Alberto Dines escreve:

                                


1964 + 50, cuidado com os Idos de Março


Alberto Dines 

Reproduzido do El País Brasil, 14/3/2014
      
Não é sempre assim: mas neste momento, por casualidade ou causalidade, por força do destino, caprichos do calendário ou da história, o passado impõe-se ao presente, o presente aviva o passado e, cúmplices, nos remetem a um antigo futuro, um por vir agourento já passado. Mas não esquecido.

Em 15 de março, há 2058 anos (44 a.C), em Roma, o recém consagrado Júlio Cesar foi assassinado com 23 facadas desfechadas por alguns dos 60 conspiradores que desejavam livrar-se dele. Um deles, seu amigo Brutus, reconhecido pela vítima antes de morrer, mereceu um lamento que William Shakespeare imortalizou na sua tragédia: “Até tu, Brutus?”.

A caminho do Senado, um adivinho o advertira para cuidar-se com os idos de março, Confiante na sua força, César não deu atenção. No calendário romano da época, os idos eram os dias 15 de março, maio, julho e outubro (nos demais meses caía no dia 13). Dias fatídicos abominados por bruxas, videntes ou simples mortais sensíveis às tenebrosas armações.

Sentimento trágico

Março de 1964 marca o início de uma escalada que culminou em 1º de abril com a quartelada que derrubou o presidente eleito João Goulart e instalou uma sangrenta ditadura militar. Marca também as primeiras batidas surdas de uma tragédia – a maior da nossa história – que se abateu sobre o país nos 21 anos seguintes.

Meio século depois, a força da efeméride nos remete a um tétrico tique-taque cronometrado a partir da sexta-feira, 13 de março, quando, diante da estação ferroviária da Central do Brasil, no centro do Rio, realizou-se a primeira das gigantescas manifestações populares para forçar o Congresso a aprovar as Reformas de Base. Não houve outros comícios.

Não cabe aqui a rememoração completa da insana escalada, ela ocorre nas estantes das livrarias e sebos, nos especiais da TV, na tela dos cinemas, nas páginas de jornais e revistas, nas redes sociais, blogs e portais. Está armazenada na memória e nas nuvens.

O imperioso reencontro com o tempo, porém, não deve condicionar-se ao calendário. O antes e o depois são convenções; na vida e na história não há interrupções – tudo se relaciona, encaixa e se conjuga. Fixados apenas em datas e esquecidos dos intervalos e contextos, estaremos aceitando passivamente a fragmentação e a pulverização que hoje dominam a produção e a difusão do conhecimento.

A conjuntura nacional e internacional favorece a exacerbação, as fúrias, os ajustes de contas. Ignorância e a compulsão linchadora não ajudam a esclarecer. Só confundem, ludibriam. A sede por justiça impõe, antes de tudo, um empenho em buscar a exatidão e, no seu decorrer, a aplicação das penas e sanções previstas em lei. O reencontro com a verdade, sereno, inflexível, é, em si, castigo ou prêmio.

É preciso não esquecer que vivemos uma tragédia; a fase seguinte, a catarse, só se consumará quando fúrias e demônios forem expurgados. Os vaticínios dos idos de março de 1964 só conseguiram materializar-se por conta do ódio. Na ocasião, nossos radares espirituais estavam embaçados, incapazes de identificar a catástrofe.

Faltou à maioria aquele sentimento trágico da vida de que falava Miguel de Unamuno – a percepção do abismo, a aproximação veloz do desenlace e da ruína. Faltou, talvez, ler Shakespeare. (Com o Observatório da Imprensa)

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