Cem anos de Nelson Cavaquinho II
Agora em outubro, serão lembrados os 100 anos de Nelson Cavaquinho, uma das maiores expressões da nossa música, “reconhecido oficialmente como gênio” - nas palavras de José Ramos Tinhorão.
Para homenageá-lo, trazemos duas das mais significativas e inspiradas visões sobre o grande criador: um texto de Tinhorão e um documentário de Leon Hirzman. E também acrescentamos duas de suas mais conhecidas composições: “Juízo Final” e "A flor e o espinho".
O texto do pesquisador e jornalista foi escrito para sua coluna no Caderno B do Jornal do Brasil (4/1/1974), quando do lançamento do disco de Nelson e o documentário “Nelson Cavaquinho” foi filmado em 1969 por Leon Hirzman (documentário apresentado em dezembro de 2010 no CeCAC, em nossa confraternização de final de ano e como registro e homenagem ao Dia Nacional do Samba - 2 de dezembro).
A boa palavra de Nélson Cavaquinho [*]
José Ramos Tinhorão
Nos últimos anos, com a descoberta dos grandes criadores das camadas populares por parte da juventude de nível universitário, o compositor Nélson Cavaquinho passou a ser reconhecido oficialmente como gênio.
Essa fama, porém, começava a perigar porque, apesar da legenda criada em torno da figura do curioso trovador de cabelos brancos faltava uma prova em disco. É essa prova que a Odeon vem oferecer agora com o seu LP Nélson Cavaquinho (smofb-8 809), e que constitui, mais do que um documento de genialidade, uma obra de amor. Pela primeira vez em seus quarenta anos de compositor, Nélson Cavaquinho é tratado com a compreensão e o respeito que o seu rústico talento merecia - e estava precisando. Sustentado pelos arranjos discretos dos maestros Gaia e José Briamonte, que em nenhum momento pretenderam ser mais brilhantes do que o compositor, sua voz rouca e seu estranho violão desafiador de todas as escolas podem enfim mostrar que quando o talento é grande, não há fórmulas ultrapassadas. A de Nelson é o velho samba lírico, construído sobre rasteiras e vigorosas experiências vitais, resultadas de toda uma existência aberta às sugestões da frustração e da incerteza, mas também da coragem e da poesia.
Logo na primeira faixa do disco (samba Juízo Final em parceria com Élcio Soares), o compositor oferece uma prova disso quando canta - com um otimismo que situa simbolicamente o povo muito acima do medo e da falta de horizontes que assustam as estruturas - "O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente". Com um profundo sentido metafísico da necessidade de viver - pois que viver é, afinal, o ofício do homem - Nélson Cavaquinho mostra que nessa tarefa é sempre preciso fazer uma escolha, e mesmo quando ela deve ser feita entre o bem e o mal, enquanto houver esperança, ninguém se perderá: "Nunca é tarde prá quem sabe esperar/O que se espera há de se alcançar/Eu plantei o bem e vou colher o que mereço/A felicidade deve ter meu endereço". (O Bem e o Mal em parceria com Guilherme de Brito). E o impressionante em Nélson Cavaquinho é que todas essas coisas são ditas musicalmente com uma extraordinária coerência: se a sua melodia é quase sempre repassada de nostalgia, o ritmo em que se apoia é invariavelmente vigoroso, como se estivesse querendo demonstrar, também em sons, que acima das incertezas da alma, ainda uma vez, está a necessidade da vida.
Essa bela lição aos pobres e angustiados compositores jovens modernos - quase todos mascarando com a busca desesperada de novidades formais, a angústia existencial da classe média - é fornecida por Nélson Cavaquinho com a áspera rouquidão de uma voz que, há quase cinquenta anos, conhece o gelo de todas as cervejas e de todos os chopes do Rio de Janeiro, bebidos entre transbordamentos de poesia e espuma, em quantas madrugadas a boemia inventou como pretexto para ouvi-lo cantar junto aos balcões dos botequins.
Para captar esse espírito que tão bem reflete a verdadeira alma do povo das cidades - e é desde a contracapa do disco magnificamente documentado do diálogo entre Nélson Cavaquinho e o jornalista Sérgio Cabral - a Odeon pode contar com o entusiasmo (e o amor) de um produtor paulista de vocação carioca: J. Botezeli conhecido como Pelão. Além de fazer o compositor gravar uma das faixas tocando o instrumento que lhe deu o apelido (Nélson toca ao cavaquinho o seu choro Caminhando, ao lado do estupendo violão de Dino), Pelão apresenta pela primeira vez em disco Guilherme de Brito, o mais constante (e verdadeiro) parceiro de Nélson Cavaquinho, o que acrescenta aos méritos do LP o caráter de um oportuno ato de justiça.
No mais, o que se tem a dizer, é que o long play da Odeon Nélson Cavaquinho, constituindo o mais importante lançamento no campo da música popular brasileira nos últimos tempos, ganhou muito em ser lançado neste entremeio de tempo em que um ano termina e outro desponta: ele vem mostrar, com a força poética e a rude e inventiva música dos sambas do maior compositor das camadas mais humildes do Rio de Janeiro, que o tempo passa, mas o gênio criativo continua.
[*] Texto publicado originalmente no Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, sexta-feira, 4/1/1974, página 2; extraído do livro"Tinhorão, o legendário" (Anexo X - pgs 227 a 230), de Elizabeth Lorenzotti, Editora IMESP, São Paulo, 2010
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(Com o CeCac)
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