A carta dos brasileiros

                                                                   

 Marina Amaral (*)

Ao assistir a transmissão do julgamento do Habeas Corpus de Lula no STF lembrei-me de outro plenário – bem maior e mais democrático – que há 30 anos consagrou a nossa Constituição. As imagens do Congresso tomado por indígenas, quilombolas, trabalhadores - hoje ignorados pelos parlamentares -, remetem ao país que sonhamos viver: democrático, diverso, e explosivamente colorido após os anos de chumbo da ditadura militar.

Até hoje a Constituição de 1988 é o maior legado da redemocratização como sabem aqueles que buscam alterá-la ou interpretá-la da maneira que lhes é conveniente. O mesmo STF que na votação do Habeas Corpus do ex-presidente Lula retirou a garantia constitucional da presunção da inocência tem oscilado diante da absurda tese do marco temporal – que busca fixar o ano de 1988 como referência para demarcar terras indígenas, mesmo que eles dali tivessem sido arbitrariamente expulsos nos anos anteriores.

A nossa Carta Magna é clara nos dois pontos. O artigo 231 diz: “São reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Da mesma forma, qualquer cidadão pode entender o que diz o inciso LVII do artigo 5o: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

Isso não significa congelar a Constituição enquanto o país supostamente evolui, como alegam os ministros que votaram contra o HC. A inclusão das gestantes de bebês anencéfalos na previsão legal de aborto, pelo STF, em 2012, é um bom exemplo de evolução. Naquele julgamento, porém, houve uma série de audiências públicas em que os grupos contra o aborto tiveram garantidos seus direitos de expressão. 

Já a possibilidade da prisão em segunda instância foi decidida pela tangente, em conchavos, como se depreende dos fatos, analisados argutamente pelo jornalista Fernando Rodrigues no Poder 360. E, ao contrário do que disse o ministro Barroso, eles afetam sim os direitos dos mais pobres, citados, como alvo preferencial de prisões, com revoltante descaso por parte dos togados.  Basta ouvir o que dizem os defensores públicos, esses sim, envolvidos com a defesa dos acusados que não podem pagar advogados. O caso Rafael Braga está aí para provar.

Em um cenário sobrecarregado pela declaração política e francamente imprópria do ministro do Exército, que de resto deveria deixar o ataque à impunidade a segmentos mais habilitados, o julgamento que pode colocar atrás das grades o ex-presidente – primeiro colocado nas pesquisas eleitorais deste ano - teria de ser absolutamente cristalino.

A recusa da presidente do STF de pautar a votação as ADIs que discutiam a constitucionalidade da prisão de segunda instância decidida pelo STF em 2016 -  à revelia da Constituição, como sempre argumentou a ministra Rosa Weber –tumultuou a corte e a confiança dos brasileiros na Justiça.

Como disse a escoteira da turma, ao explicar por que votava contra suas convicções em prol da jurisprudência do tribunal em que milita: “Quem me acompanha nesses 42 anos de magistratura não poderia ter a menor dúvida com relação ao meu voto, porque eu tenho critérios e procuro manter a coerência das minhas decisões”, disse Rosa, depois de interrompida três vezes em sua fala.

Carmen Lúcia sabia.

(*) Marina Amaral  é co-diretora da Agência Pública


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