A “banalização do mal”

                                               
Chico Whitaker (*)

Dizer que o ano de 2016 es­tava de­mo­rando de­mais para acabar chegou a se tornar uma piada velha. A cada ama­nhecer desse ano fi­cá­vamos sa­bendo de novos fatos de­sa­ni­ma­dores. Que cul­mi­naram com um Golpe de Es­tado tra­ves­tido de im­pe­a­ch­ment de­mo­crá­tico, se­guido da ação apres­sada do novo go­verno para con­so­lidar o poder dos ban­queiros, apoiado numa mai­oria par­la­mentar com poder para mudar até a Cons­ti­tuição.  

Mas 2017 co­meçou muito mal. En­quanto o go­verno co­me­çava a se pre­parar para ace­lerar seu passo no des­monte de di­reitos con­quis­tados a duras penas ao longo de dé­cadas, já no pri­meiro dia do ano um mas­sacre es­ca­broso no também es­ca­broso mundo de nossas pri­sões es­tar­receu a nação. 

Muitos de nós re­a­gimos ao acon­te­cido na pe­ni­ten­ciária de Ma­naus - se­guido de ou­tros mas­sa­cres em ou­tras pri­sões com o mesmo nível de bar­bárie - evi­tando ver fotos hor­rí­veis ou des­cri­ções as­sus­ta­doras. Um ou outro tes­te­munho con­se­guia se in­fil­trar no que líamos a res­peito, como o do guarda pe­ni­ten­ciário que con­testou o nú­mero anun­ciado de mortos, in­di­cando o nú­mero de troncos de corpos hu­manos que ele tinha con­tado. 

Não foi à toa que o bi­li­o­nário Eike Ba­tista temia ficar preso com quem não conta com o pri­vi­légio - mais esse - dos que têm di­ploma de curso su­pe­rior. Con­se­guimos nos pro­teger da pers­pec­tiva as­sus­ta­dora do pri­meiro mês do ano fa­zendo votos de que as cha­madas “au­to­ri­dades” façam frente de fato - de­ve­ríamos exigir que o fi­zessem – à ver­go­nhosa con­dição de nossos pre­sí­dios e ao poder do crime or­ga­ni­zado. 

Mas foi em torno do pro­blema da cor­rupção que o ano de 2016 foi mais mar­cante – em­bora se saiba que a pro­mis­cui­dade entre o pú­blico e o pri­vado não seja pro­blema so­mente bra­si­leiro, nem a for­mação de oli­gar­quias po­de­rosas que sugam o sangue do país. Apesar de ter sido con­so­li­dada em 2016 a no­vi­dade, boa para o Brasil, de po­de­rosos cor­ruptos não es­ca­parem da prisão, foi im­pres­si­o­nante a quan­ti­dade, a va­ri­e­dade e a cri­a­ti­vi­dade de “es­quemas” de cor­rupção des­ven­dados em “ope­ra­ções” po­li­ciais nesse ano. 

2017 não pa­rece di­ferir de­mais. O nú­mero de novos casos con­tinua sur­pre­en­dente, e to­mamos co­nhe­ci­mento da di­mensão que ga­nharam al­guns desses es­quemas, como o de um ex-go­ver­nador que não con­se­guiu con­ti­nuar es­con­dendo suas ações cri­mi­nosas. Ao mesmo tempo, ainda no pri­meiro mês do ano, um sus­pei­tís­simo aci­dente de avião matou o mi­nistro do Su­premo Tri­bunal Fe­deral, que es­tava prestes a dar se­gui­mento ju­di­cial a to­ne­ladas de de­la­ções que em­baçam as boas apa­rên­cias de altas fi­guras do mundo po­lí­tico. E com a con­ti­nu­ação, em 2017, da ava­lanche de más no­tí­cias, o sen­ti­mento de im­po­tência e a per­ple­xi­dade di­fi­cultam a re­sis­tência e a re­ação ne­ces­sá­rias. 

E aí surge o pe­rigo da aco­mo­dação ao que está acon­te­cendo, como se as coisas não pu­dessem ser di­fe­rentes. As pi­ores ações, com­por­ta­mentos, ati­tudes co­meçam a for­matar nossa “cul­tura”, cris­ta­li­zando a imo­bi­li­dade. É a cha­mada “ba­na­li­zação do mal”. Até que um dia se­jamos des­per­tados por tra­gé­dias co­le­tivas pro­vo­cadas pelo “mal” com que fomos le­vados a con­viver.

É dentro dessa pers­pec­tiva que algo pior co­meça a crescer no Brasil, ne­gando tudo que se diz do ami­gável ca­ráter do bra­si­leiro: a in­to­le­rância po­lí­tica, que pode fazer de 2017 – ano an­te­rior a elei­ções pre­si­den­ciais que são sempre tensas – um ano que de­se­ja­remos es­quecer, se a ele nossa de­mo­cracia so­bre­viver. 

Já se tem no­tícia de prá­ticas tí­picas em re­gimes fas­cistas que le­varam a que tais tra­gé­dias ocor­ressem, com po­la­ri­za­ções ide­o­ló­gicas e par­ti­dá­rias que se apro­ximam pe­ri­go­sa­mente do uso da vi­o­lência. Ao pro­curar calar ad­ver­sá­rios que pas­saram a ser vistos como ini­migos, cria-se um an­ta­go­nismo que di­vide a so­ci­e­dade e ra­pi­da­mente se trans­forma em ódio e em rup­turas no te­cido so­cial, tor­nando im­pos­sível a con­vi­vência pa­cí­fica. 

O que acon­teceu em torno da hos­pi­ta­li­zação, morte e ve­lório de Ma­risa Le­ticia, es­posa de Lula, foi re­ve­lador desse sen­tido. Nem fa­lemos das es­pan­tosas men­tiras es­pa­lhadas pelas redes so­ciais, nem das ma­ni­fes­ta­ções ab­so­lu­ta­mente des­res­pei­tosas na en­trada do hos­pital onde se ten­tava salvar a vida da do­ente, e nem ainda do va­za­mento de re­sul­tados de exames - já de­vi­da­mente pu­nido - ou das re­a­ções às falas no ve­lório. Todas essas ações e os co­men­tá­rios nas redes so­ciais des­tilam uma pro­funda raiva à pessoa do ex-pre­si­dente e à sua es­posa, assim como ao seu par­tido e a cada um de seus fi­li­ados. 

Mas o mais as­sus­tador foi o frio e ina­cre­di­ta­vel­mente de­su­mano co­men­tário de um mé­dico ao exa­minar, graças ao va­za­mento, a to­mo­grafia feita em Ma­risa Le­ticia: “Tem que romper no pro­ce­di­mento. Daí já abre pu­pila. E o ca­peta abraça ela”. Em ou­tras pa­la­vras, ele queria que ela mor­resse. Ele disse que era pre­ciso apro­veitar a opor­tu­ni­dade para as­sas­siná-la. 

Em versão su­pos­ta­mente mais com­pleta da sua men­sagem ao grupo de mé­dicos de que faz parte em rede what­sapp, ele teria também des­res­pei­tado seus co­legas do hos­pital (“esses fdp”), su­pondo que não se­gui­riam suas “re­co­men­da­ções”. E o “Ju­ra­mento de Hi­pó­crates”, re­di­gido na Grécia no sé­culo IV antes de Cristo, que todos os mé­dicos devem fazer ao re­ce­berem seus di­plomas?

Já há va­rias mo­bi­li­za­ções em curso para que esse mé­dico seja pu­nido, até com a re­ti­rada de seu di­ploma, lan­çadas por di­versas or­ga­ni­za­ções. Entre elas, a Rede Na­ci­onal de Mé­dicas e Mé­dicos Po­pu­lares iden­ti­ficou as raízes de tais com­por­ta­mentos em graves pro­blemas que afetam a for­mação dos mé­dicos bra­si­leiros. Mas é ab­so­lu­ta­mente ne­ces­sário que essas mo­bi­li­za­ções ex­tra­polem o meio mé­dico e sejam as­su­midas por nós, ci­da­dãos e ci­dadãs em geral. Caso con­trário es­ta­remos “ba­na­li­zando o mal”. 

Mais do que isso, no en­tanto, mais do que buscar a exem­pla­ri­dade de uma even­tual pu­nição desse mé­dico in­feliz, temos que apro­veitar a opor­tu­ni­dade para lançar um brado de alerta e pro­vocar uma pro­funda to­mada de cons­ci­ência da la­deira es­cor­re­gadia de que es­tamos nos apro­xi­mando. É pre­ciso “baixar a bola”, como se diz, afas­tando a in­to­le­rância e o en­fren­ta­mento rai­voso de nossas prá­ticas po­lí­ticas e re­va­lo­ri­zando o diá­logo de que os seres hu­manos são ca­pazes. Antes que seja tarde de­mais. 

(*) Chico Whi­taker, ar­qui­teto, é membro da Co­missão Bra­si­leira de Jus­tiça e Paz e mi­lita na Co­a­lizão por um Brasil Livre de Usinas Nu­cle­ares.

http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12340-a-banalizacao-do-mal

(Com o Correio da Cidadania)

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