A fé não move montanhas (nem remove governos)

                                                             

Marcelo Castañeda (*)

A maior parte das situações de mudança que se empreende no tecido social deriva das expectativas cultivadas coletivamente em torno de questões específicas. O mesmo vale para as frustrações que se vivenciam em sociedade. Em meio aos vários fatores que fazem a diferença entre a mudança desejada e a frustração vivenciada está o descompasso entre o que se quer e o que se tem como condições para que o desejo se materialize.

Seria ilusório e determinista que esse descompasso fosse o único fator, mas estou a pensar no que se dará quando o processo de impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff (PT-RS), for ratificado entre o final de agosto e início de setembro, confirmando a permanência de Michel Temer (PMDB-SP) na cabeça da República até 2018, salvo uma condenação via TSE (que geraria uma eleição indireta caso se dê em 2017, num cenário nada agradável).

Cabe destacar que minha posição foi contrária ao impeachment desde o aceite do processo pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). No entanto, o fato de não concordar com o impeachment não me fez acreditar que o processo poderia ter sido barrado, o que já foi objeto de seguidas análises, algumas feitas neste espaço inclusive.

Não se pode confundir desejo com sua concretização mágica, sem que exista um conjunto de ações em múltiplas escalas que façam valer qualquer desejo, e isso vai além de criar meme ou circular fotos de cartaz em sites de redes sociais com slogan #ForaTemer. Em que se pese todo poder que está envolvido nestes novos ambientes comunicacionais, no caso em tela não foi suficiente para reverter o processo de impeachment prestes a ter seu desfecho.

Por que Dilma não volta? Eis uma questão que pode ser vista por alguns ângulos, dentre os quais destaco os seguintes:

1) não consegue produzir governabilidade, não tem nada mais a oferecer ao sistema político (como argumenta Helena Chagas, ex-ministra do governo Dilma, aqui: http://goo.gl/3CWZcj);

2) não quis garantir o amplo acordo que viabilizasse um ajuste fiscal rigoroso e a paralisação da Lava Jato, tornando-se um agente “fora do baralho” da estrutura fechada que é o sistema político brasileiro (como salienta Marcos Nobre aqui: http://goo.gl/x8zjJW);

3) foi abandonada pelo PT, em especial pelo seu “criador”, Lula, desde já em campanha aberta para as eleições de 2018 com um discurso típico do “nós éramos felizes e não sabíamos”, como se os mais de 10 anos de aliança com o PMDB passassem batidos – ponto meu.

Um golpe específico foi desferido sobre Dilma, como uma agente dentro da estrutura do sistema político, mais até do que do PMDB sobre o PT, como salientei algumas vezes. E sem nutrir qualquer simpatia por Dilma, entendo que tal golpe (e opto por me inserir e dialogar com a narrativa que se contrapõe ao governo que se configura) se constitui como um elemento necessário para preservar um sistema político que sempre se imunizou ao menor sinal de abertura à sociedade, no contexto brasileiro.

Entre maio e o final dos Jogos Olímpicos, alguma resistência se fez contra o movimento do PMDB para ocupar o espaço que o PT deixou com seus arquirrivais tucanos na esfera do governo federal. Mas o que essa resistência produziu como alternativa consistente ao que está por vir a partir da oficialização de Temer à frente dos negócios do país nas suas altas esferas?

Muito pouco, me parece. Isso se deve à saída do PT do governo federal e o quanto o partido ainda busca hegemonizar eleitoralmente as ações que se empreendem na esfera pública brasileira, mesmo que em detrimento da desarticulação de movimentos autônomos por meio de suas estruturas vinculadas, tais como sindicatos e movimentos sociais que lhe orbitam, o que pode ser visto na forma como se organizam as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo.

O fato mais preocupante é que o campo das esquerdas não tem outro ponto a não ser a defesa de direitos constitucionais, e creio que isso é realmente importante, concordando com os apontamentos que Rodrigo Nunes fez recentemente (aqui: http://goo.gl/1fUJxF). Aliás, acho primordial que se defendam conquistas sociais que nos custaram tanto, em especial nas áreas da saúde e educação, mas também no funcionalismo público que será atacado.

Mas como fazer isso sem uma articulação em múltiplas escalas na medida em que os atores tradicionalmente vocacionados parecem se enredar nas teias de significado de um sistema político que permite pouco espaço para a novidade e até mesmo para novos sujeitos políticos?

Precisamos defender direitos (como disse aqui http://goo.gl/y7iA3o), mas penso que precisamos cada vez mais articular um projeto político que compreenda as alternativas que podemos visualizar. Leva tempo e precisa ir além dos interesses de atores imbricados no jogo político que alçou Temer à cabeça da República. O golpe em Dilma foi um golpe em todos e quando entrar setembro veremos mais claramente, inclusive a participação do próprio PT no processo que paradoxalmente define como golpe.

Sem um projeto alternativo estaremos à mercê do discurso global da crise, tendo como projeto único o eixo principal da amarração do pagamento da dívida para garantir o lucro dos bancos, primeiramente, e o que sobra sendo apropriado pelas negociatas que a Lava Jato vem, cada vez mais timidamente, expondo entre empreiteiras e os governos que gerem o Estado brasileiro.

O desespero de um beco sem saída não traz capacidade de ação para lidar com um governo que terá pelo menos mais apoio parlamentar para implementar a maldade necessária do que Dilma (e não tenho ilusão de que ela faria o mesmo). As saídas, se existem, e quero crer que sim, estarão sendo produzidas no âmbito da organização da sociedade, tendo em vista que o sistema político só pretende garantir a sua conservação. Entre as ações possíveis, além da questão tributária, a auditoria da dívida, maior transparência e o poder de decidir da sociedade precisam estar no horizonte de qualquer projeto alternativo a ser construído.

Neste sentido, as eleições municipais, tão relegadas até então, serão importantes para sinalizar o tamanho do desafio que teremos pela frente na constituição de um projeto político alternativo de longo prazo. E falo de 2022 em termos de país, pois não acredito que até 2018 surja tal condição. Claro que posso (e espero) estar enganado, mas até agora o cenário é ainda de uma fragmentação para manter tudo como está, ou seja, basicamente atendendo bem aos interesses do capital financeiro e seus fluxos globais. Trata-se de ser pessimista sem deixar de agir para ser surpreendido.

Enfim, o que está colocado a partir de setembro é o desafio de pensar a resistência em relação aos vários ataques que virão e à ação política em torno de um projeto alternativo, de forma simultânea. Quanto à utilidade do PT para promover resistências, tenho sérias dúvidas se ainda existe qualquer possibilidade de pensar alternativas em um ator coletivo que está totalmente enredado nos processos de dominação, como, por exemplo, a máquina eleitoral. É nesta corda bamba que andamos. Que pelo menos esse processo tenha nos mostrado que a fé não move montanhas sem ações concretas articuladas em múltiplas escalas.

(*) Marcelo Castañeda é sociólogo e pesquisador da UERJ.

(Com o Correio da Cidadania)

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