Reflexões sobre ‘O País do Carnaval’, de Jorge Amado

                                                      

Filosofia move a primeira obra do romancista, 
escrita quando ele tinha apenas 18 anos

Haroldo Ceravolo Sereza

O próprio Jorge Amado costumava dizer que O País do Carnaval, seu primeiro romance, era um livro ruim. E, de fato, é praticamente impossível encontrar críticos ou leitores que coloquem a obra no alto de sua produção literária.

Textos analíticos publicados antes e após a sua morte confirmam a sensação de que o destino desse trabalho de estréia é, mesmo, se perder em meio ao que foi produzido posteriormente. Entre outros motivos, porque não está marcado pelos esquemas ideológicos presentes na maioria de seus romances dos anos 30 e 40, especialmente nos “romances proletários” Cacau (1933) e Suor (1934), posteriores ao início de sua militância comunista, que se dá em 1932, a partir do contato com a cearense Rachel de Queiroz.

Numa primeira leitura de O País do Carnaval, o romance parecia-me, de fato, fraco. O enredo é simples: narra a vida intelectual e sentimental de um grupo de jovens baianos que se reúne em torno de um velho cético, Pedro Ticiano, que costumava defender que “na Bahia, todo tolo se fazia poeta” e que “só os burros e cretinos conseguem a Felicidade”. A obra tem descrições de menos, diálogos incompletos, personagens que se perdem, discussões sobre o sentido da vida e a felicidade que não chegam a lugar nenhum.

Professora do curso de jornalismo da Universidade de São Paulo, Jeanne Marie Machado de Freitas chamou-me a atenção para a possível relação daquele enredo, que parecia ingênuo, com O Banquete, de Platão. Além disso, algo que não se deve considerar sempre que se lê um livro, mas que no caso era fundamental para compreendê-lo e, especialmente, para aceitar seus defeitos: o autor tinha só 18 anos.

Se Platão não é citado diretamente por Amado, a relação com a filosofia é evidente em O País do Carnaval. Pedro Ticiano afirma, por exemplo, que a insatisfação, a dúvida e o ceticismo devem ser a filosofia do homem de talento: “Sofismar sempre. Negar quando afirmarem, afirmar quando negarem.”

Nas conversas, aparecem Sócrates, Aristóteles, São Tomás, a religião, o tomismo etc. Cada um dos amigos da roda busca o seu caminho para a felicidade: o sexo, o casamento, o amor, o dinheiro, até o comunismo (José Lopes, um dos amigos, afirma, nas páginas finais do livro, que “a gente deve arranjar um princípio, um ideal, para iludir-se, pelo menos. Eu me iludo com esse negócio do comunismo. Por isso fujo de você.”).

Jorge Amado parece acreditar, então, que o caminho da dúvida, que impregna o romance, não conduz a nada, embora seja o único possível para os homens inteligentes. E personifica esse sentimento Paulo Rigger, um jovem que está chegando da França num navio que desembarca no Rio de Janeiro na véspera do carnaval.

A bordo, ele encanta-se por uma francesa, Julie, mas não chega a dormir com ela, por temer apaixonar-se. Em terra, ele a reencontra, e sonhará viver com a moça um amor tradicional, o que, evidentemente, não resiste ao primeiro funcionário de sua fazenda de cacau. Depois, sonhará com uma donzela, mas o projeto desmorona quando é informado de que a menina não é mais virgem.

Teria, assim, deixado escapar sua possibilidade de ser feliz?

Enquanto vai enfrentando esse mundo, Rigger também se frusta e reflete sobre o que é ser brasileiro. Em dado momento, afirma: “Só me senti brasileiro duas vezes. Uma no carnaval, quando sambei na rua. Outra, quando surrei Julie, depois que ela me traiu.” Não é exatamente “só”: o carnaval  o acompanha como a polca persegue Pestana, o compositor do conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis, que sonhava compor noturnos e sonatas como Chopin e Mozart.

Há defeitos e simplismos em O País do Carnaval, mas há, especialmente, reflexão. Se não é o melhor Jorge Amado, se lhe faltam carne e certezas, estão ali os ossos que formam o esqueleto de uma obra literária de porte: observação e reflexão. Nem sempre o autor está formado o suficiente para bem recheá-lo; nem sempre o leitor está maduro o suficiente para perceber sua presença.
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O texto acima foi originalmente publicado em 12 de agosto de 2001, no jornal O Estado de S. Paulo.

(Com Opera Mundi)

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