Nas eleições dos Estados Unidos, qualquer escolha é ruim

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Luiz Eça (*)

A nossa grande mídia, ecoando a dos EUA, vê grandes qualidades em Hillary Clinton e considera Donald Trump um verdadeiro homem de Neandertal, que na Casa Branca seria como um elefante numa loja de cristais.

Portanto, teríamos na eleição uma luta entre o Bem e o Mal ou Eliot Ness contra Al Capone.

A realidade passa longe dessa conclusão. Embora o racista, xenófobo e misógino Trump não seja flor que se cheire, Hillary Clinton, somando os prós e diminuindo os contras, parece ser uma aposta também bastante precária.

Nas questões sociais, Hillary revela maior sensibilidade. Quer aumentar o salário-mínimo para 12 dólares por hora. Propõe um plano que criaria 10,4 milhões de empregos, durante seu mandato, meta que foi considerada provável por análise da Moody´s Analytics

Já Trump promete 25 milhões de empregos novos em 10 anos, mas sem avaliação de qualquer consultoria independente.

Ele desdenha dos benefícios sociais para velhos, crianças, extremamente pobres e desabilitados. Ambiguamente, argumenta que benefício bom mesmo é o salário. Dá uma pista do que faria com os programas sociais do orçamento...

Na questão ambiental, Hillary é impecável. Promete até diminuir os níveis de poluição em terra, água e ar, além dos oficialmente aceitos. Já para Trump, o aquecimento global não existe. Uma invenção dos ambientalistas para ganharem prestígio.

Quanto às minorias, Trump parece um sinistro pesadelo. Quer expulsar 11 milhões de imigrantes ilegais, sem mais conversa. Considera os mexicanos ladrões, prostitutas ou traficantes. Os muçulmanos devem ser proibidos de entrar nos EUA. As mesquitas devem ser vigiadas pela polícia, pois são redutos de terroristas.

Suas ideias sobre os negros são aplaudidas por organizações racistas e até a Ku Klux Klan, que andava sumida, promete boca de urna no dia das eleições. O modo com que ele vê as mulheres é o mais lamentável possível.

Hillary Clinton apresenta soluções humanas para lidar com o problema da imigração ilegal. Tem defendido os negros, alvos da violência racista de policiais. Apoiou a luta do movimento Black Live Matters. Num momento em que se criou um clima contrário aos negros, por ter sido assassinado um policial branco, ela teve a coragem de apelar publicamente aos oficiais de polícia para pararem de matar pessoas negras.

Enquanto Hillary Clinton reprova todo o tipo de torturas, inclusive o waterboarding, Trump não é taxativo: se for para o pessoal do ISIS, sinal verde para qualquer “técnica radical”.

Até aqui, Hillary Clinton está ganhando. A partir de agora, as coisas começam a mudar tal percepção.

Donald Trump promete recusar-se a assinar o TPP – um acordo comercial entre nações asiáticas do Oceano Pacífico, os EUA, a Austrália e o Canadá. Diz que esse acordo eliminaria empregos nos EUA. Meio a contragosto, Hillary também promete vetar.

O candidato republicano garante que rasgará todos os acordos comerciais que considerar lesivos aos interesses ianques.

Inclusive o NAFTA, que ele declara ser o pior acordo que os EUA já assinaram. O NAFTA reduz radicalmente os impostos sobre o comércio entre EUA, Canadá e México.

Em consequência, muitas empresas norte-americanas fecharam suas fábricas no país e foram para o México, onde os salários são bem mais baixos e os impostos idem. Isso jogou muitos operários estadunidenses no desemprego e causou a decadência das cidades onde se localizavam.

Hoje nos EUA, o chamado Cinturão da Ferrugem compreende dezenas de cidades vítimas do NAFTA, algumas delas verdadeiras cidades-fantasmas.

Enquanto Trump diz que vai acabar com o NAFTA, Hillary se cala, pois ela sempre foi favorável a esse acordo, inclusive tendo votado a favor, quando senadora. Hillary Clinton também fica em situação problemática quando se trata da reforma bancária.

Ela se diz favorável, teria um plano para colocar os bancos na linha e impedir que criem novas turbulências como a recente crise econômica. Como Trump promete a mesma coisa, teríamos um empate neste quesito.

Acontece que o Wikileaks revelou contatos de Hillary com megabancos, especialmente com o Goldman Sachs, no qual ela teria afirmado que a reforma bancária deveria ser feita pelos próprios bancos.

Não é de se crer que eles fizessem uma reforma para reduzir suas atividades. Bernie Sanders, que apoia a candidata democrata, não gostou dessas revelações.

“O que Hillary Clinton possa ou não ter dito atrás das portas fechadas de Wall Street, eu estou determinado a implementar: a agenda da plataforma do Partido Democrata, com a qual a campanha dela concordou, e que propõe a divisão das maiores instituições financeiras do país e o reestabelecendo do Glass-Steagal Act”.

O Glass-Steagal Act integra a Lei dos Bancos, promulgada em 1933 pelo presidente Roosevelt, e impôs a total desvinculação entre o banco comercial e o banco de investimento. O banco comercial foi submetido a regras específicas para proteger os recursos aplicados pelos poupadores.

As divergências entre os dois candidatos ficam mais agudas quando se trata de política internacional.

Hillary defende a continuidade da tradicional política imperial. O mundo precisa da liderança dos EUA, que é “indispensável” (termo empregado por Hillary) para garantir a justiça e a ordem nos quatro cantos da terra.

Sendo assim, todos aqueles que se oponham ao EUA são necessariamente potências “do mal”, que devem ser enfrentadas através da diplomacia e das forças armadas, não necessariamente nessa ordem.

É natural, portanto, que Hillary Clinton veja a guerra como um recurso por vezes necessário. E a promova quando conveniente. Tenha ou não um “apetite pelas guerras”, como acusam seus adversários.

Ela própria conta que durante a crise da Sérvia, seu marido, o presidente Bill Clinton, negociava com os renitentes sérvios. “Eu exortei meu marido a bombardear”. Foi o que ele fez: bombardeou Belgrado, matando cerca de mil civis.

Senadora em 2003, ela apoiou a guerra do Iraque lançada por George Bush. Anos depois, quando a maioria dos que haviam acreditado na justiça do ataque havia voltado atrás. Hillary manteve sua posição, sendo dos últimos a mudar.

Em 2008, na disputa com Obama pela candidatura a presidente pelo Partido Democrata, ela ameaçou destruir totalmente o Irã, caso ele lançasse um ataque nuclear contra Israel.

No entanto, marcou um ponto importante a seu favor quando recentemente declarou que o acordo nuclear com o Irã resolveu o problema, cortando as aspirações malévolas dos aiatolás.

Por sua vez, Trump deblaterou contra a posição de Hillary, garantindo que o acordo era o pior já firmado pelos EUA. Chegou a insinuar que, sendo eleito, trataria de rasgá-lo.

Como secretária de Estado do governo Obama, Hillary apoiou o  golpe militar em Honduras, agindo para evitar a volta do deposto presidente Zelaya (The Guardian), inaceitável por suas posições esquerdistas (porém moderadas).

Pressionou Obama para entrar na guerra civil da Líbia contra o governo Kadafi. Assim definiu a participação norte-americana em encontro com jornalistas (UNZ Review):

”Chegamos, vimos. Ele morreu”. Esse tom glorioso é chocante e desumano diante do modo com que Kadafi foi morto. Vídeo dos seus últimos momentos mostra guerreiros rebeldes espancando-o. Depois um deles sodomiza Kadafi com uma baioneta, enquanto é alvo de muitos tiros e grita por sua vida.

Como se sabe, a vitória contra o regime deixou a Líbia à mercê de inúmeros bandos jihadistas que levaram o caos ao país. Atualmente, está sendo tentada uma reorganização através da ONU, mas continua muito difícil.

Na guerra da Síria, Hillary defendeu o bombardeiro de Damasco, em retaliação contra suposto ataque de Assad com armas químicas. Mas Obama não cedeu à pressão. Agora ela deseja criar uma no fly-zone na fronteira síria com a Turquia, policiada pela aviação norte-americana.

Trump contradiz essa ideia, afirmando que levaria a uma guerra possivelmente nuclear com a Rússia.

Também são contra os principais comandantes estadunidenses na região. Em 2013, o general Martin Dempsey, então chefe do Estado-Maior conjunto das forças armadas dos EUA no Oriente Médio, disse que, mesmo numa área limitada, uma no-fly zone custaria 1 bilhão de dólares por mês e, para ser mantida, exigiria substanciais recursos aéreos e tropas de terra. E, seu sucessor, o general John Dunford, depondo no Senado, afirmou que uma no fly-zone “nos obrigaria a ir à guerra contra a Rússia e a China”.

Trump acha que o inimigo número 1 dos EUA não é o regime sírio de al-Assad na Síria, mas o Estado Islâmico, e que todo poder militar norte-americano deveria ser concentrado para destruir os bárbaros fanáticos.

Quanto a Israel, os dois candidatos brigam para mostrar quem é mais favorável aos interesses de Telavive. Nem uma única vez qualquer deles se preocupou com os problemas dos palestinos.

A carreira de Hillary Clinton tem sido marcada pela mais absoluta devoção a Israel, para o Bem ou para o Mal. Telavive tem sempre razão conforme a esposa de Bill Clinton. Por isso surpreendeu quando na campanha declarou-se favorável ao acordo nuclear com o Irã, que Netanyahu estigmatiza como uma desgraça mundial. Hillary foi mais adiante ao afirmar que seria conveniente para os israelenses uma suspensão da expansão dos assentamentos, ao menos enquanto se negocia com os palestinos.

Trump também surpreendeu quando, nas prévias presidenciais, declarou que se fosse arbitrar o conflito entre israelenses e palestinos adotaria uma postura neutra.

Diante da explosão de indignação de todos os outros pré-candidatos, com exceção de Bernie Sanders, chocados com o escândalo, The Donald recuou rápido. E passou a ser 100% pró-Israel, inclusive nas questões do assentamento e do acordo nuclear com o Irã.

Chegou a dizer que, se fosse presidente, Israel não seria mais tratado como um país de segunda classe. Se receber 38 bilhões de dólares em armamentos em 10 anos e ter o apoio total dos EUA na ONU e em outros fóruns mundiais é tratamento de segunda classe, o que The Donald não estaria planejando para deixar Netanyahu e colegas sentirem-se no céu?

Não é recomendável levar muita fé nas promessas de Donald Trump e mesmo de Hillary, que muitas vezes as esqueceram, mas há algo que parece consistente em suas visões dos EUA e seu papel no mundo.

Para Hillary, é importante fazer uso da força militar, quando necessário, para garantir a manutenção e mesmo a expansão da constelação dos EUA, onde países-satélites giram em torno do sol norte-americano, donde provêm as luzes e a justiça que devem orientar os caminhos de todo o mundo.

Para Trump é o contrário: ele segue a linha do America First, um país cujo governo somente cuidaria dos interesses nacionais, deixando que o resto do mundo se vire sozinho, a não ser quando necessária uma correção de rumos em benefício de Tio Sam.

As relações dos EUA com a Rússia devem ser diferentes, pois diferentes são as visões dos EUA, conforme cada candidato.

Para Hillary Clinton, a Rússia é o inimigo número 1, por ser quem mais ameaça efetivamente a hegemonia global do país.

Ela vê a Rússia submetida a um ardiloso Vladmir Putin, autocrata, digno sucessor de Stalin, que procura esconder suas más intenções através de um falso amor à paz.

A Rússia de Putin ousa enfrentar Washington na Síria, Ucrânia e na maioria dos países vizinhos do território de Moscou.

Como qualquer governo precisa ter o povo a seu lado, os estrategistas do establishment trataram de demonizar Putin como um líder despido de escrúpulos, cujo alvo é aumentar o império russo. Talvez recuperar as glórias da antiga União Soviética.

Graças a uma propaganda desenvolvida pela imprensa, principalmente, durante as últimas décadas, o objetivo das forças que dominam os EUA foi alcançado. Putin é visto em todo o país como a encarnação do mal. E o povo está preparado para aceitar gastos desmedidos que aumentariam o poder letal das forças armadas e atitudes mais agressivas do governo do país contra Moscou.

Hillary embarca nessa tranquilamente. Tem sido mesmo uma fiel divulgadora das mensagens anti-Putin.

Já Trump quer boas relações com o presidente russo para que a América possa crescer e ficar mais rica sem o obstáculo de guerras limitadas ou não. Trump tem pregado a paz e condenado as guerras, em diversas ocasiões.

No entanto, paradoxalmente, promete que tornará as forças armadas ainda mais poderosas.

Cabe aqui citar uma falcoa, a secretária de Estado de Bill Clinton, Madeleine Albright. Em 1992, o general Colin Powell relutava em atendê-la, enviando tropas para a guerra da Bósnia. Furiosa, Albright veio com essa: “qual é a vantagem de ter esta superioridade militar que você está sempre alardeando se não podemos usá-la?”

Hillary Clinton não ataca a sinceridade do Trump pacifista. Prefere concentrar sua artilharia na suposta amizade dele com Putin. Ele é acusado de ser um fantoche do ditador russo, o qual, para favorecer o “amigo Donald”, teria feito um ciberataque que desvendou os segredos da campanha democrata, para, em seguida, tornar público fatos duvidosos ligados a Hillary.

A candidata democrata tem repetido essa acusação, garantindo inclusive que o FBI já confirmara que ela era correta. E enfatiza a vergonha de um país estrangeiro interferir na campanha eleitoral dos EUA.

Honestamente, Obama informou que não era bem assim, faltavam provas. Mais recentemente, o próprio FBI veio a público para dizer que não havia nada de certo sobre um suposto ataque cibernético russo à campanha Hillary (New York Times).

Certo mesmo é que os norte-americanos e o mundo não podem esperar grande coisa de quem ganhar a eleição.

Aparentemente, com Trump, a política externa seria menos intervencionista, haveria menores chances de guerra com a Rússia. Enquanto que Hillary trataria as questões das minorias e as questões sociais de forma mais humana, além de ter um plano econômico confiável.

Seja como for, há uma falta de confiança nos candidatos generalizada nos EUA.

Já a opinião pública internacional vê Trump como um vilão tão completo, uma ameaça tão grande, que Hillary passou a ser considerada uma excelente opção.

Provavelmente haverá um alívio nesses países, quando se conhecerem os resultados finais e a vitória, que parece evidente, de Hillary Clinton. Não vai demorar muito para a decepção começar a se espalhar.

Até muitos dos que criticaram o governo Obama, vão dizer para si próprios: “eu era feliz e não sabia”.

(*) Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.

(Com o Correio da Cidadania/Cartoons Quinho/Facebook)

http://www.correiocidadania.com.br/

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