A FILOSOFIA DOS LEITORES



Hermínio Prates (*)

O filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), disse em entrevista meses antes de morrer que, quando lia um autor, cria nele, pertencia a ele. “É preciso habitá-lo! A vida nos obriga a morar em várias casas. Sou um leitor há já ... 70 anos! Minha biblioteca usual é portanto imensa. Torno-me Espinosa quando leio Espinosa. Esse hábito vem de muito longe”.
Quem muito pensa, lê mais ainda. E o que pode parecer pose esnobe de um pensador, nada mais é do que o livre haurir de saberes vários para se aproximar da inesgotável ânsia do homem em entender e explicar nosso caminhar pelas trilhas do imponderável.
Difícil de entender? Nem tanto. Fujamos dos nós dialéticos e desçamos ao chão da literatura tupiniquim. Como não me arrisco a poluir com a minha combalida argumentação os sábios caminhos filosóficos, também não ouso invocar Espinosa para ilustrar o texto. Fiquemos em terra pátria. Jorge Amado, por exemplo. Quem o leu certamente não viu nada além do trivial em “Suor”, mas se irmanou com os moleques do cais que lutavam contra as injustiças do abandono social. É o mote de “Capitães da Areia”, já sabem todos. A temática social do baiano bom de casos e que viveu o sonho comunista para depois se espantar com Stalin, vagueou por entre seios de mulatas de ancas irresistíveis, criou filhos do povo de porte heróico, mas finou a existência lambendo benesses do corrupto Antônio Carlos Magalhães. Ou não?
De uma praia a outra, surfa o Nelson Rodrigues, mas com esse não há sintonia. Aberrações existem sim; mas em todas as famílias e vitimando pais, mães, tios, filhos, quase todo mundo sob o mesmo teto? É muita cópia do grego para quem mal aceitava o reacionário tricolor. Torcer para o Fluminense, tudo bem, que o sempre coerente Chico Buarque também é adepto, mas a adesão do pai de tantas anomalias às violências da ditadura ninguém com um mínimo de decência poderia aceitar. Nem eu.
Gilberto Freyre? Como crer no ranço elitista e na visão caolha de quem veio de uma sociedade aristocrática, remanescente dos senhores de engenho? Quem não tiver ânimo para ler “Casa Grande & Senzala” pode se espantar com as confidências que o apodado mestre de Apipucos faz de suas presepadas em leitos de moçoilas de cor. Os detalhes estão nas memórias do adolescente branco que se beneficia do mando sobre os humildes.
Quem pensa em usineiro não escapa do ciclo da cana, com José Lins do Rego chorando a decadência inevitável dos superados barões do açúcar. Os miasmas da garapa estão todos lá, quem sabe à espera de um Fernando Collor que os salve do fogo da falência com um providencial adjutório nas finanças? Mas o caçador de otários vindo das Alagoas só surgiu décadas depois de minguadas as tetas da vaca do latifúndio dos coronéis de patente comprada.
Sei que muitos que me lêem podem alegar no meio do parágrafo possível má vontade desse arengador com os escribas da nação. Nada mais falso; li e apreciei todos, mas sem esquecer a origem de cada um. Afinal, se “o meio é a mensagem” (Marshall McLuhan, 1911-1980) e se “o homem é produto do meio”, no antigo dizer de Hipolyte Adolphe Taine (1828-1893), sempre haverá um resquício do úbere original. Taine asseverou que é preciso “compreender o homem à luz de três fatores: meio ambiente, raça e momento histórico”. Euclides da Cunha o fez com maestria no clássico “Os Sertões”, a saga dos deserdados contra a arma de guerra dos prepotentes republicanos recém enquistados no poder.Ou não?
Deixo de lado tudo isso para me deliciar com a criatividade de Ariano Suassuna, um Cervantes na caatinga dos muitos mistérios. E com Érico Veríssimo, o prosador dos pampas, que revelou para o mundo os segredos do minuano na saga que propiciou o nascer da nação do Rio Grande. Creio neles? Nem tanto ao mar, nem tanto a terra, mas que há coerência, há. Muita, principalmente em Graciliano Ramos, o estóico da seca, fugitivo dos advérbios e da prolixidade. Era um seco, enxuto no texto e no físico minado pela angústia e pelo cigarro.
E Guimarães Rosa? Médico sem clientela, diplomata do poder, mas um danado no inventariar da mineirice. Êh, meu doutor de confabulanças! Como sorvi aprendizado nas veredas da sua criação! Do mesmo jeito ocorreu com Mário Palmério, nas vilas dos confins e nos chapadões dos bugres; ele um político da Arena ditatorial, mas também revelador das misérias que alimentam a política rasteira dos grotões mineiros.
Paro por aqui. Meu imo me impede de suspeitar do gabinete que deu leito e jeito aos versos de Drummond. Afinal, assessorar o ministro Capanema na ditadura getulista terá sido um crime de tão profundas influências? E será lícito duvidar das andanças de Machado de Assis pelas ruas e almas do Rio antigo? O burocrata feio e epiléptico passeou de charrete entre corpetes e suspiros das meninas sonhadoras e das viúvas apetecíveis. E como há viúvas na obra machadiana! Será porque ele se casou com uma? Que me responda o jornalista e escritor Sylvio Abreu, apreciador e profundo conhecedor dos alfarrábios do bruxo do Cosme Velho.
Quem muito lê, muito aprende e apreende. Volto a Paul Ricoeur, que na mesma entrevista revelou que “quando era um jovem professor em Estrasburgo, em 1948, decidi ler um autor de cabo a rabo durante o ano, portanto viver num autor. Para ensinar bem um autor, é preciso habitá-lo! A seguir, a vida obriga a morar em várias casas. E não saio de uma dessas casas a não ser por uma espécie de violência. De repente, há uma passagem brusca de uma a outra. Mas um problema permanece: todas as filosofias podem ser verdadeiras ao mesmo tempo?”
Que me respondam os sábios, pois a empatia que me faz cultuar tantos inventores de utopias não é suficiente para que os compreenda nas invencionices de cada vírgula.
Afinal, que sei eu, mero empinador de pipas nesse vendaval de sapiências?

(*) Jornalista
herminioprates@ig.com.br
Imagem: O filósofo francês Paul Ricoeur

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