A cobertura da imprensa burguesa durante a Revolução Russa (II de III)

                                                                                
                                               Bolcheviques marcham na Praça Vermelha

Eduardo Vasco

Se na imprensa dos Estados Unidos, representada pelo New York Times no artigo anterior, a maior parte das notícias vindas da Rússia era produzida por agências de notícias, o mesmo vale para o noticiário sobre a Revolução nas páginas dos jornais brasileiros.

De acordo com uma pesquisa de Ana Paula Moreira et. al. [1], as informações veiculadas a esse respeito na imprensa brasileira vinham exclusivamente de agências estrangeiras. E a maioria das notícias destacava apenas o “lado ruim” dos bolcheviques.

Mesmo antes de estes tomarem o poder em outubro (no calendário russo de então; novembro, no ocidental), já eram retratados de forma negativa e com muitos adjetivos.

Astrojildo Pereira, fundador do PCB, denunciava em um artigo da época as “calúnias e imbecilidades de que se tem servido a nossa imprensa nas apreciações sobre a obra dos maximalistas russos” [2]. “Suas apóstrofes de maldição desabam sobre os maximalistas, 'monstros' satânicos e cruéis, provocadores da derrocada da própria pátria”, ironizava o militante anarquista, que após a vitoriosa Revolução de Outubro se converteu ao comunismo.

Assim como na imprensa estadunidense, nas páginas dos jornais brasileiros lia-se que os bolcheviques estavam a serviço da Alemanha. Augusto Buonicore [3] lembra que A Noite de 5 de maio de 1917 chegou a afirmar que os trabalhadores russos que protestavam contra a guerra durante o governo provisório eram “dirigidos por agentes alemães”, sendo um deles Lenin, que havia sido “assassinado em Petrogrado” naqueles dias. 

Esta última informação foi atribuída pelo veículo a um “correspondente de um jornal norueguês”. Poucos dias depois, o jornal brasileiro estampou novamente a morte de Lenin “durante uma rusga entre operários e soldados”.

O Combate, de 25 de julho de 1917, descrevia Lenin como “chefe da espionagem alemã, tendo gasto nos últimos meses vários milhões de rublos”.

O líder comunista foi diversas vezes perseguido pelos pseudo-jornalistas. Artigos surrealistas como um do Correio da Manhã diziam o seguinte: “O célebre agitador Lenin faleceu em 1916 na Suíça e o falso Lenin que ultimamente tem agitado a Rússia não é outro senão um certo Zaberlun, antigo amigo de Lenin.” Segundo Buonicore, era comum retratar Lenin como sendo judeu, em “uma clara tentativa de relacionar a revolução russa com um suposto complô judaico internacional para conquistar o mundo”.

Ainda sobre Lenin, o jornal Época de 1º de outubro de 1917 inventava: “Seu modo de vestir é dos mais descuidados (…) o que não impede de por, desde a revolução, diamantes nos botões de punho das camisas”, além de noticiar que ele havia sido preso pelo governo provisório, o que não ocorreu.

Após a Revolução Socialista, em 7 de novembro no calendário ocidental, a campanha continuou, desta vez garantindo a inevitabilidade da queda do governo revolucionário.

Em 11 de novembro, A Noite afirmava que os bolcheviques cairiam sem demora: “Os cossacos, ajudados pelos minimalistas, estão prestes a dominar os leninistas, com os quais têm travado batalhas nas ruas da capital.” 

No dia seguinte, lembra Buonicore, o mesmo jornal “informava” que “Kerenski, à frente de 200 mil homens dedicados e apoiados pela grande maioria da população, como também pelo Exército e pelas organizações conservadoras” estava lutando contra os bolcheviques, que àquela altura já teriam fugido. “Esperemos, com otimismo, o resultado da luta que se está travando, porque dela deve sair triunfante a boa causa que é a que defende Kerenski.”

O País e O Imparcial anunciavam, respectivamente, que “o governo chefiado pelo Sr. Lenin reconheceu-se incapaz de deter as forças consideráveis de Kerenski” e que não restava dúvidas: “Kerenski dominará integralmente a desordem leninista.” O Imparcial também afirmava que “fontes autorizadas” informavam que as tropas de Kerenski marchavam sobre Petrogrado.

E vinha o cúmulo da mentira, em 13 de novembro, alcançado por A Noite: “O Sr. Kerenski sai uma vez mais triunfante dos seus inimigos. Nos arrabaldes e dentro da própria capital (…) travou-se uma batalha que terminou (…) com a derrota dos maximalistas. Estes já reconhecem, aliás, a sua perdição e procuram agora chegar a um acordo, que Kerenski repele integralmente, declarando que maximalistas depuseram as armas, dominando a cidade um outro comitê, formado pelo ex-presidente da Duma.”

Pura ficção. Vergonhosa e completa distorção dos acontecimentos. Na verdade, não passava de mentiras inventadas pelas forças contrarrevolucionárias russas e espalhadas pelos veículos de comunicação ocidentais.

A Noite continuava a história, desta vez pregando uma punição aos bolcheviques: “É preciso que esta aventura seja exemplarmente castigada para que os comparsas de Lenin ou outros agitadores anarquistas, a serviço da Alemanha, não tenham vontade de repeti-la.” Coitado do público leitor desse jornal...

A derrota e a fuga das forças revolucionárias foi anunciada durante um longo período. Em 17 de dezembro de 1918, A Gazeta publicava uma nota do inglês Daily Mail, reproduzindo declaração de um militar sueco que afirmava que Lenin e seus camaradas preparavam-se para fugir da Rússia devido ao avanço das tropas estrangeiras. Como visto no artigo anterior, essa mentira foi comum também na imprensa internacional.

Também chegaram às páginas, digamos “amarelas”, dos nossos jornais as supostas atrocidades cometidas pelo poder soviético. “Os bolcheviques perseguem ingleses e franceses na Rússia”, “Continua o reinado do terror em Petrograd” e “Na Rússia praticam-se casos monstruosos em nome do socialismo” eram algumas das manchetes do jornal A Gazeta

Esse último título era de uma matéria publicada em 13 de setembro de 1918, reproduzida de um correspondente do New York Times. Segundo Ana Paula Moreira et. al., o jornalista afirmava que o governo dos sovietes estava realizando massacres contra pessoas inocentes, exterminando supostos inimigos e pedia intervenção das potências ocidentais.

Conforme escreve Buonacore, foi originado assim um dos mais ridículos mitos acerca do comunismo:

Quando da grande fome que se abateu sobre aquele país no início da década de 1920 – fruto da seca e da guerra civil imposta pelas potências capitalistas – um jornal escreveu: “Ali os famintos desenterravam cadáveres para comer. 

Os adultos, famintos, invejavam as crianças alimentadas pela American Relief Administration, provocando casos frequentes de canibalismo. Ainda, em Sâmara, a polícia fechou um restaurante que servia aos fregueses carne de crianças”. Surgia assim a lenda, repetida por décadas a fio, que os comunistas comiam criancinhas.

(E, de reboque, que os santos salvadores americanos alimentavam os famintos, tentando protegê-los da miséria imposta pelo comunismo).

O jornal carioca A Razão, em 16 de novembro de 1917, pouco depois da tomada do poder pelos bolcheviques, chamava estes de “loucos”, “notáveis canalhas”, por quererem abolir a propriedade privada e entregar as terras à “plebe inconsciente”. Para esse periódico, Lenin era um “monstro” e os bolcheviques, financiados pela Alemanha para traírem “de modo revoltante” os Aliados.

Sobre essa passagem da A Razão, Astrojildo Pereira escreveu:

[…] é um documento que merece registro e de que nos devemos recordar para as necessárias satisfações, no dia em que a revolução, atravessando o oceano, irrompa justiceira por estas riquíssimas terras brasílicas de miseráveis e famintos...

Essa reflexão do dirigente comunista brasileiro é atualíssima. Pelo visto, pouco mudou em cem anos na cobertura da imprensa brasileira sobre os acontecimentos mundiais. As difamações contra Cuba, Venezuela, Coreia do Norte etc. seguem a mesma linha atualmente. Os grandes meios de comunicação, controlados por meio dúzia de capitalistas, continuam a ser inimigos implacáveis da classe trabalhadora.

No último artigo da série, será relatada a cobertura da imprensa portuguesa sobre a Revolução Russa de 1917.

Referências:

[1] MOREIRA, Ana Paula et. al. “Revolução Russa sob o olhar da imprensa”. Jornalismo e História: relação antiga e permanente. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2016.

[2] PEREIRA, Astrojildo. “A Revolução Russa e a Imprensa”. In: Arquivo Marxista na Internet. Disponível em: . Acesso em: 28. dez. 2016.

[3] BUONICORE, Augusto. “A revolução russa e a imprensa brasileira”. Blog do Miro. Disponível em: . Acesso em: 28 dez. 2016.

(Com o Diário Liberdade. A primeira parte foi aqui publicada dia 17/03/2017)

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