Sala Escura da Tortura -Carta aberta à futura Comissão da Verdade
> Carta aberta à Comissão da Verdade>
> "Os militares, descumprindo o juramento que fizeram de obedecer às
> leis vigentes, haviam rasgado a Constituição e ocupado o poder pela
> força, instaurando uma ditadura militar através de um golpe. Thomaz e
> outros companheiros deram, então, combate à ditadura. Quem estava na
> ilegalidade eram os militares e não os que contra eles lutavam". -
> José Ribamar Bessa Freire
> Ofício nº 01/2011
> Assunto: Cadê o Thomazinho?
> Senhores Membros da Comissão da Verdade,
> Saudações,
> Escrevo-lhes para solicitar que esclareçam o paradeiro de Thomaz
> Antônio da Silva Meirelles Neto, o único amazonense incluído na lista
> oficial de “desaparecidos” na ditadura militar.
> Sei que a Comissão não foi ainda constituída, que sua estrutura só
> será votada no Senado nos próximos dias, que seus integrantes sequer
> foram escolhidos. Se me antecipo, é apenas para garantir um lugar na
> fila. É que os “desaparecidos” são centenas, e apenas sete os membros
> da Comissão que, entre outras tarefas, terá de descobrir, no prazo de
> dois anos, as graves violações dos direitos humanos praticadas entre
> 1946 e 1988.
> Assim, quando a presidente Dilma indicar os nomes, a Comissão já
> encontrará sobre sua mesa este ofício, contendo dados que podem
> facilitar vosso árduo trabalho. Anotem: Thomazinho nasceu em 1º de
> julho de 1937, em Parintins. Mudou para Manaus em 1950, onde estudou
> no Colégio Estadual do Amazonas. Viajou para o Rio de Janeiro, em
> 1958. Foi eleito secretário geral da União Brasileira de Estudantes
> Secundaristas (UBES) em 1961. Ouçam o depoimento do titiriteiro
> Euclides Souza, roraimense que hoje vive no Paraná e com ele conviveu
> naquela época:
> -Viajei com Meirelles por todo o Brasil na UNE-volante, ele
> representava a União Nacional dos Estudantes e eu o CPC – Centro
> Popular de Cultura. Como nós dois éramos caboclos e comunistas,
> ficávamos sempre no mesmo quarto e passávamos as noites discutindo
> cultura popular e socialismo.
> Foi aí que Thomazinho ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade
> Lomonosov, em Moscou. Lá, casou com Miriam Marreiro, uma amazonense
> que estudava Direito na Universidade Patrício Lumumba. Com ela teve
> dois filhos: Larissa, nascida na Rússia, em 1963, e Togo, no Brasil,
> para onde o casal voltou depois do golpe militar de 1964.
> Acontece que quando Thomazinho saiu do Brasil, quem governava o país
> era um presidente eleito democraticamente pelo voto popular. Quando
> voltou, a situação era outra. Os militares, descumprindo o juramento
> que fizeram de obedecer às leis vigentes, haviam rasgado a
> Constituição e ocupado o poder pela força, instaurando uma ditadura
> militar através de um golpe. Thomaz e outros companheiros deram,
> então, combate à ditadura. Quem estava na ilegalidade eram os
> militares e não os que contra eles lutavam.
> Thomaz e seus companheiros sonhavam com um Brasil sem injustiças, onde
> o chibé seria compartilhado entre todos. Entregou-se, generosamente, à
> luta por este ideal, sacrificando família, conforto, bem-estar,
> carreira pessoal. Por causa de sua luta, enfrentou policia, sofreu
> prisão, foi espancado e torturado. Saiu de lá todo quebrado.
> - Meu filho estava bastante machucado, tinha muitas marcas no corpo” –
> revelou sua mãe, dona Maria, que conversou com ele em fevereiro de
> 1973, num “ponto” em Copacabana. Essa foi a última vez que o viu. Ele
> permaneceu na clandestinidade até ser preso outra vez no dia 7 de maio
> de 1974.
>
> Senhores, de acordo com o projeto aprovado nesta semana pela Câmara de
> Deputados, a Comissão da Verdade poderá colher testemunhos, receber
> documentação com garantia de anonimato e requisitar informações de
> órgãos públicos, mesmo aquelas classificadas como sigilosas.
> Requisitem, portanto, documentos do Arquivo do DOPS/SP, onde está
> registrada a prisão de Thomazinho, efetuada quando viajava do Rio para
> São Paulo.
> Busquem, senhores membros da Comissão da Verdade, o Relatório do
> Ministério da Marinha, que confirma a prisão de Thomazinho. Encontrem
> outros documentos. Chequem a notícia publicada pelo Correio da Manhã
> (03/08/79) que revelou uma lista com 14 mortos, entre os quais está o
> nome de Thomaz Meirelles, cujo corpo até hoje não foi localizado.
> Identifiquem e convoquem, para serem ouvidos, aqueles que violaram os
> direitos humanos, torturaram e mataram presos que estavam sob a guarda
> do Estado.
>
> Ao contrário de outros países, no Brasil a Comissão da Verdade não
> poderá, lamentavelmente, punir ou perseguir judicialmente os
> torturadores, cujos salários eram pagos pelo contribuinte e que
> praticaram tais crimes hediondos contra a humanidade. Na Argentina, no
> Chile e no Peru, vários agentes do Estado, entre eles generais e ex-
> presidentes da República, responsáveis por torturas e mortes, estão
> presos. É nessas horas que sentimos inveja de argentinos, peruanos e
> chilenos, que não contemporizaram com a tortura.
> Mesmo assim, senhores, apesar dessas limitações, descubram os nomes
> dos assassinos de Thomazinho. Se eles não podem ser punidos
> judicialmente, serão moralmente execrados pela opinião pública. Dessa
> forma - quem sabe? - a luta para descobrir o paradeiro de Thomaz
> Meirelles pode contribuir para coibir a tortura que continua a ser
> praticada hoje, no Brasil, contra negros, mulatos, pobres, favelados.
>
> Localizem, senhores membros da Comissão da Verdade, o túmulo de
> Thomazinho para que possamos ir lá depositar uma flor e fazer uma
> oração, como queria sua mãe, que morreu sem qualquer informação sobre
> o seu paradeiro.
>
> Nem mesmo o sistema ditatorial mais cruel da história da humanidade
> aprovou uma lei determinando a ocultação de cadáveres. A família e os
> amigos dos “desaparecidos” têm o direito de saber o que aconteceu com
> eles, da mesma forma que a sociedade brasileira tem o direito de
> conhecer a história e de construir uma narrativa sobre ela, para
> evitar que tais crimes sejam cometidos outra vez. Só dessa forma
> Thomazinho e tantos outros “desaparecidos” poderão descansar em paz.
>
> P.S.: Ah, senhores, façam um esforço também de localizar os nomes dos
> índios “desaparecidos” na luta contra a ditadura, entre eles alguns
> Waimiri-Atroari, Krenhakore, Kané, Surui, Cinta Larga e tantos outros
> que foram assassinados porque se opunham aos projetos de exploração
> econômica e aos belos montes da ditadura militar."
> O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos
> dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em
> Memória Social (UNIRIO). Escreve no Taqui pra ti.
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