Governo de SP mantém banco de dados secreto sobre manifestantes

                                                                             Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Fausto Salvadori

Você pode ser da Marcha para Jesus ou da Parada LGBT. Coxinha, petralha, Fora Temer ou Tchau Querida. Não importa. Se resolver participar de uma manifestação no Estado de São Paulo, os policiais militares estão autorizados a gravar imagens e áudios seus e armazená-los todos num banco de dados secreto ao qual você nunca terá acesso.

As regras que regulam a filmagem de manifestantes e o armazenamento deste material pela PM paulista estão descritas na Diretriz PM3-001/02/11, conhecida como Diretriz Olho de Águia, uma norma secreta editada pelo comando da corporação em 2011. Desde então, o governo Geraldo Alckmin (PSDB) vem se esforçando para manter o conteúdo da Olho de Águia oculta aos olhos do público, com o apoio da Ouvidoria do Estado, da Comissão Estadual de Acesso à Informação e até do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – que já emitiu duas decisões favoráveis à manutenção do sigilo  em torno da diretriz.

Driblando as proibições oficiais, a Ponte Jornalismo teve acesso à diretriz Olho de Águia e agora revela o seu conteúdo na íntegra.

A diretriz define o sistema Olho de Águia como um “conjunto de tecnologias dispostas em subsistemas que possibilitam a captação, transmissão, gravação e gerenciamento de imagens e áudios de interesse da segurança pública”. 

As imagens e áudios são produzidas por três fontes diferentes: os “kits táticos”, que são equipamentos portáteis, como câmeras e microfones, utilizados “individualmente, por policiais militares em serviço”, os kits aéreos, aparelhos de filmagem acoplados aos helicópteros da PM, e viaturas chamadas de “Bases Móveis de Apoio Operacional”, capazes de “captar, receber, gravar, transmitir e gerenciar, em tempo real, as imagens e áudios gerados”.

Todo o material produzido pelos policiais nas ruas é transmitido a uma Sala de Comando e Operações localizada nas dependências do Copom (Centro de Operações da PM), o mesmo responsável pela comunicação de rádio entre os carros e polícia. A sala de comando tem como função “monitoramento, gerenciamento, difusão e arquivo das imagens e áudios gerados pelo sistema”.

Big Brother policial

O que a PM pode filmar? Praticamente tudo. Embora afirme que o sistema Olho de Águia deva ser “empregado nas missões de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, nos serviços de bombeiros e na execução das atividades de Defesa Civil”, a diretriz prevê o emprego do sistema de filmagem em situações das mais variadas, inclusive as que não envolvem prática de crime.

Disponível 24 horas por dia, o sistema de filmagem pode ser acionado para acontecimentos graves, como confrontos armados ou acidentes, mas também para “grandes concentrações e ou manifestações populares que possam afetar a ordem pública”, “ocorrências envolvendo autoridades” ou simplesmente “ocorrências que provoquem grande repercussão na mídia”. 

Mas não é só isso: a norma também estabelece que o Olho de Águia pode ser acionado “em outras situações determinadas pelo Comando Geral (Cmdo G) da Instituição ou pelo Grande Comando detentor do Sistema”, o que, na prática, dá ao comando da corporação o poder para usar seu aparato de Big Brother em qualquer situação que achar conveniente.

“Imagens e áudios armazenados”, “gerenciamento”, “difusão”, “arquivo”: os termos usados na diretriz secreta da PM revelam que o Olho de Águia não envolve apenas um sistema de filmagem, mas também a criação de um banco de dados das pessoas e situações flagradas pelas câmeras dos policiais.

Um banco de dados que não seria tão diferente de outros “sistemas inteligentes” criados pela PM, como o Infocrim e o Fotocrim, que também são mencionado na diretriz,  não fosse por uma diferença importante. Enquanto Infocrim e Fotocrim reúnem dados dos boletins de ocorrência, o que significa que só constam ali os dados de pessoas que de alguma forma se envolveram em alguma prática apontada como ilegal, o banco de dados do Olho de Águia pode incluir informações de qualquer pessoa, mesmo de quem nunca tenha se envolvido em nenhuma ação criminosa.

PMs filmam protesto do Movimento Passe Livre em 2017 | Foto por Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Um item curioso da norma diz respeito aos critérios para a definição dos policiais escolhidos para atuar nas filmagens. Além de ter um bom comportamento, não responder a processo e ter experiência de pelo menos dois anos na corporação, os PMs que trabalham no Olho de Águia precisam “receber parecer favorável do órgão de inteligência” da unidade de polícia onde irá trabalhar, ou seja, devem ser aprovados pelo setor da PM encarregado de fazer investigações sigilosas.

Há países em que toda pessoa tem o direito de ter acesso às imagens que fazem dela. Em 2007, a cineasta austríaca Manu Luksch fez um filme de ficção científica na Inglaterra usando apenas filmagens de câmeras de circuito interno em  que ela aparecia, às quais teve acesso graças ao Ato de Proteção aos Dados da legislação inglesa.

Em São Paulo, quem quisesse fazer algo parecido encontraria muita dificuldade. A Diretriz Olho de Águia estabelece que cabe aos comandantes do sistema decidir sobre “solicitações e ou requisições para o fornecimento ou recuperação de imagens e áudios armazenados no Sistema”, sem estabelecer regras nem prazos para isso. No caso de pedidos feitos por “órgãos da mídia”, o comando pode autorizar a divulgação de materiais “quando houver interesse institucional”. A diretriz menciona os interesses da instituição, mas não o interesse público, previsto na Lei de Acesso à Informação.

A Ponte mostrou o conteúdo da diretriz secreta para a advogada Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal da ONG Artigo 19, que promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação. A advogada avaliou que o sistema Olho de Águia, ao permitir que a polícia “crie um banco de dados oficial sobre protestos e manifestantes sem que estes apresentem quaisquer suspeitas”, pode colocar em risco a liberdade de manifestação. “Tal situação pode inibir profundamente o exercício da liberdade de expressão e reunião, fazendo com que pessoas deixem de protestar nas ruas pela escolha – legítima – de não serem filmadas sem que saibam o motivo e o uso feito de sua imagem”, afirma Camila.

Segundo a advogada da Artigo 19, o Olho de Águia ajuda a promover “a criminalização de movimentos sociais  e manifestações públicas em geral” ao listar as hipóteses de utilização do sistema mencionando as manifestações públicas “ao lado de situações de calamidade social, de perigo iminente à vida de agentes públicos e de ações terroristas”. Para Marques, a diretriz “qualifica os protestos, em que direitos fundamentais de expressão e manifestação são exercidos, como situações criminosas, que mereceriam a vigilância estatal”.

Camila sabe do que está falando, já que a Artigo 19 vem há quatro anos tentando obter acesso à Diretriz Olho de Águia pelas vias oficiais, sem sucesso. A primeira tentativa ocorreu em 2013, quando a ONG perguntou à PM sobre as normas que regulamentam a filmagem de manifestações e foi informada sobre a existência da diretriz. Em fevereiro do ano passado, a Artigo 19 solicitou acesso acesso ao conteúdo da Olho de Água, via Lei de Acesso à Informação. Depois que a PM negou o pedido, afirmando que a divulgação da norma traria “risco à segurança pública”, a ONG recorreu à Ouvidoria do Estado e à Comissão Estadual de Acesso à Informação, que reafirmaram o caráter “sigiloso” da Olho de Águia.

Sem conseguir pelas vias administrativas, a Artigo 19 optou pela via judicial e, em abril deste ano, entrou com um mandado de segurança para obter acesso à diretriz. O juiz Danilo Mansano Barioni , da 1ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, negou o pedido liminar e considerou que o sigilo em torno da Olho de Águia estava dentro das exceções previstas na Lei de Acesso à Informação. 

Na sua decisão, o juiz  considerou que “manifestações públicas, em princípio, por sua própria natureza não autorizariam restrições quanto à captação de imagens (filmagens ou fotografias) por quem quer que seja” e afirmou que as manifestações têm “indissociável interesse à segurança pública” por serem “notoriamente impregnadas por grupos heterogêneos e não raro com espetáculos pontuais, em maior ou menor extensão, de vandalismo, depredação do patrimônio público, acirramentos que levam a agressões, etc”.

A Artigo 19 recorreu e, em 17 de maio, recebeu nova negativa. “Evidente que estratégias que tenham por intenção assegurar a incolumidade pública e obstaculizar práticas que sejam eventualmente catalizadoras de atos de violência ou desordem devem ser resguardadas”, afirmou a decisão em segunda instância do desembargador Sidney Romano dos Reis, da 6ª Câmara de Direito Público do TJ-SP.

Para a Artigo 19, a decisão do Tribunal de Justiça paulista “legitima um estado generalizado de segredo de toda e qualquer informação relacionada à segurança pública, impossibilitando o controle social” e ajuda a perpetuar “a obscuridade de informações que, se públicas, permitiriam à população e à sociedade civil conhecer as regras do jogo, e, assim, cobrar o cumprimento de padrões mínimos de respeito a direitos fundamentais e buscar a responsabilização por abusos”.

A Ponte enviou dez perguntas à CDN Comunicação, responsável pela assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública do governo Geraldo Alckmin, a respeito da Diretriz Olho de Águia. Nenhuma delas foi respondida.

1) Por que uma norma de interesse público tão evidente é mantida secreta?

2) O item 6.4 da norma, sobre as condições de acionamento, deixa claro que o sistema pode ser usado para filmar pessoas em situações que não envolvem crime, como “grandes concentrações e ou manifestações populares que possam afetar a ordem pública” ou “ocorrências que provoquem grande repercussão na mídia”. Por que o governo considera que é necessário captar imagens e áudios de manifestantes e ainda gerenciar e arquivar (usando os verbos que aparecem nos itens 6.1.1 e 6.1.2 da norma) tais registros?

3) Como está organizado o banco de dados formado a partir dos registros de imagem e áudio captados e arquivados pelo sistema “Olho de Águia”? É possível identificar indivíduos e pesquisar por nomes?

4) A diretriz indica que o governo gravou, arquivou e gerencia um banco de dados com informações de indivíduos e grupos que não necessariamente estão envolvidos em atividade criminosa. Por quê?

5) Qual é o uso dado pelo governo a esse banco de dados? Quem tem acesso a ele?

6) Por que a Polícia Militar deve manter um banco de dados sobre cidadãos se a Constituição de 1988 reserva apenas às polícias civis a função de polícia judiciária?

7) Como um cidadão pode exercer seu direito de livre expressão e de reunião sabendo que representantes do Estado vão gravar e armazenar imagens dele mesmo que não tenha cometido qualquer delito?

8) Como um cidadão pode ter acesso ao material que o governo armazenou a seu respeito no sistema Olho de Águia?

9) Por que o policial que atua no sistema deve “receber parecer favorável do órgão de inteligência da OPM na qual desenvolverá suas funções”? Que itens o serviço reservado analisa a respeito do policial em questão? Opiniões políticas e posicionamentos ideológicos do policial são analisadas pelo órgão de inteligência?

10) O item 6.7.2 afirma que as imagens e áudios armazenados no Sistema “Olho de Águia podem ser divulgadas quando houver “interesse institucional para divulgação dos fatos”. Por que “interesse institucional” e não interesse público?

A Ponte Jornalismo enviou as mesmas perguntas para a assessoria de imprensa do coronel Álvaro Batista Camilo, que comandava a Polícia Militar em 2011 e assinou a Diretriz Olho de Águia. Camilo, que hoje é deputado estadual pelo PSD, integrante da chamada Bancada da Bala no legislativo paulista, também não respondeu.

(Com Ponte Jornalismo/MTST)

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