Ângela Carrato escreve: "O pagamento fixo vai acabar?"





Como o FI entrava nos veículos impressos? Ele se dava, principalmente, por meio do patrocínio a cadernos especiais, mensais ou não, que tratavam do Terceiro Setor, além de matérias pagas caracterizadas como informes publicitários faturados via empresas estatais como Cemig, Copasa e Codemig.

Para alguns, o FI é, na prática, uma proteção, um pedágio, que autoridades mineiras, belorizontinas e de cidades do interior pagavam à imprensa para não serem incomodadas com assuntos que pudessem lhes causar problemas ou desgastes junto à opinião pública. A cobrança partiu da própria mídia e acabou “institucionalizada”.

Não falta nem mesmo os que asseguram que FI é, na realidade, uma corruptela do vocábulo inglês fee, que significa taxa – não no sentido de imposto, mas de gratificação, honorários ou propina. Afinal, imposto não se aplica a uma situação assim, pois nas sociedades democráticas, apenas o Estado está autorizado a cobrar impostos de pessoas, instituições e empresas. Não é por acaso que, em algumas rodas de conversas, o comentário sobre a cobertura que a imprensa mineira faz das administrações estaduais costuma ser: “Melhor que o governo atual, só o próximo.”

Estima-se, de acordo com fontes da área publicitária, que nos últimos 12 anos, os governos tucanos pagaram ao jornal Estado de Minas em torno de R$ 4 milhões a título de FI. O jornal O Tempo recebia quatro vezes menos. Razão da briga da empresa do ex-deputado tucano Vittorio Medioli com o então governador Aécio Neves, já que o dono deste jornal não entendia por que o EM recebia mais. Uma “injustiça”, devia acreditar, até porque O Tempo e a outra publicação do grupo, o tabloide sensacionalista Super, são, inegavelmente, os de maior tiragem e os mais lidos em Minas Gerais.

Empréstimos e caixa-preta

Veículos da mídia eletrônica na capital mineira também recebiam FI, mas este não era contínuo. O pagamento acontecia apenas em circunstâncias especiais e os valores praticados eram bem menores. Há quem garanta, por exemplo, que a Veja BH, publicação semanal da editora Abril voltada para a agenda cultural, bares e algumas notícias locais, teria vindo para Minas para alavancar o apoio à candidatura de Aécio Neves à presidência com o pagamento de um FI que garantisse a manutenção da revista.

Vale ainda lembrar que durante a década de 1990, a maioria das sucursais dos jornais ditos nacionais fecharam as portas em Belo Horizonte. A sucursal do Jornal do Brasil foi das poucas que voltou a funcionar no período entre 1996 e 2002. Período que praticamente coincide com o governo do tucano Eduardo Azeredo (1995-1999). Depois, o FI mensal de R$ 80 mil passou a ser bancado por políticos mineiros interessados em terem “projeção nacional”.

Em maio de 2012, o diretor-presidente da editora Abril, Fábio Barbosa, esteve em Belo Horizonte para o badalado lançamento da publicação, que teve como mestre de cerimônias a atriz Debora Secco e contou com as presenças do prefeito da capital, Márcio Lacerda, e do senador tucano Aécio Neves, que não pouparam elogios à iniciativa. 

Com a derrota do tucano no plano regional e nacional nas eleições de 2014, a revista bateu em retirada. A Vejinha, como era conhecida, encerrou a edição impressa e demitiu a equipe contratada dois anos antes. Oficialmente, a empresa culpou a “desaceleração econômica, que está impactando a publicidade e a mídia de maneira geral”.

Não é fácil precisar quando o FI foi criado. Os mais antigos garantem que ele já existia na década de 1970, mesmo que possuísse outras características. Na administração Francelino Pereira (1979-1983), por exemplo, o último governador indicado pelos militares, o FI assumiu a forma de empréstimo concedido aos Diários Associados por bancos estaduais, para construir o novo parque gráfico da empresa e que não foi pago. 

Aliás, é importante lembrar que Minas Gerais, contava, naquela época, com três bancos públicos – Caixa Econômica Estadual, Agrimisa e Crédito Real. Todos eles quebraram e foram liquidados sem que qualquer explicação consistente fosse dada à população. Extraoficialmente sabe-se que parlamentares e a mídia estavam entre os seus grandes devedores, uma caixa-preta que nenhum partido político em Minas jamais quis abrir.

Pragmatismo x transparência

Preocupado com o que denominava de “provincianismo, excesso de press-releases e manipulação dos fatos” pelo jornal Estado de Minas, Tancredo Neves, uma vez eleito governador, pensou em estimular o surgimento de uma nova publicação para fazer face ao então “grande jornal dos mineiros”. Ele estava escaldado e profundamente irritado com o comportamento do jornal Estado de Minas que, durante a campanha eleitoral de 1982, deu nítido apoio ao candidato situacionista ao Palácio da Liberdade, Eliseu Resende, contra ele, que disputava pela oposição, o PMDB.

Para ter qualquer informação sobre sua campanha ou suas propostas publicadas, seu comitê eleitoral teve que pagar – e caro – aos Associados. Razão pela qual ele e o seu vice-governador, Hélio Garcia, acalentaram, por algum tempo depois de eleitos, a ideia de estimular o surgimento de uma nova publicação. Acabaram abandonando a ideia, cedendo ao pragmatismo de quem se preparava para uma campanha rumo à presidência da República.

Antes de desistirem da ideia, emissários de Tancredo Neves chegaram a se reunir com o empresário José Costa que, na época, era proprietário de duas publicações, Diário do Comércio e o semanário de distribuição gratuita em Belo Horizonte, Jornal de Casa. Costa detinha também o título Folha de Minas e tudo parecia indicar que pretendia lançá-lo. Para tanto, queria a garantia do governo do Estado de que não haveria privilégios e discriminações em termos de publicidade por parte de setores e órgãos públicos.

Já naquela época, Costa sentenciava: “O ideal – e o necessário – é que o governo do estado, seja na condição de anunciante, seja por estar utilizando recursos públicos, mostre-se transparente em seus gastos de comunicação, principalmente aqueles que não aparecem, porque não tomam a forma de anúncios que possam ser identificados como tal” (in revista Cartas de Minas, Belo Horizonte, fevereiro de 1987, p.9). José Costa morreu sem ter esta garantia de Tancredo, de Hélio Garcia ou qualquer outro governador. Razão pela qual sempre considerou prudente “não dar nenhum passo maior do que as pernas”.

Além de Tancredo e Garcia, também pagaram FI os governadores Eduardo Azeredo, Aécio Neves, Antônio Anastasia e Alberto Pinto Coelho. Coincidentemente, não há na imprensa mineira, nos últimos 12 anos, exceto no período da “briga” entre Medioli e Aécio, uma única notícia ou reportagem dando conta de problema sério da alçada do governo do estado. Para a imprensa mineira, o “choque de gestão” funcionou às mil maravilhas, com a administração regional constituindo-se em uma espécie de ilha de prosperidade a ser copiada pelo resto do Brasil.

Assembleia Legislativa, prefeitura de Belo Horizonte e as principais prefeituras do estado também passaram estes anos em brancas nuvens, sem serem “incomodadas” por notícias ou reportagens “negativas”. Até mesmo quando um veículo “de fora” (leia-se eixo Rio-São Paulo) publicava alguma matéria “ruim”, o assunto era solenemente ignorado pela imprensa mineira. Que o digam as denúncias envolvendo o Mensalão Tucano, a Lista de Furnas e a morte de uma modelo com ligações com pessoas do governo do Estado em um apart-hotel de luxo em Belo Horizonte.

Mudar para continuar igual

No passado recente, os únicos governadores que se recusaram, por razões diferentes, a pagar o FI aos Diários Associados foram Newton Cardoso e Itamar Franco. Cardoso sucedeu Hélio Garcia, em 1986 e, na eleição seguinte, foi sucedido por Garcia. Três anos e meio de seu mandato foram de guerra aberta contra os Diários Associados, exatamente em função de não aceitar este pagamento.

Para quem acompanhou a política mineira naquela época, não deixou de soar estranho o jornal Associado, três meses depois de comparar a vitória de Cardoso a uma espécie de retorno de um “novo JK”, o governador mais querido da história de Minas Gerais, ter passado a tratá-lo como “Porcão” e evitar até mencionar seu nome em notícias e reportagens. Para os Associados, Cardoso era “o eventual ocupante do Palácio da Liberdade”.

Só bem depois a verdadeira razão para tamanho ódio se tornou conhecida. Cardoso havia se recusado a pagar dívidas mal explicadas de sua campanha, contraídas por Hélio Garcia, para com o EM e, pior ainda, recusou-se a manter o pagamento do FI. A briga acabou envolvendo uma grande parte dos jornalistas que atuavam nos veículos Associados (jornais, rádio e TV) e exerciam, simultaneamente, a função de assessores de imprensa no palácio do governo e em órgãos públicos da administração direta e indireta.

Cardoso poderia ter passado para a história como um governador que fez muitas obras e também colocou fim, nem que fosse temporário, às sinecuras e picaretagens na imprensa mineira. Mas não. Ele resolveu aproveitar a oportunidade em benefício próprio e criou seu veículo de comunicação, o jornal Hoje Em Dia, que se tornou o destinatário das verbas que antes iam para os Associados. O objetivo do  era defender as realizações da sua gestão. Em outras palavras, Cardoso mudou para continuar fazendo igual.

A relação de Itamar Franco com a mídia mineira era razoável até ele se eleger governador. Teimoso e rabugento, ao vencer Eduardo Azeredo na disputa para o governo de Minas em 1998, ele deixou claro, de saída, que muita coisa iria mudar. A título de exemplo, enquanto Azeredo defendia com unhas e dentes a privatização das empresas públicas mineiras e chegou a vender parte da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), Itamar desfez o negócio e mandou a Polícia Militar de Minas Gerais cercar a barragem de Furnas caso o governo federal insistisse em privatizar a empresa.

A partir daí, tornou-se inimigo número um da mídia mineira e nacional, que nunca escondeu o entusiasmado apoio às privatizações do presidente tucano Fernando Henrique Cardoso. Detalhe: Itamar cortou o FI dos Associados, mas manteve o de vários outros veículos de mídia no estado. No final de seu governo, além de rompido politicamente com FHC, estava tão desgastado que preferiu nem disputar a reeleição. Alvo de chacotas de todo tipo, formalmente apoiou a candidatura de Aécio Neves e recolheu-se à sua cidade natal, Juiz de Fora, de onde só saiu para assumir o cargo de embaixador do Brasil na Itália.

De olho no futuro

Voltando aos dias atuais, a pergunta que permanece sem resposta para quem acompanha os bastidores da imprensa mineira é se o governador Fernando Pimentel vai ou não dar continuidade ao pagamento do FI. Os que apostavam que sua chegada ao poder seria sinônimo de novos ares para a mídia mineira já não escondem um certo desapontamento.

No relatório da auditória que analisou os 12 anos de governos tucanos no estado não há uma linha sequer sobre publicidade oficial. Isto apesar de os governos tucanos em Minas terem entrado para a história como os maiores anunciantes de todos os tempos e da estimativa dos especialistas ser de que a verba publicitária no período superou os R$ 2 bilhões. Quantia mais do que suficiente para merecer análise detalhada por parte da atual administração.

Some-se a isso que o Conselho Estadual de Comunicação, que consta da Constituição do Estado de Minas Gerais (seção IX, artigo 230) e poderia ser um espaço para o debate envolvendo os problemas da mídia mineira, continua no papel. Igualmente no papel continuam todas as necessárias e importantes mudanças para revigorar a TV Minas e a Rádio Inconfidência, emissoras estatais arrasadas nas quatro últimas gestões nas Alterosas.

Já os que apostam que “tudo ficará como dantes”, cantam vitória e garantem que o FI vai continuar, mesmo que adaptado aos tempos de crise. Em outras palavras, grande parte da imprensa mineira continuaria recebendo o seu fixo, mas em valores bem menores que os praticados no passado recente. Portanto, é bom que o Ministério Público e o Tribunal de Contas fiquem atentos. No mais, é aguardar o desenrolar da História para conferir quem acertou.

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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi reproduzido do blog Estação Liberdade (Com o Observatório da Imprensa)

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