“Não somos vigilantes, somos repórteres”, diz editor do “Boston Globe” após “Spotlight”


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Não é de hoje que o cinema se apropria e narra o jornalismo — seja ele como forma de poder, em "Cidadão Kane"; manipulação, como em "Rede de Intrigas"; ou da forma prática, como em "Todos os Homens do Presidente" — para produzir obras-primas. Lançado em dezembro de 2015 nos Estados Unidos  e no último mês de janeiro, no Brasil, o filme “Spotlight – Segredos Revelados” é a prova mais recente do apoderamento da profissão pela sétima arte.

Seguindo a ideia de “Todos os Homens do Presidente” (1976) – ao qual tem sido bastante comparado, por conta da retratação do “jornalismo investigativo e denunciatório” –, “Spotlight” narra a trajetória de repórteres do jornal The Boston Globe na denúncia de uma série de casos de pedofilia envolvendo setenta padres da igreja católica e como a instituição religiosa tentou abafar e encobrir durante décadas os crimes cometidos pelos sacerdotes.

Ao longo de todo o ano de 2002, cerca de quarenta reportagens investigativas foram publicadas pelo jornal. Em materiais esporádicos publicados ao longo dos anos, o Boston Globe ainda ressaltou que o número de membros da instituição envolvidos em crime de abuso sexual poderia chegar a 271, apenas em Boston. 

A reportagem, que recebeu críticas favoráveis de todo o mundo, ainda recebeu um prêmio Pulitzer, em 2003. O troféu, no entanto, foi concedido dentro da categoria “Serviço Público”, que ressalta trabalhos que tenham “contribuído para a melhora da vida das pessoas”. No geral, os responsáveis pelas reportagens recebem a honraria na categoria “Reportagem de Investigação”, que premia “descobertas inéditas feitas pelo veículo” – o que não se encaixa em Spotlight, visto que denúncias já haviam sido feitas anteriormente.  

A função jornalística

E como se trabalha em uma reportagem capaz de receber um prêmio Pulitzer? Procurado por IMPRENSA, o editor-geral do Boston Globe, Walter Robinson — interpretado por Michael Keaton no filme —, compartilhou algumas de suas reflexões em relação ao jornalismo com base no que viveu entre 2001 e 2003. 

Chefe do grupo “Spotlight”, setor especializado em jornalismo investigativo do jornal e responsável pela reportagem, Robinson defende a existência de equipes específicas dentro das redações. Para ele, essa é a forma de manter os profissionais totalmente concentrados na pauta. “A equipe fica mais focada se não precisar desviar suas atenções para editorias diárias”, comentou. 

Além da especificidade do trabalho, o editor acredita que o jornalista investigativo, por lidar com temas sensíveis, precisa de algumas características essenciais para conseguir ir a fundo dentro de uma apuração. 

“É necessário ter curiosidade para destrinchar a investigação, poder de condução para encaixar os fatos, experiência e tenacidade”, disse o jornalista, que também pontuou a importância do amparo jurídico neste tipo de trabalho, “principalmente em casos como o narrado em "Spotlight", no qual uma grande instituição esteve envolvida. É preciso ter o cuidado de confirmar todos os fatos”. 

Apesar de defender o jornalismo sério e comprometido com a informação, Robinson refuta a hipótese dos jornalistas serem considerados pela sociedade como uma espécie de vigilantes. Usando as fontes do caso como exemplo, ele cita a importância em demonstrar o papel cívico da profissão. 

“Não somo vigilantes, somos repórteres. As fontes nos foram apresentadas e começaram a ter confiança para falar a partir do momento em que compreenderam o nosso comprometimento em denunciar tudo o que estava acontecendo. Eles ficaram ansiosos para nos contar todos os detalhes após perceberem isso”. 

A grande fonte

À época um dos principais ativistas em favor das denúncias contra os padres e a igreja católica, Phil Saviano — interpretado por Neal Huff — foi a principal “ponte” entre os jornalistas do Boston Globe e as vítimas – ele, inclusive, era uma delas. 

Além da “importância cívica do jornalismo”, da qual ele concorda com Robinson, Saviano ainda pontuou alguns aspectos que foram e são fundamentais para o estreitamento das relações entre os repórteres e as fontes. 

“Foi muito importante ter a Sacha Pfeiffer — intepretada por Rachel McAdams — na equipe, já que algumas vítimas do sexo feminino não queriam falar com os repórteres do sexo masculino. Outro aspecto importante é notar que se trata de um assunto doloroso e que, por este motivo, provavelmente exigirá tempo até aproximação. É necessário que vários encontros aconteçam. O jornalista não pode tentar retirar informação da vítima à força, isso pode causar um bloqueio”, defendeu. 

Ainda se dedicando à Survivors Network of Those Abused by Priests (Snap), organização de combate a crimes de abuso sexual cometidos por sacerdotes, Saviano prosseguiu ressaltando a importância do jornalismo na denúncia de casos como o retratado no filme. 

“Uma das grandes mensagens do filme é demonstrar a importância de ter uma imprensa livre em uma sociedade democrática. Precisamos, no entanto, de repórteres para investigar e, portanto, para atribuir a responsabilidade aos indivíduos e corporações. Eu me preocupo, realmente, sobre a quantidade de histórias importantes que estão sendo perdidas por conta da falta de finanças e repórteres dentro dos jornais”. 

Além dos jornalistas, ele comentou sobre a parcela da internet na contribuição das investigações. Ainda novidade no mundo – mas já em crescimento nos EUA –, foi a partir da rede (e do Snap) que Saviano conseguiu se manter em contato com diversas vítimas de abuso sexual. 

“Em 2002, estabeleci o quadro de discussões no site do Snap e ele se tornou muito popular. Foi muito mais fácil para me conectar com as outras pessoas. Acredito que 2002 foi um bom ano para as investigações. Em 1995, sem a internet, talvez fosse tudo diferente”, concluiu. 

Prêmios e recepção

Correndo por fora na disputa pelo Oscar 2016, que acontece no próximo dia 28 de fevereiro, “Spotlight” já foi premiado com quatro prêmios em dois dos principais eventos do mundo: “Melhor Filme”, “Roteiro” e “Elenco” durante o Critics’ Choice Awards, em janeiro deste ano; e “Melhor Roteiro Original”, do Sindicato dos Roteiristas dos Estados Unidos (Writers Guild of America), no último sábado (13/2).

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                                     Atores que interpretaram o filme na sede do jornal

Em sua coluna no The Wrap, Alonso Duralde classificou o filme como “jornalismo raro, que merece ser mencionado do mesmo jeito que ‘Todos os Homens do Presidente’” e ressaltou que “Spotlight” serve como um “lembrete do poder e importância de uma imprensa livre”. 

O diretor de redação da Folha de S.Paulo, Otavio Frias Filho, ressaltou a importância dos “forasteiros” na quebra do paradigma conservador da população de Boston. O repórter Michael Rezendes (Mark Ruffalo), de origem portuguesa; o editor-executivo Marty Baron (Liev Schreiber), judeu; e Mitchell Garabedian (Stanley Tucci), armênio; foram, segundo ele, responsáveis por “romper o circuito de inércia acomodatícia” no aprofundamento das informações. 

Um dado divulgado pelo Boston Globe chega a comprovar o conservadorismo da cidade. Após a publicação das reportagens, o jornal chegou a ser processado por familiares das vítimas, que compreenderam que os materiais expuseram os abusados e “sujaram” a imagem da igreja católica.

Luiz Carlos Merten, colunista de O Estado de S. Paulo, ressaltou a importância do filme em demonstrar o choque entre instituições poderosas, como o jornalismo e a igreja católica. “[Spotlight] É uma lição de imprensa e cinema. A guerra da informação é, essencialmente, uma batalha democrática. Sem jornalismo investigativo e liberdade de expressão, o autoritarismo amplia seu espaço. A discussão ultrapassa conceitos como fé e ética. O que está em jogo é o poder. O poder da imprensa contra o poder da igreja”.  

No site do The Boston Globe ainda é possível conferir uma seção especial com todas as reportagens publicadas pelo jornal durante o período de investigações.

(Com o Portal Imprensa)

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