Rudá Ricci põe a nu os erros do PT

                                                                               
                                                                      
O neopetismo, por ser forjado na bonança, é menos afeito às adversidades. É mais institucionalista, ou seja, menos orientado para ações de rua e avesso aos confrontos com forças de repressão, escreve Rudá Ricci, sociólogo, em artigo publicado por Fórum, 19-01-2019. Segundo ele, o republicanismo procurou suceder a noção de luta de classes e transferiu a crueldade do jogo político para as práticas palacianas. Longe dos cidadãos.

Eis o artigo.

O Partido dos Trabalhadores foi, até hoje, o único partido brasileiro a obter quatro vitórias eleitorais consecutivas na disputa pela Presidência da República. Um feito, por si, merecedor de atenção nas análises políticas. Durante os governos lulistas, implantou-se uma versão da agenda rooseveltiana assentada na concentração orçamentária e na orientação, via agências estatais e recursos federais, para a produção industrial (através de recursos do BNDES e a pauta de investimentos federais, via Programa de Aceleração do Crescimento) e, na outra ponta, a expansão do mercado consumidor interno (através do aumento real do salário mínimo, programa Bolsa Família e crédito popular subsidiado). Esta tríade que forjou o pacto desenvolvimentista por uma década mudou em muito o partido do Presidente Lula.

A primeira grande mudança foi a adoção do “caminho do meio” como projeto do partido. Caminhando para o centro, o PT, de partido que buscava a radicalização da política através da participação direta nas gestões públicas e aumento da autonomia das organizações populares, passou a ser o partido da ordem, da Pax Social e da ampliação da coalizão presidencialista que, na prática, cristalizou a conciliação de interesses. Conciliação entre diversos e heterogêneos (até mesmo opostos) interesses. O que exigia a capacidade de um malabarista para administrar uma verdadeira Torre de Babel.

A segunda mudança foi a transformação do PT em partido de parlamentares, em especial, deputados federais. Esta transformação foi operada a partir da centralização orçamentária, que obrigou prefeituras a realizar convênios com agências estatais e, assim, nacionalizar programas sociais e de infraestrutura em todo território brasileiro. 

O agente que viabilizou esta ponte entre prefeituras e agências estatais federais foi o deputado federal de cada região. Criou-se, assim, uma espécie de protetorado local sob a guarda dos parlamentares federais que orientavam e até subsidiavam os acessos aos programas lulistas (aumentando, diga-se de passagem, o poder do baixo clero no Congresso Nacional). 

A participação de lideranças sociais de base e intelectuais na direção nacional do PT minguou, cedendo lugar aos parlamentares. Não foi uma mudança pequena. O partido adotou o viés parlamentar: muita fala, alguma bravata e pouca radicalidade já que todo parlamentar necessita conviver com seu oposto. Confronto nunca, conflito talvez, negociação sempre.

Nesta esteira de mudanças, o partido foi tomado pelo que aqui denomino de “neopetismo”. Durante os sete primeiros anos das gestões Lula, o total de eleitores filiados ao PT cresceu 44%, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Significativamente, o PMDB, principal aliado do governo federal no período, encolheu 11,5%. 

Entre 2005 e 2016, o crescimento se manteve: segundo números do TSE, entre julho de 2005 e fevereiro de 2016, foram 547.626 novos filiados; mais que a soma dos três maiores partidos de oposição (PSDB, PPS e DEM). Esta avalanche de novos filiados, atraídos pelo sucesso eleitoral e políticas sociais do governo federal, mudou a composição orgânica do capital político do PT. E acabou por promover um novo tipo de dirigente interno. 

Esta composição – novo perfil de filiados, atraídos pelo sucesso governamental, e novo perfil dirigente – é o que denomino de neopetismo. Ao contrário do PT de antes de 2002, mais aguerrido e forjado no ataque constante das forças conservadoras e curtido nas perseguições pessoais e ameaças de fechamento do partido, emerge uma massa de petistas novos, marcados pela bonança e pelo caminho do meio.

Vejamos como e onde o PT cresceu. Em 2018, o PT era o partido majoritário, em número de filiados, em Sergipe, Acre e Ceará, estados com forte presença governamental petista. Na composição etária, se destacava na faixa de 25 a 44 anos, o que significa que quando o partido venceu sua primeira eleição para a Presidência, seis anos antes, a maioria dos seus filiados se encontrava entre 19 e 38 anos, período de ingresso no mercado de trabalho e consolidação profissional. 

A campanha desfechada pelo partido após a prisão de Lula reforçou a identificação do novo filiado com a figura de seu principal líder (ver matéria da Isto É intitulada “Eu quero ser do PT: a prisão de Lula traz mais filiações ao partido”, produzida por Luís Lima e publicada em 23 de maio de 2018). O partido que valorizava a autonomia e a ação coletiva dos menos privilegiados passou a adotar uma nítida tendência à idolatria. Justamente porque dialoga com o perfil do neopetismo.

O neopetismo, por ser forjado na bonança, é menos afeito às adversidades. É mais institucionalista, ou seja, menos orientado para ações de rua e avesso aos confrontos com forças de repressão (como ocorria nos anos 1980, quando greves e piquetes marcaram o imaginário petista). As teses que defendem são mais acadêmicas, abstratas e elaboradas que as de petistas da velha cepa, agora acomodadas num pano de fundo que é um país equilibrado, cujas instituições defendem regras justas. 

A desconfiança em relação ao campo institucional que aparecia em todos discursos iniciais do PT foi substituída pela crença na possibilidade de revitalização do judiciário, parlamento e executivos. Daí a profunda frustração com o ativismo político do judiciário dos últimos tempos e a incapacidade de compreender a vitória de Bolsonaro, concebida por muitos como o anúncio do fim do mundo. Justamente porque o confronto de interesses havia sido suspenso, ao menos na crença dos neopetistas, durante as gestões lulistas.

É nesta esteira que surge um dos conceitos mais acalentados pelos formuladores petistas deste último período: o republicanismo. Este erro de cálculo já foi abordado por Paulo Nogueira num artigo cujo título é “O republicanismo suicida do PT” (publicado no Diário do Centro do Mundo em 14 de abril de 2016. Afirma o autor:

“Lula, no Brasil, optou por indicar, por exemplo, Joaquim Barbosa por ser negro. Barbosa se converteria, logo, numa extensão togada da plutocracia. Na Polícia Federal, o republicanismo petista deixou que seu comando ficasse nas mãos brutalmente partidarizadas de delegados antipetistas. 

Na Lava Jato, isto se revelou uma tragédia. Nada aconteceu com delegados da Lava Jato que, na campanha presidencial, publicaram barbaridades contra Dilma nas redes sociais. Sérgio Moro é filho do republicanismo petista. Sua atuação francamente antipetista jamais foi contestada pelo ministro da Justiça José Eduardo Cardozo. 

Moro teve campo livre para ir fazendo coisas indecentes como forçar Lula a um depoimento e grampear conversas presidenciais.Tudo em nome do republicanismo. Mas em nenhuma área a postura autodestrutiva do PT foi mais deletéria para a democracia do que na imprensa. 

As empresas jornalísticas que orquestram o golpe foram amplamente financiadas por Lula e Dilma por meio de verbas publicitárias bilionárias. Apenas a Globo recebeu anualmente 500 milhões de reais com audiências declinantes e um conteúdo jornalístico criminoso. Tudo isso sem contar a tolice que é um governo petista fazer propaganda para um público – o da Globo – que abomina qualquer coisa ligada ao PT”.

Mas, afinal do que trata o republicanismo?

Trata-se de um conceito liberal, desenvolvido por autores de origem anglo-saxônica como Philip Pettit e Quentin Skinner. Significa “não arbitrariedade” ou “não domínio” de uma força instalada no governo ou mesmo nas relações políticas entre forças oponentes. Uma espécie de bom mocismo ou flair play adotado pela FIFA em seus jogos. Ocorre que a campanha da FIFA dura até o apito inicial do jogo. No mundo real da disputa renhida, os trancos e impactos mais violentos não são desprezados.

Mas no mundo formal dos que pregam o republicanismo, a prática política torna-se universal e pasteurizada, sem prevalências sociais, partidárias ou até mesmo programáticas. Um conceito omnibus onde cabem todos. De certa maneira, se aproxima do conceito de comum formulado por Antonio Negri, de onde nasceria o sentimento de solidariedade entre os que se encontram numa multidão que os nivela em seu estatuto de cidadãos.

Negando as observações e recomendações de Maquiavel e Cardeal Duque de Richelieu, o republicanismo constrói uma armadilha que adestra o campo de centro-esquerda. Como dizia Richelieu: “Um pode ser sábio, pode ser capaz e no entanto achar-se mal no cargo, porque, além da ciência se requer zelo, coragem, vigilância, caridade, atividade, tudo em conjunto”. Enfim, não basta crer numa sociedade equilibrada; é preciso que ela exista, de fato. Algo extremamente distante em se tratando de Brasil.

O republicanismo procurou suceder a noção de  luta de classes e transferiu a crueldade do jogo político para as práticas palacianas. Longe dos cidadãos. De tal maneira que aos cidadãos coube apreciar as políticas governamentais. O que alguns autores denominam de cidadania passiva, a participação meramente formal no jogo político, deixando aos profissionais da área o papel de enxadristas. O que levou a um estado de prostração de grande parte dos militantes partidários.

Enfim, a deusa Fortuna girou sua roda e, aqui no chão quente do asfalto, a política em toda sua crueza retornou ao Planalto. Sem dó. Colocando a máquina do Estado para esgarçar ao máximo todas forças de esquerda e as progressistas que algum dia apoiaram as políticas lulistas. E, assim, parece ser uma obrigação a revisão da tese republicanista.

Em algum momento, o PT decidiu priorizar o campo institucional. Sua agenda se subordinou ao processo eleitoral. Seus parlamentares dominaram as direções partidárias. A ampliação sem limites do arco de alianças precisou se fundamentar em argumentos de última hora. Surgiu a matemática nunca comprovada da “correlação de forças” (onde a direita sempre era mais forte, mas o PT, estranhamente, sempre vencia). Em seguida, a exigência de sofisticação acadêmica deu lugar ao republicanismo.

Deu no que deu. Como rever tais conceitos exigiria redefinir a história recente do partido (incluindo o projeto lulista), o atalho mais ameno foi criar outra teoria de momento: a crise atual teria sido provocada pelas manifestações de 2013.

E, assim, de saltos em saltos, o republicanismo continua povoando o imaginário dos neopetistas. Um Paraíso na Terra a ser conquistado pelos homens de boa vontade. Justamente no país campeão mundial da desigualdade, dos linchamentos, do feminicídio e do assassinato de jovens por armas de fogo.

(Com o IHU)

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