Recado direto de Havana

                                                                

                                                          
                   É prematuro pensar em acordo de paz ainda neste ano, dizem FARC


Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, negociadores da guerrilha nos diálogos de paz analisam diferenças com governo colombiano e expõem objetivos do grupo agora e depois de um eventual cessar-fogo
      
Desde outubro de 2012, as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o governo colombiano mantêm um diálogo de paz para tentar colocar fim a 50 anos de confronto armado. No início das negociações foram fixados seis pontos para a agenda, sendo que três deles já foram analisados. No momento, as duas partes discutem o tema das vítimas.

Em meio a esse contexto, Jairo Martínez e Tomás Hojeda, dois dos membros da delegação da guerrilha em Havana, concederam entrevista exclusiva a Opera Mundi. Por e-mail, eles analisam não só o atual estágio das negociações, mas também os motivos que levaram ao fracasso de diálogos anteriores.

Martínez e Hojeda classificam como “prematuro” pensar em um acordo com o governo ainda em 2014 e classificam o tema das vítimas como o mais polêmico da agenda. Como representantes das FARC, eles argumentam que a busca pela paz sempre foi um dos objetivos do grupo, diferentemente do que ocorre com as classes dirigentes do país. 

Leia a entrevista abaixo. 

Opera Mundi: O atual presidente colombiano, Juan Manuel Santos, foi ministro de Defesa do governo anterior, de Álvaro Uribe, ou seja, responsável direto pelas políticas de combate à insurgência. O que mudou em relação a seu antecessor?
Jairo Martínez e Tomás Hojeda: Uribe e Santos representam um mesmo projeto ideológico, o que está em jogo é quem vai controlar o poder político e a burocracia. Não se debate a propriedade dos meios de produção, a nacionalização dos recursos estratégicos, os estragos da liberdade de capitais, a alternância de poder, nada disso está em discussão. As diferenças políticas na maioria das democracias burguesas estão dadas por métodos para conseguir seu propósito. No fundo, não muda nada.

OM: Por que as FARC começaram a negociar um acordo com o governo do presidente Santos?
JM e TH: O ponto de paz nós temos proposto como uma estratégia política nossa. A bandeira para alcançar a paz é das FARC, por isso levamos essa consigna a todos os setores do país e pouco a pouco foi ganhando os milhões de colombianos nos colégios e universidades, ganhando os trabalhadores, camponeses, indígenas, afrodescendentes, deslocados, desempregados. É uma bandeira dos oprimidos.

A construção da paz é um assunto de toda a sociedade em seu conjunto, que requer a participação de todos e todas, sem distinção, incluídas outras organizações guerrilheiras às quais convidamos a se unir a este propósito. Este país não pode estar condenado para sempre à injustiça e à guerra. Estivemos presentes sempre que se abriu a possibilidade de buscar uma saída negociada ao conflito social e armado que o país vive.

OM: Sobre estas tentativas de negociações em governos anteriores, por que fracassaram? 
JM e TH: Historicamente, a classe dirigente não teve vontade para fazer as mudanças que o país demanda e para que a paz e a reconciliação sejam viáveis. Todos os processos de paz anteriores fracassaram porque foram concebidos para desarmar, desmobilizar as guerrilhas, sem realizar mudanças estruturais, de modo que sigam sempre garantindo o estado atual de privilégios para os de sempre.

Fracassaram porque os governos que empreenderam estes propósitos careciam do apoio político necessário para empreender um processo desta envergadura. Porque a máquina de guerra imposta pelos Estados Unidos sempre foi prioridade. Na Colômbia sempre houve conflitos e sempre houve processos de paz, mas nunca se tocou no fundamental: as causas estruturais que originaram a guerra.
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OM: Qual a diferença do atual processo de diálogos? Por que acreditar que desta vez pode chegar a um final exitoso?
JM e TH: A diferença deste processo em relação aos anteriores é que desde o início se elaborou um acordo geral para finalização do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura. Foram definidos seis pontos centrais que servem de guia. Três deles foram desenvolvidos parcialmente: política de desenvolvimento agrário integral, participação política e solução ao problema das drogas. Avançamos muito bem no quarto ponto, que se refere às vítimas.


Em todo processo há dificuldades de toda natureza, existiram e continuarão existindo, mas se percebe boa vontade de ambas as partes. Outro elemento positivo é a participação de setores sociais comprometidos na defesa do processo de paz, que estão muito mais comprometidas que nos diálogos anteriores.

Somos otimistas sobre o que está acontecendo na mesa de conversações de Havana, com a mirada positiva da região e as manifestações internacionais de apoio.

OM: As negociações que estão sendo iniciadas em relação ao tema das vítimas são consideradas por especialistas as mais polêmicas da mesa. Como as FARC estão abordando o tema e quais suas diferenças em relação às posições do governo?

[Jairo Martínez é um dos comandantes do Bloco Sul das FARC, considerado um dos principais em termos econômicos e militares]

JM e TH: Sem dúvidas, é o tema mais polêmico. Simplesmente porque se está buscando encontrar as origens, as causas e as consequências de uma guerra que as oligarquias colombianas nos impuseram cumprindo orientações do grande império, os Estados Unidos da América.

Toda guerra deixa consequências nefastas. A nossa não é exceção. Provocou milhões de deslocamentos de população, centenas de milhares de expropriados, dezenas de milhares de desaparecidos e torturados, vítimas provenientes em sua imensa maioria de classes subalternas, dominadas e exploradas em nosso país.

Estamos tratando o tema das vítimas com propostas. Os comunicados conjuntos expressam que “ressarcir as vítimas está no centro do acordo”, por isso propusemos dez princípios: o reconhecimento às vítimas, o reconhecimento de responsabilidade, satisfação dos direitos das vítimas, participação das vítimas, esclarecimento da verdade, reparação das vítimas, garantias de proteção e segurança, garantias de não repetição, princípios de reconciliação e enfoque de direitos. 

As diferenças são estruturais, mas é precisamente isso que estamos buscando entrar em consenso com o governo nos diálogos de Havana.

OM: Quais as principais divergências que poderiam impedir a conclusão dos diálogos entre governo e insurgentes?
JM e TH: A principal divergência está em que temos duas concepções muito distintas, duas visões de Estado. A visão atual, orientada e manejada com as receitas do imperialismo, do neoliberalismo e da burguesia, em que a exploração e o lucro predominam, em que o ser humano conta apenas como matéria prima no mercado de trabalho. E a nossa visão de um Estado em formação pelo qual estamos lutando, no qual prevaleça a justiça social, a intervenção direta do Estado nos recursos naturais estratégicos e na distribuição das receitas.

OM: Há especulações de que se poderia chegar a um acordo até o final deste ano. Isso seria possível?
JM e TH: As especulações neste sentido sempre saem oficialmente do governo. Nós pensamos e manifestamos que um acordo final para superação do conflito em prol de alcançar a paz com justiça social não depende de datas fatais, e sim que a disposição generosa do governo e seu compromisso abram as possibilidades e ofereçam garantias mínimas que ajudem a concretizar o acordo de transição concreta, já que as concepções mesquinhas permitem avançar pouco. Seria prematuro pensar que este ano haja assinatura de um acordo quando a comissão histórica para esclarecimento do conflito interno se conforma neste mês de agosto com um prazo de quatro meses para apresentar um relatório final à mesa de conversações. Sem dúvidas, esta comissão fortalecerá o debate e as discussões nas conversações trazendo o acúmulo desde 1930 até hoje, o que indica que há que levar o processo sem pressa e sem pausa.

OM: Se concluído, enfim, um acordo final, quais seriam os principais desafios para a fase de pós-conflito que o país passaria a viver?
JM e TH: O processo de conflito social e armado completa 65 anos e começamos a visualizar o que se chama de pós-conflito, definido como a fase que vêm depois dos acordos de paz e que supõe a recomposição da sociedade. Isso inclui aspectos como a verificação do pactuado, as garantias de segurança e não repetição, a desmobilização, a reinserção, solução a populações deslocadas, o fundo de capitais para cumprir o pactuado, as formas de participação política de todos os movimentos e partidos de oposição, como se vai dar o processo social de perdão e reconciliação, entre outros.

OM: Quais seriam os passos e estratégias do movimento insurgente para ingressar na vida civil?
JM e TH: Os passos se darão de acordo com o desenvolvimento e o cumprimento dos acordos gerais para finalização do conflito e construção de uma paz duradoura e estável, contidos na agenda geral pactuada entre o governo nacional e as FARC. 
                                                                
Tomás Hojeda (foto) é responsável pela área de comunicação da delegação de paz da guerrilha

O desafio é consolidar, fortalecer, criar um amplo movimento de massas capaz de colocar-se à frente para servir de guardião e garantir que este processo não seja abortado, que este novo movimento político tenha a capacidade, através de uma Assembleia Nacional Constituinte, de desmontar a concepção e teoria da segurança nacional - do inimigo interno- e o paramilitarismo. No econômico, com o desmonte do neoliberalismo poderíamos chegar a um ponto em que a justiça social seja o elemento central.

A luta é social, política, ideológica e organizativa para o fortalecimento e criação de uma força tal que nos permita seguir desenvolvendo nosso plano estratégico. Queremos a tomada do poder político já por outros meios porque há que deixar claro que a este propósito não estamos renunciando.

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