Uma revolução em todo seu desenvolvimento

                                                               
O dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht (1898-1956) defendia um teatro pedagógico, que esclarecesse o público sobre o funcionamento da sociedade e sobre a necessidade de transformá-la. Seguindo à risca as sugestões de Brecht, a Cia. Ocamorana leva ao palco do Teatro Coletivo, em São Paulo, a história encenada de uma revolução, apresentada em todo seu desenvolvimento.

A peça “Ruptura - Um Processo Revolucionário”, em cartaz até 4 de dezembro, narra o desenrolar da Revolução dos Cravos, que libertou Portugal da sangrenta ditadura salazarista no dia 25 de abril de 1974. A definição do tema não se deu por acaso. “Queríamos falar de revolução - e pensamos que era uma pena que não tivéssemos uma revolução socialista brasileira para abordar”, explica o diretor Márcio Boaro.

O caso português, assim, acabou ganhando destaque no debate entre os integrantes do grupo. “A Revolução dos Cravos teve um sabor diferente para o brasileiro, até pelo fato de falarmos a mesma língua. Tanto é que boa parte do pessoal de teatro que estava lutando contra a ditadura militar aqui, nos anos 1970, foi embora para Portugal para viver a revolução”, conta.

A proximidade do Brasil com os acontecimentos do outro lado do Atlântico, lembra Boaro, teve mão dupla: muitos apoiadores da ditadura deposta vieram para o Brasil, logo que o movimento estourou. “Foi o caso do próprio ditador, Marcelo Caetano.

Em 25 de abril, ele só fez uma escala na Ilha da Madeira e já veio para cá. Caetano morou no Rio de Janeiro por muitos anos, lecionando Direito em uma universidade do Rio de Janeiro”, relata Boaro.

A proposta central, portanto, era recolocar a revolução - termo já desgastado e apropriado pela direita, como lembra o diretor - como algo próximo e possível. Daí a necessidade de analisá-la, de sua gestação aos seus limites históricos.

Exército, Ditadura e Revolução

Um elemento marca uma diferença fundamental entre as conjunturas políticas brasileira e portuguesa na década de 1970: o papel político do Exército. Enquanto os militares mantinham o Brasil sob estreito e violento controle, as forças armadas portuguesas surgiam como vanguarda revolucionária de além-mar. O processo foi intimamente ligado às guerras de independência da África portuguesa.

“Em 1961, quando as colônias africanas se rebelaram, começaram 13 anos de uma guerra sangrenta, que destruiu a economia portuguesa. Portugal era um país pobre, com uma população que, em 1974, era de 9 milhões, e todas as famílias tinham filhos que estavam lutando na África”, conta Boaro.

A princípio, a propaganda da ditadura salazarista, estimulando a luta pela manutenção das colônias, surtiu efeito. “Só que, com o passar dos anos, os oficiais subalternos, egressos de uma classe mais popular, começaram a entender a luta dos africanos e a ver que eles tinham razão”. Os oficiais de baixa patente, principalmente capitães e tenentes, cada vez mais insatisfeitos com a guerra sem sentido, impulsionaram uma força questionadora da ditadura. A peça esmiúça cada passo do movimento, seguindo a trilha do avanço de consciência entre os jovens militares.

“A esquerda brasileira tende a satanizar o Exército. Mas a caserna é um ambiente propício para discussões de uma sociedade mais horizontalizada. Cabe a gente ver que, no Exército brasileiro houve vários expurgos da esquerda, ao longo da história”, aponta Boaro.
O Exército que disparou a Revolução dos Cravos, ao contrário do brasileiro, era marcado pela democracia interna, com ampla discussão das ordens e hierarquia consentida. No processo revolucionário, vale destacar, muitos oficiais foram guindados a postos superiores devido a seu valor como líderes da luta em curso.

Processo histórico

A tomada do poder pelos militares, em 25 de abril, foi um momento de intensa celebração. Apesar de ainda não estar muito claro de que tipo de transformação se tratava, logo de início houve grande clamor popular - materializado nos relatos verídicos, incluídos na peça, de pessoas que vivenciaram o 25 de abril português.

 O Primeiro de Maio, que não era comemorado em Portugal durante todas as décadas de regime ditatorial, foi de grande festa nas ruas, com direito a discursos acalorados de dirigentes do Partido Comunista português, organização que havia sido barbaramente perseguida e cujos membros foram, em grande parte, presos, torturados e exilados.

Após uma tentativa de golpe da direita, a Revolução ganhou ainda mais força e teve iniciou o Processo Revolucionário Em Curso (Prec), quando diversas medidas políticas, como a estatização de empresas e bancos e a reforma agrária, transformaram Portugal em um país de economia socialista. Surgem em cena momentos da formação política acelerada pela qual passou a classe trabalhadora portuguesa naqueles anos: assembleias, discussões e tomada conjunta de decisões entraram para o cotidiano de todos.

Os embates políticos acabariam, entretanto, resultando na derrota da esquerda revolucionária. A Revolução em Portugal sofreria, ainda em 1975, um duro golpe, com o fim do Prec, em 25 de novembro, em um processo que levaria o país a se tornar uma democracia constitucional, nos moldes europeus.

Como estudo do processo revolucionário, “Ruptura” deixa para a reflexão dos espectadores uma lição de Trotsky: a necessidade da revolução permanente. “Tentamos mostrar que, depois do primeiro ímpeto da revolução, é preciso reinstaurar a revolução continuamente, para evitar sua derrota”, esclarece Boaro.

Embora algumas conquistas da Revolução dos Cravos se mantenham em Portugal até hoje, os efeitos da crise econômica já se fazem sentir pelos trabalhadores. “Nesse momento, a esquerda portuguesa está muito fortalecida. Eu gostaria que tivesse um outro 25 de abril - por sinal, gostaria que tivesse no mundo inteiro, de uma vez”, conclui o diretor. (Com o Brasil de Fato)

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