"Marighella", de Wagner Moura, na visão de Bruno Carmelo, e "Adoro Cinema" (O crítico assistiu ao filme no 69º Festival de Berlim)

                                           

Bruno Carmelo   

Marighella se abre com os letreiros tradicionais de filmes históricos, destinados a explicar resumidamente o contexto em que vivia o deputado. No entanto, ao invés de uma apresentação neutra, o filme deixa muito clara a sua postura ao afirmar que o Brasil sofreu um golpe em 1964, com a tomada de poder pelos militares, ajudados pelo governo norte-americano, sob pretexto de prevenir o comunismo e permanecer por um tempo curto, até a situação se estabilizar. Ficaram, como se sabe, durante 21 anos. É relevante que o filme assuma seu posicionamento político desde as primeiras imagens. Ele jamais poderá ser acusado de ludibriar seu público, nem de dissimular uma posição ideológica. O ponto de vista de Wagner Moura é transparente.


De mesmo modo, é evidente a tentativa de apresentar Carlos Marighella (Seu Jorge) ao público médio, que provavelmente ainda não o conheça, seja por deficiências do nosso sistema educativo ou por aversão política. 

O projeto não é pensado para cativar os intelectuais através do refinamento de sua linguagem, muito pelo contrário, dirige-se prioritariamente a um público jovem, que aprecia cenas de ação, tiroteio, perseguição policial, complôs internacionais e grandes figuras corajosas agindo contra a maioria, especialmente se forem divertidas e radicais como Marighella. 

O cinema brasileiro já abraçou heróis reacionários como Capitão Nascimento, agora uma figura verídica pretende ocupar este espaço no imaginário coletivo.

Para tanto, o diretor utiliza uma linguagem palatável: a câmera tremida acompanhando os personagens nas ruas, muita música nacional, em versões hip hop, para comentar a miséria do povo sob a ditadura, uma reconstituição de época minuciosa, a presença de atores conhecidos e queridos (além de Seu Jorge, também Adriana Esteves, Bruno Gagliasso, Herson Capri etc.), a inclusão de grandes frases de efeito combinadas a tiradas cômicas e cenas violentas. 

Isso implica a criação de vilões realmente perversos (Bruno Gagliasso) em oposição a figuras puras e compreensivas (Adriana Esteves), além do uso de diálogos explicativos, e outros declamados em registro estranho à oralidade. Talvez essas falas não caibam na boca de pessoas ordinárias justamente porque foram criadas para servirem a ícones.
                                                                       
Marighella adapta o gênero policial ao gosto da malandragem brasileira, criando, através de planos próximos no rosto expressivo de Seu Jorge, o retrato de um símbolo cujo valor transcende sua experiência individual para se tornar exemplo aos demais. 

Neste sentido, é louvável que o roteiro não o mostre como porta-voz único: Carlos Marighella constitui um entre uma dezena de personagens muito importantes na trama, e nem sempre toma as principais decisões, a exemplo do plano para sequestrar o embaixador norte-americano. 

O protagonista chega a desaparecer durante longos minutos enquanto o ponto de vista salta para a liderança de Branco (Luiz Carlos Vasconcelos), a investigação de Lúcio (Bruno Gagliasso), a vida do filho na Bahia ou as pressões exercidas pelo militar americano (Charles Paraventi).

O filme busca estruturar, através de seus confrontos binários (uma montagem paralela expõe as diferenças entre capitalismo e comunismo), uma importante disputa de narrativas. Nos tempos em que historiadores e jornalistas de WhatsApp discutem se o nazismo foi de esquerda ou direita, se a Terra é redonda ou plana, Marighella contrapõe de forma clara os discursos de ambas as partes: enquanto os comunistas afirmam ter pego em armas para libertar a população do regime ditatorial, os militares dizem ter tomado o poder para salvar esta mesma população dos comunistas. Enquanto Lúcio afirma que a polícia age em nome do orgulho patriótico, personagens se referem ao guerrilheiro como aquele que “realmente amou o Brasil”. Ao final da trama, aliás, apenas um grupo estará cantando o Hino brasileiro a plenos pulmões.


“Estamos perdendo essa guerra porque ela não está chegando ao povo”, analisa o protagonista a certa altura da trama. Seria necessário, portanto, driblar as mídias conservadoras e as censuras de Estado para que o público tenha consciência de uma realidade encoberta. 

A constatação de Marighella parece ser a mesma de Wagner Moura, ciente de que precisa equilibrar o discurso oficial com a sua própria versão dos fatos. Na busca corajosa e hercúlea de atingir tanto jovens sedentos por ação quanto adultos interessados pela História, de conquistar tanto a esquerda que verá um ícone quanto a direita que o verá morrer em cena – e que talvez assista à produção pelo prazer de detestá-la – o filme faz suas concessões, aparando algumas arestas e reforçando outras.

Com seus erros e acertos, a trajetória de Marighella, e a trajetória do próprio filme, terão sido marcadas pela convicção inabalável na necessidade de lutar contra as forças opressoras, majoritárias e oficiais, de ontem e de hoje.

Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.


(Com Adoro Cinema)


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