Noventa e seis anos

                                                                   
Correia da Fonseca


Foi há noventa e seis anos que numa Rússia feudal, despótica, semibárbara na esmagadora maioria do seu território, eclodiu uma revolução que viria condicionar decisivamente a História do mundo e o percurso dos povos. Revolução que está no coração e na memória dos povos de todo o mundo, mas que as televisões que temos gostariam de elidir para sempre


Como sabemos, como não esquecemos, foi há noventa e seis anos que numa Rússia feudal, despótica, semibárbara na esmagadora maioria do seu território, eclodiu uma revolução que viria condicionar decisivamente a História do mundo e o percurso dos povos. Aconteceu no dia 25 de Outubro de 1917 segundo o calendário juliano então em vigor na Rússia, e por isso é designada frequentemente por Revolução de Outubro, no dia 7 de Novembro segundo o calendário gregoriano posteriormente adoptado na Rússia e praticamente em todo o mundo, e por isso é a 7 de Novembro que esse momento histórico de transcendente importância é todos os anos lembrado, celebrado, e também ostensivamente esquecido pelos que não perdoam esse passo decisivo na libertação não apenas do povo russo então oprimido pelo jugo czarista mas também, e sobretudo, de muitos outros povos ao longo das décadas seguintes. 

Assim, no passado dia 7 encontrei no Euronews imagens do desfile militar com apoio popular que se realizou em Moscovo para comemoração da data. É certo que foram imagens breves e que, segundo o locutor, a evocação foi especialmente dirigida para o 7 de Novembro de 1941, quando um outro desfile e uma outra comemoração se realizaram ainda sob a ameaça do exército nazi que não estava então longe de Moscovo, mas é claro que também esse momento já distante teve como raiz a revolução de 17 e todo o percurso que se lhe seguiu. 

A questão óbvia é que o actual poder russo, sendo a sequência da derrota soviética e de todas as abjurações que se lhe seguiram, quis introduzir uma alteração ao antigo perfil das comemorações da data sem, contudo, deixar de celebrá-la. Talvez porque saiba que, de qualquer modo, a actual grandeza da Rússia no contexto mundial ainda é resultado da Revolução de Outubro e da caminhada acidentada mas fulgurante que se lhe seguiu.

Muitas

Por cá, embora muito me tenha esforçado, não tive a felicidade de encontrar em qualquer canal da televisão portuguesa, público ou privado, aberto ou não, imagens ou sequer referências ao 7 de Novembro. Bem sei que nem sequer a RTP, operadora em princípio com mais responsabilidades que as restantes, é a Euronews; mas já que ela e as suas congéneres estão sempre atentas a acontecimentos de diversa ordem que por esse mundo ocorrem, desde inundações num lugar discreto da Europa Central até declarações afinal rotineiras do ministro alemão de Qualquer Coisa, bem podiam ter falado, mesmo apenas um poucochinho, do acontecimento que mudou o mundo e do desfile havido na praça ainda chamada Vermelha (embora, creio, sem que a designação queira ter um significado político) de uma grande capital europeia. 

E acontece que a omissão me deixa a pensar um pouco ou, dizendo talvez melhor, entregue a uma espécie de suspeita de modo nenhum grave mas talvez um pouco didáctica: a de que a Rússia actual, entregue às muito específicas virtudes do capitalismo, em grande medida dominada pelo negocismo mais pútrido e portanto mais conveniente, ainda não tem a plena confiança dos donos do Ocidente e dos seus fiéis subalternos. 

Olham a Rússia libertada da opressão comunista e é como se em muitas esquinas lhes parecesse ver a sombra de uma foice e de um martelo; mandam os seus agentes recolherem informações e vêm dizer-lhes que a saudade do comunismo tem vindo a crescer entre o povo russo. Miram a face pouco expressiva de Putin e logo se lembram de que ele foi funcionário da KGB. Enfim, não vivem descansados, e acontece que esse desassossego parece por vezes descer em cascata pelas diversas e muitas hierarquias abaixo. 

Ora, neste quadro talvez mais valha riscar o 7 de Novembro da memória televisiva, pois que uma já velha sabedoria ensina que o que não «passa» na televisão não existe. O certo é que, tanto quanto consegui apurar e salvaguardando sempre que o actual número de canais portugueses é impeditivo de uma certeza nesta matéria, a memória televisiva portuguesa foi expurgada do 7 de Novembro e de quanto nessa data aconteceu há noventa e seis anos. Resta, porém, que há outras memórias. Muitas. Que resistem, mesmo sem a ajuda da televisão.

Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2085, 14.11.13 (Com Odiario.info)

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