Jesús Santrich, o prisioneiro da cela 26

                                                                         

 Benedicto González Montenegro (*) (Alirio Córdoba), Resumen Latinoamericano

Visitei Jesús Santrich no sábado, dia 4 de agosto passado, em seu lugar de reclusão e isolamento (Presídio de Segurança Máxima de La Picota) e, ainda que tenha sentido desejos desenfreados de me referir de imediato às precárias condições às quais está submetido, finalmente preferi deixar estas linhas para hoje quando se cumprem quatro meses de sua injusta detenção por parte do Procurador do poder e do ódio, Néstor Humberto Martínez.

Em nove (9) de abril de 2018, quando o procurador geral da nação disse ter provas irrefutáveis contra Santrich e uma ordem emitida pelo governo dos EUA para sua “extradição expressa” alguns, conhecidos e desconhecidos, chegaram a crer que o procurador dizia a verdade. 

Porém, os que conhecem Santrich e são testemunha de sua aposta pela paz da Colômbia, sabiam que se tratava da mais ridícula das montagens jurídicas, de um falso positivo judicial, de um atentado contra o acordo e a Paz. Santrich é vítima de mais um dos ataques tortuosos contra o Acordo de Havana e seu caso é mais um dos tantos que aparecerão na “era Duque” contra a direção do novo partido. 

Dito de outra maneira, quando “o caso Santrich” estiver concluído, seja porque triunfe a justiça ou se configure a perfídia, iniciarão os ataques contra outros integrantes do Estado Maior Central das antigas FARC-EP, agora em processo de reincorporação.

Da boca dos porta-vozes do Centro Democrático, escutamos que terminarão por rasgar em pedaços o acordo de paz com as FARC, assim como o ato legislativo 03 de 2017, que deu vida jurídica às 10 cadeiras para a FARC, e os Planos de Desenvolvimento com Enfoque Territorial (PEDT); que elevarão à categoria de vítimas os autores dos falsos positivos e, em lugar das verdadeiras vítimas do conflito, estes ocuparão as 16 cadeiras das Circunscrições Transitórias Especiais de Paz (CTEP); que declararão o Estado de exceção ao estilo Uribe em 2002, o que levará à subordinação das autoridades políticas e civis aos chefes militares nos “teatros de operações”, ao registro da população, às capturas e às invasões sem ordem judicial.

É a tormenta que se desata com o início do terceiro mandato de Uribe presidente, encarnado desta vez em Duque. A Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC), qual “gota d’água em meio a esse mar revolto”, será o bode expiatório para ocultar a verdade de que na Colômbia o prolongado conflito deixa 262 mil vítimas segundo o Centro de Memória Histórica, mais de 80 mil desaparecidos e 10 mil “falsos positivos”. 

Será a desculpa dos terceiros responsáveis para não comparecer ante a Jurisdição Especial de Paz (JEP) e ante a Comissão de Esclarecimento da Verdade e da Não Repetição. Será o pretexto para unificar (desaparecer) as Altas Cortes, e promover iniciativas legislativas que garantam maior concentração da terra nas mãos dos poderosos, impulsionar os megaprojetos mineradores e técnicas criminosas, como Fracking, que destroçam o território colombiano.

Por isso, nossa luta para resgatar Santrich das garras do assessor do Grupo Aval, o procurador Martínez, é, por sua vez, a exigência pelo respeito ao acordado na mesa de diálogos pela Paz.

Santrich (plenipotenciário na mesa de diálogos de Havana e representante à Câmara pelo departamento do Atlântico) é a memória do que alguns não querem recordar do pactuado na mesa de Havana.

No sábado (dia 04/08), na extensa conversa que tivemos durante a visita, contei a Santrich que o governo cessante publicou a “Biblioteca do processo de Paz com as FARC”. Me perguntou por seus conteúdos e lamentou que os árduos debates travados na mesa de conversações não se encontrem refletidos nela, porque os “legalistas” assessores do presidente Santos se opuseram a que se gravassem as discussões. Temiam que o país soubesse que se opunham de maneira reiterada e raivosa às propostas que a insurgência apresentava para o benefício dos mais pobres.

Como esse, existem acontecimentos que o país não conhece, ou conhece em termos. Como aquela reunião entre o alto comando militar e o presidente Santos, a que foram convidados os assessores das FARC, horas antes da assinatura do Acordo no Teatro Colón (24 de novembro de 2016). 

Nesta, os militares de altas patentes se dividiram entre os que assumiam o compromisso de comparecer ante a Jurisdição Especial para a Paz (JEP) para oferecer a verdade, como corresponde a todos os atores envolvidos no conflito, e os que, assustadiços, se negavam a isso.

Neste dia, nossos assessores explicaram ao alto comando militar que a JEP, diferente do que os fazia acreditar Uribe, não tinha sido projetada como um mecanismo de vingança contra eles para leva-los ao cárcere, tampouco como um pacto de imunidade. Pelo contrário, que a JEP é parte de um sistema que busca oferecer a verdade ao país e às vítimas do conflito. 

Assim, a pesada “Biblioteca do Acordo de paz com as FARC” não os inclui. São muitos os acontecimentos, relatos e anedotas que vão sendo conhecidos como parte da memória deste conflito sexagenário, cuja existência os pessimistas da história continuam empenhados em negar.

Santrich é “O Prisioneiro da cela 26”. Trata-se, também, de um conto curto de sua autoria que sairá publicado brevemente ao lado de outros, como “a noite das armadilhas”. 

Seu caso expõe as falências e horrores do Sistema Judiciário colombiano e a falta de soberania jurídica que caracteriza nossa pátria. Seu julgamento está nas mãos da Jurisdição Especial para a Paz, enquanto quem define sua liberdade, lugar e condições de reclusão é o onipotente “procurador do poder” Néstor Humberto Martínez, em uma duplicidade de competência e jurisdição que ninguém entende e que não existe em país algum do planeta, a exceção da Colômbia.

“O prisioneiro da cela 26” está cego. Seus olhos se apagaram lentamente em consequência da Síndrome de Leber há aproximadamente 10 anos e, no entanto, ainda que tenha requerido várias vezes, não conta com uma pessoa de confiança que, como enfermeiro ou cuidador, o ajude, administre os medicamente, acompanhe e leia as inúmeras notas que são enviadas por seus amigos e as notícias que saem diariamente na imprensa. Tem um pequeno radio receptor que cabe na palma de sua mão para escutar notícias, um pouco de música e não sucumbir ante a solidão e o total isolamento.

Em sua pequena cela no Presídio de Segurança Máxima de La Picota, custodiada por integrantes do corpo de elite do INPEC, Santrich desafia o desumano regime de isolamento ao qual, inexplicavelmente, o submete o Sistema Penitenciário colombiano por ordem do procurador Martínez. Aproveita para escrever contos curtos, versos infantis em décimas de Espinela, desenhar e produzir com suas próprias mãos, desafiando a escuridão, figuras de papel para seu neto Paucías. 

Ao visita-lo desta vez, o encontrei mais animado. Talvez porque no dia anterior o permitiram tomar um pouco de sol. Fazia quase dois meses que não o tiravam de sua cela. Dizem que por razões de segurança. As mesmas que esgrime o procurador para impedi-lo que ir até as instalações do Congresso da República para tomar posse do cargo de congressista. Rimos também disso, quando o ocorreu dizer: “Será que parece mais perigoso para o procurador o recinto do Congresso que La Picota? Razões tem!”.

Há apenas um mês depois de ter concedido uma entrevista à jornalista Patricia Uribe, na qual aproveitou para exigir de novo que o procurador Martínez mostre suas tão anunciadas provas, a cela de Santrich foi submetida a uma brutal revista, o que na linguagem carcerária se denomina “uma revistada”. 

Os guardas buscavam um celular que não existia, porque a entrevista à mídia foi concedida através do serviço telefônico da prisão. “Demorei duas semanas para voltar a colocar as coisas no lugar”, me disse com a paciência de caracol que o caracteriza.

No entanto, apesar do desumano sistema carcerário, os guardas tratam o prisioneiro da cela 26 com respeito. Sabem que custodiam um homem que deu tudo pela paz da Colômbia. Sabem que é culto e amável, muitos deles quiseram sentar-se na frente dele para escutar sua experiência na guerra e sua incansável luta na mesa de diálogos pela construção da paz. Não conseguem explicar como um homem que perdeu a visão tenha tanta criatividade e inventividade, tanta ternura e alegria.

Até a noite anterior a minha visita, a cela vizinha era ocupada por um paciente psiquiátrico, um homem atormentado pelas lembranças, que gritava toda a noite e que durante quase duas semanas não o deixou dormir. Em seu conto “A noite das armadilhas”, Santrich, “o prisioneiro da cela 26”, descreve as alucinações e fantasias de seu vizinho de cela. 

Ainda não sabe se foi por azar que terminou na cela ao lado ou se faz parte de um calculado plano do procurador do poder para fazê-lo perder a paciência e o juízo. Em todo caso, se armou até as tampas de serenidade e paciência, como para suportar esta e outras provas que virão.

Em seu mínimo radio, que perde o sinal a cada instante, pode escutar os discursos dos dois presidentes. O do Congresso e o daquele que se tornou o novo inquilino da “Casa de Nariño”, e concluiu que ambos foram orientados pelo “presidente eterno”, como duas faces da mesma moeda. Por isso, os dois se inspiram na vingança e no ódio, na ambição do poder sem limites, na nostalgia pela guerra que se esforçam em perpetuar.

A quatro meses de sua captura ilegal, detenção e atroz isolamento em uma cela de tortura do PAS de La Picota, Jesús Santrich, “o prisioneiro da cela 26”, se erige em símbolo de dignidade e guardião da memória de um Acordo transformado em pedaços e de uma paz que ainda devemos construir.

(*)Integrante do Conselho Nacional dos Comuns da FARC e ativista da campanha #SantrichLibre [) #SantrichLivre], 9 de agosto de 2018; a quatro meses de sua captura ilegal.

Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2018/08/11/jesus-santrich-el-prisionero-de-la-celda-26/

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)


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