2013 e a violência do Estado (esquecida no churrasco)

                                                                              
Vera Rodrigues (*)

Dos vá­rios textos que li sobre a ava­li­ação de junho de 2013, cinco anos de­pois, vou des­tacar dois, para efeito desse ar­tigo. Do fi­ló­sofo Marcos Nobre, na Piauí, que aborda o tema numa pers­pec­tiva his­tó­rica e global, além de tra­ba­lhar de­ta­lha­da­mente o eixo do pro­blema (tanto em 2013, quanto agora): a de­te­ri­o­ração do sis­tema po­lí­tico, amal­ga­mado com o Es­tado e apar­tado da mai­oria da po­pu­lação; e o de Pablo Or­tel­lado na Re­vista Época, que também traz uma pers­pec­tiva his­tó­rica, a partir das di­versas ações e ocu­pa­ções que ocor­reram como des­do­bra­mento de Junho. 

Penso que esses dois textos são re­le­vantes também porque des­montam as fa­lá­cias de que Junho teria sido res­pon­sável pela or­ga­ni­zação da di­reita, por um lado; e, por outro, que nada tenha sido pro­du­zido, além disso.

É pre­ciso lem­brar que na es­fera po­lí­tico-par­ti­dária a di­reita já es­tava no poder em 2013, fun­dida com o go­verno su­pos­ta­mente de­mo­crá­tico e po­pular, re­pre­sen­tada por ícones do agro­ne­gócio – cor­res­pon­sá­veis pelo es­tran­gu­la­mento da re­forma agrária; do ma­lu­fismo no Mi­nis­tério das Ci­dades; e, so­bre­tudo, do pe­e­me­de­bismo no Mi­nis­tério de Minas e Energia dentre ou­tros, além da vice-pre­si­dência, as­se­gu­rando aber­ra­ções como Belo Monte – uma hi­dre­lé­trica feita para pro­pinas, se­gundo Edu­ardo Vi­veiros de Castro, já na­quela oca­sião -, com a de­cor­rente des­truição do Xingu e da vida de povos in­dí­genas e qui­lom­bolas. 

Além disso, os grandes em­pre­sá­rios e ban­queiros es­tavam “pa­ci­fi­cados” às custas do erário, com isen­ções fis­cais mi­li­o­ná­rias, lu­cros exor­bi­tantes, vul­tu­osos em­prés­timos do BNDES. 

Outro fato “es­que­cido”: Lula saiu do se­gundo man­dato com a es­tra­tos­fé­rica apro­vação de mais de 80%. Evi­den­te­mente, com­pu­seram esse ín­dice quase todos os es­pec­tros po­lí­ticos, o que con­tradiz o dis­curso da “re­volta da classe média com as opor­tu­ni­dades ga­ran­tidas aos po­bres”.

A eclosão do mo­vi­mento de Junho sur­pre­endeu o go­verno de ga­bi­nete, dis­tante das de­mandas da po­pu­lação e dos mo­vi­mentos so­ciais que se re­cu­sava a re­ceber. Mas os pro­testos só ga­nharam enorme di­mensão – ao con­trário do que acon­tecia com as ma­ni­fes­ta­ções do Mo­vi­mento Passe Livre, até então – graças à brutal re­pressão da Po­lícia Mi­litar, numa par­ceria entre go­vernos es­ta­duais e fe­deral, já que Car­dozo de­legou aos go­ver­na­dores essa função, tendo ofe­re­cido “todo o su­porte ne­ces­sário”.

Por­tanto, a his­tória de Junho não pode ser dis­so­ciada de uma re­pressão só com­pa­rável ao pe­ríodo da di­ta­dura mi­litar. Logo no início, em Porto Alegre, e de­pois em São Paulo, a PM atacou ma­ni­fes­tantes com balas de efeito (i)moral, cas­se­tetes, gás la­cri­mo­gêneo, tendo pro­du­zido uma re­volta po­pular que au­mentou a in­dig­nação geral com o sis­tema que não mais re­pre­sen­tava nin­guém. 

Ou seja, para se blindar, os go­vernos pra­ti­ca­mente jo­garam ga­so­lina num in­cêndio. A pro­pó­sito, ontem a Folha pu­blicou um ar­tigo do fo­tó­grafo Sérgio Silva - que ficou cego de um olho, por conta de uma bala de bor­racha, nos pro­testos de 2013. Esse é também um le­gado de Junho, em­bora não tenha me­re­cido o de­vido re­levo nos re­gis­tros atuais sobre o pe­ríodo.

A vi­o­lação de di­reitos cons­ti­tu­ci­o­nais foi far­ta­mente do­cu­men­tada pela Anistia In­ter­na­ci­onal - que cum­priu im­por­tante função ao longo de todo o pro­cesso de­fla­grado por Junho. Para se ter uma ideia, uma rá­pida con­sulta no Go­ogle (Anistia In­ter­na­ci­onal, re­pressão, pro­testos 2013) pro­duziu 128 mil re­sul­tados. 

Outra ins­ti­tuição fun­da­mental na de­fesa de di­reitos dos ma­ni­fes­tantes, pre­sente em todos os pro­testos e nas de­le­ga­cias para onde eram le­vados os de­tidos é o DDH (Ins­ti­tuto de De­fen­sores de Di­reitos Hu­manos). Sem a atu­ação desses ad­vo­gados e ad­vo­gadas, a pe­núria teria sido ainda maior. Foram eles e elas também que acom­pa­nharam, ao longo de anos, Ra­fael Braga, preso e con­de­nado por porte de Pinho Sol. 

No rol de ins­ti­tui­ções atu­antes em 2013, a mídia tra­di­ci­onal cum­priu a ver­go­nhosa função de vei­cular a versão dos go­vernos de ga­bi­nete, que cri­mi­na­li­zavam ma­ni­fes­tantes, co­mu­mente cha­mados de “vân­dalos”.

Um dos poucos pe­tistas a ler 2013 – já que a ex-pre­si­dente não en­tendeu nada até hoje, assim como boa parte da mi­li­tância, que pre­tende re­es­crever a his­tória a partir da ficção – foi Valter Pomar. Em Nota, ele avisou o par­tido: “se o PT não guinar, de fato, à es­querda, vai afundar, e levar a re­boque o res­tante da es­querda”. Esse dado, ge­ral­mente ig­no­rado, é re­le­vante para ana­lisar o que acon­teceu de­pois, com as ações do PT na di­reção oposta àquela que propôs Pomar.

No Rio, en­quanto uma parte da Po­lícia re­primia ma­ni­fes­tantes, outra par­cela con­ti­nuava suas ati­vi­dades de ro­tina nas UPPs de Ca­bral, Lula-Dilma e Paes. A Ro­cinha desceu para pro­testar pelo ‘de­sa­pa­re­ci­mento’/as­sas­si­nato do pe­dreiro Ama­rildo, e os ma­ni­fes­tantes que já es­tavam nas ruas par­ti­ci­param da ação con­junta. O bordão “Cadê o Ama­rildo?” ga­nhou o mundo, am­pli­ando sig­ni­fi­ca­ti­va­mente a de­núncia dos ex­ter­mí­nios nas fa­velas e pe­ri­fe­rias bra­si­leiras. Três anos de­pois, doze dos vinte e cinco PMs acu­sados pelo as­sas­si­nato foram con­de­nados.

Ainda para efeito de re­gistro, há o fato de que, no Rio, 2013 não acabou com o ca­len­dário do res­tante do país. Aqui as ma­ni­fes­ta­ções foram diá­rias, so­madas às greves dos garis e pro­fes­sores, surgiu o Mo­vi­mento #Fo­ra­Ca­bral e, no ano se­guinte, o #Não­Vai­Ter­Copa. 

Quanto mais essa par­cela da po­pu­lação re­sistia nas ruas, mais era re­pri­mida pelo Es­tado fun­dido com os go­vernos. Em 2014, os me­ca­nismos de re­pressão foram apri­mo­rados, in­clu­sive com le­gis­lação criada para essa fi­na­li­dade. Para conter quem ainda es­tava nas ruas e quem co­meçou a pro­testar contra as vi­o­lentas re­mo­ções, os es­tá­dios su­per­fa­tu­rados, os R$ 70 bi­lhões dos me­ga­e­ventos – en­quanto a po­pu­lação morria nas portas dos hos­pi­tais -, pre­ci­savam so­fis­ticar as ações, tra­ba­lhar para gerar exem­plos.

Um apa­rato de es­pi­o­nagem foi mon­tado, houve se­ques­tros re­lâm­pagos (de pro­fes­sores, in­clu­sive), grampos te­lefô­nicos, busca e apre­ensão em vá­rios do­mi­cí­lios. Na vés­pera da final da Copa, pren­deram mais de duas de­zenas de ma­ni­fes­tantes na ci­dade-sede, sob a acu­sação de for­mação de qua­drilha. Dentre os “sus­peitos” (ta­manha era a fra­gi­li­dade do que cha­maram de “provas”) es­tava Mikhail Ba­kunin, re­vo­lu­ci­o­nário russo morto em 1876. 

A im­prensa, quase sempre aliada do que há de pior em termos de re­pressão, no­ti­ciava a de­tenção de pro­fes­sores, jor­na­listas, es­tu­dantes e “dos mas­ca­rados”. (Uma parte dessa fa­tura foi para a tá­tica Black Bloc – que se re­cusam a en­tender até hoje, apesar de vasto ma­te­rial sobre o tema). Esse grupo – de jo­vens, diga-se – foi cri­mi­nal­mente pro­ces­sado, apesar da ile­ga­li­dade do que foi mon­tado, teve sua vida des­mon­tada, e pre­cisou ela­borar as marcas psí­quicas ad­vindas de todo esse con­texto, que não foram poucas, nem leves.

Para falar da po­la­ri­zação que se forjou no país, prin­ci­pal­mente a partir de 2014, é pre­ciso lem­brar do que sig­ni­ficou a re­pressão aos pro­testos, das pautas que ten­taram calar mas não con­se­guiram, já que a crise de re­pre­sen­tação foi apro­fun­dada. Além disso, os dois par­tidos que dis­pu­taram o se­gundo turno das elei­ções usaram po­la­ri­zação como pro­duto de mar­ke­ting, e a es­querda par­ti­dária he­gemô­nica de­sen­terrou seus bor­dões “Nós x Eles”; “Nós ou o abismo”.

De­sa­pa­re­ceram as pautas co­muns, que estão em dé­cimo plano (a exemplo da re­forma agrária, de­mar­cação de terras, des­cri­mi­na­li­zação das drogas, dis­tri­buição de ri­quezas) para dar lugar a um em­bate que não de­veria in­te­ressar a quem não se be­ne­ficia com lu­gares de poder.

A es­querda com pauta única – a sal­vação de seus lí­deres – não ad­mite opo­sição. Por essa razão, a in­dig­nação da po­pu­lação em geral com o sis­tema po­lí­tico é jo­gada no colo do que há de pior na di­reita. Seria pre­ciso per­guntar por que esse pú­blico (dis­tinto de 2013) que saiu às ruas em 2015 e 2016, não mais se sentiu con­tem­plado com o go­verno do mesmo par­tido do pre­si­dente com 80% de apro­vação, al­guns anos antes. 

Da mesma forma, seria ne­ces­sário en­tender a greve dos ca­mi­nho­neiros, as de­mandas dos tra­ba­lha­dores de saúde, edu­cação, do mo­vi­mento in­dí­gena, dentre ou­tros. Não é mais pos­sível per­ma­necer com um dis­curso dis­so­ciado de quem se pre­tende re­pre­sentar. 

En­quanto essa es­querda não se en­xergar como parte do pro­blema que des­loca para ou­tros campos, verá a opo­sição, in­clu­sive de di­reita, crescer. De outro lado, tam­pouco pode haver grupos de es­querda que não rezam a mesma Bí­blia, passam a ser pron­ta­mente des­qua­li­fi­cados. Desta ma­neira, ga­rante-se o iso­la­mento e o es­paço do não-de­bate.

O pés­simo ce­nário elei­toral de 2018 re­flete múl­ti­plas di­men­sões po­lí­ticas, não pode ser sim­pli­fi­cado, re­du­zido de modo a caber no dis­curso pronto de al­guns. O mesmo vale para Junho de 2013 e seus le­gados. 

A Lava Jato, com todos os seus pro­blemas, teve o mé­rito de des­cor­tinar um sis­tema po­lí­tico com­ple­ta­mente podre – que per­ma­nece sem dis­cussão. E é nessa lama que se a es­cória da es­cória não as­sumir, em 2019, já temos que nos con­si­derar no lucro. 

Porém, não, não foi 2013 o res­pon­sável por isso, ao con­trário. O que houve ali foi re­sis­tência po­lí­tica – como há muito tempo não se via – que não foi lida e, pior, foi des­fi­gu­rada.

(*) Vera Ro­dri­gues é psi­có­loga e psi­ca­na­lista.

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(Com o Correio da Cidadania)

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