Dr. Ronaldo Castro: ele viu de muito perto a covardia e a brutalidade da ditadura


                                                             
O relatório do dr. Ronaldo sobre tortura na ditadura está no livro Brasil Nunca Mais


O triste relato de um médico que viu de perto a violência do regime militar, tratando de pessoas que foram torturadas nos porões do regime militar.

Fonte: O Fato Online- Edson Luiz / Sheila Leal/ObritoNews/Fato Online

Em seus quase 60 anos de profissão, o psicanalista Ronaldo Mendes de Oliveira Castro passou por vários momentos delicados ao atender seus pacientes. 

Mas nenhuma outra situação lhe doeu mais que as duas vezes em que teve de atender, durante a ditadura, vítimas das torturas e brutalidades da ditadura militar. O primeiro caso foi logo após o golpe de 1964 e a outra, seis anos depois.

 “O que um médico sente diante disso (da tortura) é uma enorme revolta, por causa do lado destrutivo das pessoas. Depois, é o sofrimento de alguém que passa por uma violência tão cruel. Mas o sentimento que mais me toca como médico, que se sobrepõe a aliviar a dor, o sofrimento e até salvar alguém, é a impotência”, diz Ronaldo, hoje um senhor de 83 anos, que ainda trabalha pela manhã em sua clínica e que, nas horas vagas, escreve poesias. “Me senti profundamente impotente”, revela.

 “O que um médico sente diante disso (da tortura) é uma enorme revolta, por causa do lado destrutivo das pessoas. Depois, é o sofrimento de alguém que passa por uma violência tão cruel. Mas o sentimento que mais me toca como médico, que se sobrepõe a aliviar a dor, o sofrimento e até salvar alguém, é a impotência”Ronaldo Mendes de Oliveira Castro

Nos dois casos, o psicanalista foi chamado para prestar atendimento. No primeiro, ocorrido em 1964, a pessoa era um funcionário público que estava preso no BGP (Batalhão da Guarda Presidencial) e se encontrava doente. Ronaldo conta que foi chamado pela esposa do preso. “Ela me contou que ele estava lá há 60 dias”, relata o médico, acrescentando que foi ao local e, em um primeiro momento, foi impedido de entrar. Diante da insistência, um oficial atendeu seu pedido para examinar o detido.

“Ao abrir a porta foi um impacto muito grande”, conta Ronaldo. “Havia pelo menos 40 colchões no chão com pessoas deitadas neles”, relata o médico, afirmando que o preso estava com pneumonia. A doença foi confirmada depois, quando militares levaram o homem para o hospital onde Ronaldo trabalhava. Dias depois, já livre, o funcionário decidiu fugir do país para evitar uma nova prisão.

Antes de deixar o local, Ronaldo ainda viu algumas pessoas sendo encaminhadas para suas celas, ou levadas para interrogatório. Uma delas chamou a atenção do médico. “Era um homem esquálido”, conta o psicanalista. Só depois ele soube que se tratava de Francisco Julião, um dos principais integrantes da Liga Camponesa e que estava sendo detido pelo regime.

Depois deste episódio, Ronaldo se ausentou do Brasil. “Fui fazer especialização em psicologia na Espanha”, conta o psicanalista, que foi aluno do médico do ditador Francisco Franco, em 1967. Depois, Ronaldo seguiu para a França e Suíça. “Em 1965, voltei ao Brasil e assumi a chefia da psiquiatria do então Hospital Distrital de Brasília, onde fiquei por algum tempo”, relata. E foi no estabelecimento que o médico passou um dos momentos triste de sua carreira.

Demissão do serviço público

O sorridente Ronaldo entristece quando cita o segundo caso em que foi chamado para atender. Além de ter sido novamente de uma pessoa torturada, pode ter sido também o motivo de sua demissão do serviço público. 

Somente 15 anos depois de ter atendido a estudante Maria Regina Peixoto Pereira, é que ele viu seu nome no livro Brasil Nunca Mais, editado pela Arquidiocese de São Paulo. Lá estava parte de seu relatório confidencial, onde narra o caso na estudante.

Ela também havia sido torturada no BGP, segundo Ronaldo, mas de forma com que as agressões não fossem reveladas. “Um médico orientava para que as lesões não deixassem marcas”, conta o psicanalista. “Ela estava em estado de choque, não se mexia e chorava com medo”, acrescenta. Segundo ele, a estudante lhe contara, dias depois, que havia sido torturada. Isso, depois de ganhar sua confiança.

E tudo o que ela contou o dr. Ronaldo colocou em um relatório entregue à direção do hospital público onde trabalhava. Pouco tempo depois, o médico estava demitido sob a alegação que falara mal da instituição. Mas para ele, o principal motivo foi descrever a tortura. E isso ele só soube 15 anos depois, quando viu o seu relato numa das principais obras sobre os abusos da ditadura, o livro Brasil Nunca Mais. Até então, ele achava que havia sido afastado por fazer críticas à direção do hospital.

A década de 1970 foi considerada uma das mais violentas e arbitrárias de todo o período da ditadura. Naquele ano, segundo registros da CNV (Comissão Nacional da Verdade), foram feitas mais de 1,2 mil denúncias de torturas, de um total de 6.016 casos registrados de 1964 a 1977. Documentos comprovam que isso aconteceu com 1.843. Ou seja, um indivíduo sofreu agressões por mais de uma vez.

Outra tortura

Nos dias atuais os principais problemas é tortura nas prisões não são mais por questões políticas. As causas maiores, segundo relatório que será apresentado pelo SPT (Subcomitê para a Prevenção da Tortura) da Organização das Nações Unidas, é diferente. Segundo o documento, os piores casos são relacionados a superlotação endêmica, condições chocantes de detenção, a violência generalizada e a falta de supervisão adequada. Isso não foi resolvido nos últimos quatro anos, segundo Victor Madrigal-Borloz, chefe da missão que esteve no Brasil na semana passada.

 Apesar disso, Madrigal-Borloz ressalta que o país vem adotando medidas para minimizar o problema. “O desafio do Brasil é fechar a lacuna entre sua ambiciosa política pública e a situação cotidiana das pessoas privadas de liberdade. O SPT também constatou que o país tem adotado meios relativos ao Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, como a formação de comitês para adotar políticas para o setor. Os inspetores da ONU estiveram em Pernambuco, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Amazonas. (Com a Comissão da Verdade de Minas Gerais)


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