O esgotamento da esquerda institucional: "É preciso reconhecer a derrota sem se sentir derrotado"

                                                               
Patrícia Fachin (*)


O resultado das eleições municipais expressa “um sinal de esgotamento da esquerda institucional”, diz Marcelo Castañeda em entrevista à IHU On-Line. Isso significa que “a esquerda precisa se reinventar de forma urgente se quiser se fazer competitiva e atraente” daqui para frente, porque o “PT de hoje seria menos do que PP, PR, PSD, entre outros que compõem o Centrão. Um triste fim anunciado”, avalia.

A rearticulação da esquerda, na visão de Castañeda, depende da participação de “novos atores” e de uma renovação de “ares”. “Falo fundamentalmente das mulheres, dos favelados e dos estudantes secundaristas, estes últimos dando as cartas da política que vai além das instituições partidárias tradicionais, o que pode ser visto na vigorosa onda de ocupações deflagrada no segundo semestre de 2015, primeiramente pelos secundaristas paulistas, e que agora vem atingindo o segmento universitário”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Castañeda comenta o resultado das eleições na cidade do Rio de Janeiro e as crescentes abstenções em todo o país. Para ele, a “ausência de pesquisas qualitativas” dificulta o entendimento acerca de quais são as “motivações envolvidas nessa decisão pontual”.

Sobre as abstenções, frisa, “muitos grupos anarquistas, por exemplo, divulgam esses dados como uma vitória do slogan ‘não vote, lute’; outros, em especial a esquerda partidária, particularmente os petistas que foram de forma destacada os grandes derrotados nacionalmente, apontam despolitização e fascismo. 

Também se poderia sinalizar isso como sintoma da crise da representação que tanto apontamos. Mas será que faz sentido? Pode fazer, mas prefiro dizer que podem ser esses fatores e muitos outros, pois falta acúmulo de reflexão sobre tais variáveis (não comparecimento, brancos e nulos), fora as nuances que envolvem motivações para não comparecer ou votar nulo e branco. 

Com isso, quero dizer que as pessoas comemoram ou baseiam seu desespero em números brutos como se fosse bom ou ruim, sem sequer saber o que pensam as pessoas que compõem os percentuais e números. E isso não é um problema político dos grupos que adotam o grito ‘não vote, lute’ ou daqueles que entendem uma ‘despolitização’ e ‘fascismo’, mas da produção de conhecimento, em especial na área de ciência política”.

Como analisa as eleições municipais no país? Em que medida a eleição reorganiza o cenário político atual?

Marcelo Castañeda: Se considerarmos válida a dicotomia esquerda e direita de uma forma esquemática e considerando os principais partidos mais importantes no cenário recente (falo de PSDB, PMDB e PT), foi uma estrondosa vitória do campo tido como direita: o PSDB teve um grande crescimento, em especial nas capitais e nos grandes municípios, com destaque para a vitória em Porto Alegre, superando PMDB e PT; e o PMDB manteve sua capilaridade nacional, principalmente nos médios e pequenos municípios.

Resumo: a base do governo Temer se fortaleceu e deve entrar com força para 2018. Isso leva a uma derrota de igual quilate do PT, que perdeu muito ao insistir na fracassada narrativa do golpe: basta ver que passou do terceiro para o décimo lugar entre os partidos que comandam prefeituras no Brasil. O PT de hoje seria menos do que PP, PR, PSD, entre outros que compõem o Centrão. Um triste fim anunciado.

Como avalia o resultado específico das eleições no Rio de Janeiro? O resultado já era esperado? Como os eleitores cariocas veem tanto Crivella quanto Freixo?

Marcelo Castañeda: De certa forma era esperado que Crivella ganhasse. Sendo bem direto: Crivella representava confiança, por conta de sua experiência como senador e ministro, enquanto Freixo poderia representar a esperança de mudança, ainda que isso não tenha ficado claro, muito em função de não ser tão conhecido, em especial nas Zonas Norte e Oeste, mas também porque não conseguiu encarnar a figura que daria vazão aos sonhos em tempos de desconfiança e questionamento do sistema político.

Claro que existem nuances, como a disputa midiática entre Record e Globo, sendo que esta pendeu para turbinar a campanha de Freixo, por conta das ligações entre Crivella e Record, emissora pertencente ao tio do candidato.

E por que era esperada a vitória de Crivella? Entre uma série de fatores, Crivella conseguia ativar redes territoriais em função de uma capilaridade social que tinha a ver com:

1) o fato de ter concorrido várias vezes a prefeito e governador desde 2000;

2) as configurações dos evangélicos, que devem corresponder a 25% do território;

3) uma oratória impressionante derivada da trajetória missionária e religiosa;

4) uma equipe técnica impecável, que se estruturava com base em pesquisas qualitativas frequentes para definir o melhor posicionamento do candidato.

Por outro lado, Freixo foi longe demais numa campanha mambembe que foi toda feita com base na intuição em um partido que se isola ao procurar uma ação política pura, o que lhe acarretou uma série de limitações.

No fundo, a impressão que fica é que Freixo não saiu de 2012, quando enfrentou o PMDB apoiado por todos a partir de uma campanha no ambiente virtual, e aqui é importante destacar que até o Facebook mudou de lá pra cá, se tornando mais restrito para fins políticos.

De certa forma, Freixo chegou ao segundo turno por conta da garra da militância de esquerda e até mesmo contou com uma ajuda do seu adversário no segundo turno, em especial nos debates televisivos em que todos estavam contra Pedro Paulo, candidato de Eduardo Paes mais do que do PMDB.

Um ponto forte de Freixo é o projeto “Se a Cidade Fosse Nossa” que, apesar de ser uma espécie de diagnóstico rápido participativo, precisa se transformar em um instrumento de mobilização permanente para que, quem sabe, em 2020, Freixo possa ativar essas redes territoriais como Crivella fez muito bem.

Resta saber se não se trata apenas de um projeto com fins eleitorais, pois pode representar muito no médio prazo para uma cada vez mais distante, ainda que necessária e emergente, reinvenção da esquerda.

O que o resultado das eleições cariocas significa para a esquerda em geral, dado que houve uma convergência da esquerda no sentido de apoiar a candidatura do Freixo?

Marcelo Castañeda: Sem abrir espaços para esses atores, não haverá reinvenção alguma da esquerda que listei na pergunta anterior. Isso quer dizer que a esquerda precisa se reinventar de forma urgente se quiser se fazer competitiva e atraente.

Como fazer isso? Permitindo que novos atores entrem em cena, renovando os ares. Falo fundamentalmente das mulheres, dos favelados e dos estudantes secundaristas, estes últimos dando as cartas da política que vai além das instituições partidárias tradicionais, o que pode ser visto na vigorosa onda de ocupações deflagrada no segundo semestre de 2015, primeiramente pelos secundaristas paulistas, e que agora vem atingindo o segmento universitário.

Sem abrir espaços para esses atores não haverá reinvenção alguma da esquerda, na medida em que os atuais dirigentes da esquerda institucional mostraram que estão esgotados, o que pode ser visto na declaração de “vitória” de Freixo depois de uma derrota clara para Crivella no segundo turno das eleições para prefeitura do Rio de Janeiro. É preciso, como diz Antonio Negri, reconhecer a derrota sem se sentir derrotado.

Por fim, é cada vez mais difícil falar de reinvenção da política a partir da representação nos moldes da democracia representativa, que teve seu desenvolvimento no pensamento político ocidental, particularmente Europa e EUA.

Trata-se de um desafio teórico e prático, que não há condições de desenvolver aqui, mas os processos eleitorais que elegem representantes estão fazendo água em todo mundo e me parece que não iremos resolver o problema com mais representação, mas essencialmente buscando abrir o sistema político cada vez mais fechado à participação, inicialmente, mas principalmente pensar em abrir os processos de tomada de decisão pelos representantes eleitos.

O que acontece é que, para serem eleitos, os representantes se aproximam dos eleitores, prometem mundos e fundos, na melhor das hipóteses, e depois literalmente viram as costas. Portanto, uma nova política deve considerar as eleições, mas principalmente desafiar a ideia de que depois de eleito o representante faz o que bem entende.

É evidente que as devidas nuances teóricas não cabem nesse espaço, mas uma pista passa por ir além das perspectivas atuais e isso envolve entender visões atuais como o perspectivismo ameríndio, nos termos que Eduardo Viveiros de Castro aponta nas suas metafísicas canibais, bem como o pós-colonialismo que pensa processos na África e Ásia, por exemplo, de uma maneira bem geral.

Como compreender a recusa política de muitas pessoas, materializada nas abstenções e votos brancos e nulos? O que esses votos, ou “não votos”, dizem?

Marcelo Castañeda: É muito difícil saber, em especial pela ausência de pesquisas qualitativas sobre abstenções, votos brancos e nulos, com as quais daria para entender as motivações envolvidas nessa decisão pontual que se toma no dia da eleição. Assim, resta a faceta quantitativa, mais destacada pela mídia e geradora de diferentes possibilidades, sendo que todas remetem a uma forma de protesto silencioso em relação à representação, da forma como ela se estrutura.

Muitos grupos anarquistas, por exemplo, divulgam esses dados como uma vitória do slogan “não vote, lute”; outros, em especial a esquerda partidária, particularmente os petistas que foram de forma destacada os grandes derrotados nacionalmente, apontam despolitização e fascismo. Também se poderia sinalizar isso como sintoma da crise da representação que tanto apontamos. Mas será que faz sentido?

Pode fazer, mas prefiro dizer que podem ser esses fatores e muitos outros, pois falta acúmulo de reflexão sobre tais variáveis (não comparecimento, brancos e nulos), fora as nuances que envolvem motivações para não comparecer ou votar nulo e branco. Com isso, quero dizer que as pessoas comemoram ou baseiam seu desespero em números brutos como se fosse bom ou ruim, sem sequer saber o que pensam as pessoas que compõem os percentuais e números. E isso não é um problema político dos grupos que adotam o grito “não vote, lute” ou daqueles que entendem uma “despolitização" e "fascismo", mas da produção de conhecimento, em especial na área de ciência política (e não só, o que pode ser visto aqui).

Na questão da representação política, mais particularmente sua crise e formas de pensar caminhos de saída e inovação (e alguns desses caminhos aparecem no artigo que destaquei no início), de alguma forma os números devem sinalizar ao menos a necessidade de maior reflexão sobre o fenômeno: ele vem aumentando? Em todos os lugares? O que pensam as pessoas que adotam esse comportamento eleitoral? Enfim, precisamos entender melhor do que se trata porque o destaque midiático a cada eleição não corresponde ao aprofundamento da reflexão sobre o assunto.

Parece que a crise da representação não passa somente pelo “não voto”, mas pelo exercício do poder a partir do voto que leva a perguntar: como os governos e parlamentares eleitos se relacionam com a população? Eles se fecham depois de eleitos e só voltam na eleição seguinte?

O principal ponto parece ser o fechamento do sistema político, muito mais do que o momento da escolha do representante, ainda que, por conta desse fechamento o momento da escolha acabe sendo o sintoma, na medida em que existe a criação de um círculo vicioso, sem falar nas condições desiguais em que concorrem os candidatos.

Como você está acompanhando a nova onda de ocupação das escolas pelos secundaristas? Que força política esse tipo de ação pode ter?

Marcelo Castañeda: É extraordinário o que esses jovens fazem: são eles que nos dão esperança de renovação do campo político no médio e longo prazo. Trata-se da primeira leva realmente conectada.

Neste sentido, vou destacar que venho pesquisando a participação de diferentes componentes tecnológicos que, para além de dividir entre o mundo real e o mundo virtual como todos nos referimos no senso comum, se entrelaçam criando uma realidade sociotécnica, muito em função do desenvolvimento tecnológico que se intensificou exponencialmente a partir do término da Segunda Guerra Mundial.

Para encurtar o ponto, o cotidiano é permeado cada vez mais pela internet e é “natural” que as mobilizações se teçam também com as tecnologias da internet, que envolvem aplicativos, sites de redes social e artefatos, como telefones celulares, tablets, câmeras com conexão wi-fi, perfilando uma parafernália que coloca em dúvida até mesmo nossa condição humana, tão imbricados estamos com as tecnologias da internet, o que alguns vão chamar de ciborgues e outros de pós-humano.

Para mim, a base do ativismo em rede é esse contexto e por aí podemos entender o salto dos movimentos transnacionais entre o neozapatismo (1994) e os movimentos que se formam em 2011, tais como Primavera Árabe, Indignados, Occupy Wall Street, jornadas de junho de 2013 e ocupações de escolas públicas a partir do segundo semestre de 2015 em São Paulo, contagiando o país de forma viral e incontrolável.

Algumas pesquisas recentes têm apontado que no Brasil aumentou o índice de desconfiança entre os brasileiros para com os próprios brasileiros e alguns até fazem uma crítica àqueles que se engajam em discussões virtuais, mas sua ação política é reduzida a isso. Como você vê esse tipo de crítica e como avalia que têm se dado as manifestações virtuais com cunho político no país? De que modo elas são ou não potencial para a realização de ações políticas?

Marcelo Castañeda: Trata-se de um preconceito evidente frente à novidade nem tão nova que a internet como um conjunto de tecnologias e práticas em diferentes contextos apresenta à sociedade de um modo geral, e ao campo político em particular.

As manifestações virtuais compõem um novo repertório de ações no sentido atribuído por Charles Tilly. Neste sentido, são legítimas e merecem ser estudadas, o que venho fazendo desde minha tese de doutorado em que pesquisei a Avaaz (pode ser acessada aqui).

De forma direta: as ações políticas em um mundo cada vez mais conectado, em que pese a existência de uma divisão digital, passa pela imbricação sociotécnica, ou seja, o entrelaçamento entre real e virtual, entre redes e ruas, não de forma dicotômica, mas de forma complementar.

A partir desse tipo de articulação da esquerda com os movimentos, o que considera que seja distintivo na esquerda em relação à direita, que também cresce em termos de rearticulação com a juventude?

Marcelo Castañeda: Esse é um ponto importante que remete a Junho de 2013 e sua multidão selvagem, nos termos de Bruno Cava. Junho foi monstruoso e incontrolável, gerando achatamentos à direita e à esquerda, o que pode ser visto respectivamente no Movimento Brasil Livre – MBL e Mídia Ninja.

A crise da representação mostra que esses achatamentos ainda mobilizam, em especial nos períodos eleitorais. No entanto, existe um terceiro e quarto campos, que chamarei de independente dos achatamentos e dos desorganizados difusos, que podem estar se organizando para arejar o que parece sem saída. Minha pista como observador se volta para esses dois últimos campos que reúnem os jovens que a pergunta aponta.

Deseja acrescentar algo?

Marcelo Castañeda: Só o amor nos salvará, se existir salvação, claro.

(*) Patrícia Fachin é jornalista do Portal do Instituto Humanitas.

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