Apontamento desde Boston (*)


                                                
António Santos

Nos EUA, o termo «terrorismo» transformou-se num balão de normatividade que, no fundo, serve apenas para distinguir axiologicamente a violência institucional de algumas outras. Uma hora antes do atentado, um drone assassinava «por erro» 30 pessoas numa festa de casamento no Afeganistão. Não só Obama não considerou esta matança como «terrorismo» como praticamente nenhum jornal estado-unidense a referiu.

Muita tinta já correu sobre o atentado que no passado dia 15 de Abril sacudiu Boston, a cidade onde vivo e de onde vos escrevo: duas bombas de fabrico caseiro explodiram na linha de chegada da maratona anual da cidade, causando três mortos e 183 feridos, duas dúzias dos quais graves.

Uma das bombas estalou a uns escassos 10 metros do Consulado de Portugal, que por ser feriado se encontrava encerrado. Maria João, funcionária do Consulado, tinha combinado com a filha de dez anos assistir à chegada dos atletas no preciso lugar onde explodiu a bomba. «À última da hora decidi não ir» explicou-me, «mas ainda não consegui falar com os amigos que estavam lá». Muitos não tiveram a mesma sorte: Carlos Arredondo, dirigente do movimento pela paz e lutador incansável pelos direitos dos imigrantes, perdeu o filho mais velho na guerra do Iraque.

Quando os soldados lhe deram a notícia, regou uma carrinha com gasolina e tentou imolar-se pelo fogo. Um ano depois, o seu filho mais novo suicidou-se, incapaz de ultrapassar a morte do irmão. E no passado dia 15, Carlos foi projectado pelas explosões. «Apesar de ferido, agi instintivamente» contou-me, a propósito da fotografia em que presta auxílio a um homem de cadeira de rodas. Carlos foi parte de uma impressionante dinâmica de generosidade que se levantou nos minutos após os ataques: depois de cruzarem a meta, muitos corredores continuaram a correr até ao hospital mais próximo para doarem sangue.

Com a cidade ocupada pelo exército e pela polícia, Obama anunciou que este se tratava do primeiro ataque terrorista em solo americano desde o 11 de Setembro. Mas por que não consideraram «terroristas» ataques anteriores? Não é terrorismo quando um neonazi entra num templo sikh e massacra sete pessoas, como aconteceu no ano passado?

Aqui nos EUA, o termo «terrorismo» transformou-se num balão de normatividade que, no fundo, serve apenas para distinguir axiologicamente a violência institucional de algumas outras. Uma hora antes do atentado, um drone assassinava «por erro» 30 pessoas numa festa de casamento no Afeganistão. 

Não só Obama não considerou esta matança como «terrorismo» como praticamente nenhum jornal estado-unidense a referiu. Não por economia de espaço, seguramente, já que os media norte-americanos encontraram tempo e lugar para especular que o suspeito seria saudita, negro, islâmico ou falante de árabe. Simplesmente porque na axiologia do terrorismo vs. os bons da fita, as lágrimas de um estado-unidense valem muito mais do que as lágrimas de um afegão.

Mas assim sendo, deveria considerar-se a actuação dos media como o primeiro ataque terrorista em solo americano desde as bombas de Boston: a especulação racista sobre a identidade dos criminosos impôs o medo e a suspeita a milhares de árabes e muçulmanos de toda a cidade, causando casos como o de uma médica que foi espancada por usar véu. Erik Rush, famoso pivô do canal de televisão FoxNews, foi mais longe e apelou aos seus compatriotas para «matarem todos os muçulmanos». Nada disto foi considerado terrorismo.

No dia seguinte, o FBI relevou a identidade dos suspeitos. O embaraço que se abateu sobre os media foi de pouca dura: não eram nem negros, nem sauditas, nem falavam árabe: urgia redefinir a islamofobia.

A comunicação social descobriu que os suspeitos eram imigrantes russos das províncias do Daguestão e da Chechénia e confirmou que eram islâmicos. A caça às bruxas estava de novo em marcha. Célere e taxativo, o senador do Iowa Chuck Grassley culpou a imigração e a facilidade com que «os terroristas entram no país», a comunidade chechena nos EUA foi obrigada a repetidos pedidos de desculpa e os noticiários muniram-se de «especialistas» na Chechénia, no Islão e em imigração russa para explicar os ataques.

Mas quando Adam Lanza foi identificado como o atirador de Newtown, nenhum jornalista alvitrou a necessidade de especialistas em cultura branca suburbana para compreender as suas acções. Depois do tiroteio de Aurora, nenhum pivô convidou especialistas em luteranismo para explicar o massacre de James Holmes. 

Aparentemente, quando o responsável pela violência provém da cultura dominante, essa cultura não é interrogada para compreender acções individuais. Nesse caso, a discussão centra-se nos seus defeitos individuais: doenças mentais; questões do foro emocional, etc. Mas quando o criminoso pertence a uma minoria como a comunidade chechena ou o Islão, esse indivíduo é automaticamente representativo de todo um colectivo e a sua cultura é constituída arguida.

(*) Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2056, 24.4.2013 (Com o diario.info)

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