des­cartar de­fi­ni­ti­va­mente uma in­ter­pre­tação de­sin­for­mada da noção de ha­bi­tação per­ma­nente, que a iden­ti­fica de um lado com o es­paço es­pe­cí­fico das mo­ra­dias (“al­deias”), e de outro a con­si­dera in­com­pa­tível com o re­gime de mo­bi­li­dade e des­lo­ca­mento pró­prio aos modos in­dí­genas de uso da terra.

Esses dois erros advém do des­co­nhe­ci­mento da di­nâ­mica es­paço-tem­poral das formas so­ciais da vida in­dí­gena. A con­versão de roças novas em al­deias, de al­deias ha­bi­tadas em al­deias an­tigas (es­va­zi­adas), e destas (com suas roças) em ca­po­eiras e flo­resta se­cun­dária, forma um ciclo tem­poral que é es­pa­ci­al­mente cir­cular, além de cir­cu­lante, já que as novas roças tendem a ser abertas nas ca­po­eiras e flo­restas se­cun­dá­rias ‘dei­xadas para trás’ (o que não sig­ni­fica, dada a cir­cu­la­ri­dade mesma, aban­do­nadas). 

Essa di­nâ­mica de mo­bi­li­dade, en­rai­zada não apenas em con­di­ci­o­nantes eco­ló­gicas, mas também sis­temas re­li­gi­osos, so­ciais e cos­mo­ló­gicos, é parte in­te­gral das formas de or­ga­ni­zação desses povos, e muitas vezes se es­tende e re­produz, de ma­neiras sempre par­ti­cu­lares, em con­di­ções con­tem­po­râ­neas mar­cadas por di­versos tipos de res­trição de di­reitos sobre essas terras e acesso a elas, in­cluindo pro­cessos de ur­ba­ni­zação.

Esse modo de ocu­pação, hoje se sabe, não apenas dá tes­te­munho da adap­tação in­dí­gena aos am­bi­entes em que vivem como da pró­pria con­for­mação destes am­bi­entes, em suas ca­rac­te­rís­ticas eco­ló­gicas, pelas prá­ticas na­tivas de uso e ma­nejo de re­cursos. Há hoje inú­meras evi­dên­cias do ca­ráter an­tro­po­gê­nico de di­versos tipos de pai­sa­gens, de for­ma­ções pe­do­ló­gicas e flo­rís­ticas na Amazônia. 

A ex­tensão em que essas pai­sa­gens são an­tro­po­gê­nicas, e em que sua bi­o­di­ver­si­dade foi criada pela in­ter­venção hu­mana (leia-se, in­dí­gena), ao longo de mi­lê­nios de ocu­pação, ainda é ob­jeto de de­bate, mas o fato de que muitos ecos­sis­temas ge­ral­mente con­si­de­rados como na­tu­rais foram al­te­rados pelo ma­nejo de po­pu­la­ções in­dí­genas é ir­re­cu­sável, e está em acordo com o con­senso entre bió­logos e ecó­logos de que “per­tur­ba­ções” no meio am­bi­ente (como as de­ri­vadas da agri­cul­tura de toco ou quei­madas pra­ti­cadas por po­pu­la­ções de baixa den­si­dade) pro­movem au­mento da bi­o­di­ver­si­dade (6).

Fica claro o in­fun­dado da ten­ta­tiva de hi­e­rar­quizar os cri­té­rios con­tidos no pa­rá­grafo pri­meiro do ar­tigo 231 da para CF o re­co­nhe­ci­mento da tra­di­ci­o­na­li­dade em cír­culos con­cên­tricos, como se os vín­culos com a terra fossem mais só­lidos no cír­culo da “ha­bi­tação em ca­ráter per­ma­nente” pen­sado como re­du­zido às casas ou al­deias (e talvez roças ad­ja­centes), e a partir daí fossem se es­gar­çando: uti­li­zação para ati­vi­dades pro­du­tivas, im­pres­cin­di­bi­li­dade à pre­ser­vação dos re­cursos am­bi­en­tais; e ne­ces­si­dade para a re­pro­dução fí­sica e cul­tural… 

Essa hi­e­rar­quia é, porém, ab­so­lu­ta­mente ina­pli­cável no con­texto dos modos con­cretos de uso in­dí­gena da terra, e acar­re­taria a sua total de­ses­tru­tu­ração (7). Estes quatro “cír­culos” são co­ex­ten­sivos, so­bre­tudo se con­si­de­rados no tempo. E é essa so­bre­po­sição que forma aquilo que os ín­dios iden­ti­ficam como seus ter­ri­tó­rios tra­di­ci­o­nais. 

Notas:

1) Ver CAR­NEIRO DA CUNHA, Ma­nuela (org.). 1992. His­tória dos ín­dios do Brasil. Com­pa­nhia das Le­tras. FA­PESP, SP.

2) SILVA, J. A. Terras tra­di­ci­o­nal­mente ocu­padas pelos ín­dios. In: SAN­TILLI, J. (Coord.). Os di­reitos in­dí­genas e a Cons­ti­tuição Fe­deral. Porto Alegre: NDI, Sérgio Fa­bris, 1993, p. 45-50.

3) Ver acórdão do STF no ROMS nº 29087/DF, jul­gado em 2014, p. 32: “Claro, Co­pa­ca­bana cer­ta­mente teve ín­dios, em algum mo­mento; a Ave­nida Atlân­tica cer­ta­mente foi po­voada de ín­dios. Adotar a tese que está aqui posta nesse pa­recer, po­demos res­gatar esses apar­ta­mentos de Co­pa­ca­bana, sem dú­vida ne­nhuma, porque cer­ta­mente, em algum mo­mento, vai ter-se a posse in­dí­gena”

4) Ter­ri­tório” aqui não de­signa a di­mensão fí­sica ou econô­mica , nem se re­fere ao campo do di­reito in­ter­na­ci­onal, mas de­signa o com­po­nente ho­lís­tico e exis­ten­cial de vin­culo desses povos e co­mu­ni­dades com a terra.

5) Ver RE 44585 – MT – MATO GROSSO. Re­lator Mi­nistro Victor Nunes Leal -jul­gado em 30/08/1961

6) SMITH, E A; WISNIE, M. ( 2000). Con­ser­va­tion and sub­sis­tence in small-scale so­ci­e­ties: An­nual Re­view of An­tro­po­logy, 29. Pp. 493 a 524. Ver também POSER, D. & BALLEE, W. (ed.) (1989). Re­source ma­na­ge­ment in Ama­zonia: In­di­di­ge­nous and foke stra­te­gies. Nova York.

7) O pró­prio hoje Mi­nistro Gilmar Mendes, quando ainda Pro­cu­rador da Re­pú­blica sus­tentou que “ a posse a que se re­fere o pre­ceito cons­ti­tu­ci­onal não pode ser re­du­zida a con­ceito de posse do Di­reito Civil. A posse dos “sil­ví­colas abrange todo o ter­ri­tório in­dí­gena pro­pri­a­mente dito, isto é, toda a área por ha­bi­tada para seu sus­tento e ne­ces­sária à pre­ser­vação de sua iden­ti­dade cul­tural”. (Gilmar Fer­reira MENDES, “Terras ocu­padas pelos ín­dios”, Re­vista de di­reito pú­blico n. 86, Abril-junho de 1988. p.)


(*) An­dressa Lewan­dowski é an­tro­pó­loga e pro­fes­sora na Unilab. Luísa Mo­lina é dou­to­randa em an­tro­po­logia na Uni­ver­si­dade de Bra­sília. Mar­cela Co­elho de Souza é an­tro­pó­loga, pro­fes­sora na Uni­ver­si­dade de Bra­sília e co­or­de­na­dora do La­bo­ra­tório de An­tro­po­lo­gias da Terra, do qual An­dressa e Luísa par­ti­cipam.

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12768-a-memoria-da-terra-o-que-o-marco-temporal-nao-pode-apagar

(Com a ABr/Correio da Cidadania)

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