O discurso histórico de Putin em Sochi

                                                          
No dia 24 de Outubro de 2014, Vladimir Putin pronunciou em Sochi, no Clube Valdai de Discussão Internacional, um discurso histórico que foi praticamente ignorado pelos grandes media dos Estados Unidos e da União Europeia.

Foi uma resposta contundente e oportuna à agressiva estratégia de dominação mundial do imperialismo norte-americano, ampliada pelo presidente Barack Obama.

Transcrevemos abaixo na íntegra esse importante Documento, que não perdeu atualidade. Ao relembrar que os EUA destruíram o Sistema de Segurança Coletiva Universal existente, Putin advertiu Obama de que a Rússia não está disposta a submeter-se ao «Império do caos americano» imposto por Washington.


«Já foi dito que este clube tem novos organizadores. Incluem organizações não-governamentais russas, grupos de especialistas e universidades. Pensou-se também em alargar as discussões para incluir não apenas assuntos relativos à Rússia mas também à economia e políticas globais.

A organização e o conteúdo apoiam a influência do clube como um fórum de discussões e especializações. Ao mesmo tempo, espero que o «espírito Valdai» permaneça — esta atmosfera livre e aberta e a oportunidade de expressão de opiniões francas e diversas.

Deixem-se afirmar que também não vou desapontar-vos e falo de uma maneira franca e direta. Por vezes parecerei brusco, mas se não falar com franqueza sobre o que penso, não vale a pena estarmos neste encontro. Seria então melhor continuar as reuniões diplomáticas, onde ninguém diz algo de interesse e lembrando as palavras de um famoso diplomata, sabem que os diplomatas têm língua para não falar a verdade.

Juntamo-nos por outras razões. Juntamo-nos para falar francamente uns com os outros. Precisamos de ser hoje francos e diretos não para fazer negócios mas para ir ao fundo do que realmente está a acontecer no mundo, tentar entender porque está o mundo a ficar menos seguro e mais imprevisível, e porque são cada vez maiores os riscos à nossa volta.

A discussão de hoje submete-se ao tema: Novas regras ou um Jogo sem Regras. Acho que essa fórmula descreve bem o ponto de viragem histórica a que chegamos hoje e a escolha que todos enfrentamos. Nada há de novo na ideia de que o mundo está a mudar muito depressa. Sei que já falamos hoje sobre isto na reunião. Não é difícil ver a transformação dramática na política global, na economia, na vida pública e na indústria, na informação e nas tecnologias sociais.

Peço-lhes que me desculpem se repetir o que alguns de vocês já disseram. É praticamente impossível evitá-lo. Já tiveram discussões pormenorizadas, mas vou dizer o que penso. Vou estar de acordo com alguns e divergir de outros.

Ao analisar a situação de hoje, não vamos esquecer as lições da História. Primeiro, as mudanças na ordem mundial — o que vemos hoje são acontecimentos a esta escala — têm sido acompanhadas se não pela guerra global e conflitos, pelo menos por cadeias de intensos conflitos locais. Segundo, a política global é sobretudo sobre liderança económica, assuntos de guerra e paz, e dimensão humanitária, incluindo direitos humanos.

O mundo está hoje cheio de contradições. Temos de ser francos ao perguntar a cada um de nós se temos uma segurança fiável. Infelizmente, não há garantia nem certeza de que o atual sistema de segurança global e regional seja capaz de nos proteger de acidentes. Este sistema tornou-se seriamente enfraquecido, fragmentado e deformado. As organizações de cooperação internacionais e regionais de economia, e cultura atravessam também tempos difíceis.

Sim, muitos dos mecanismos que temos para garantir a ordem mundial já foram criados há muito tempo, incluindo e acima de tudo no período imediatamente a seguir à II Guerra Mundial. Deixem-me dizer que a solidez do sistema criado nessa altura assentava não só no equilíbrio do poder e nos direitos dos países vencedores, mas no facto de que este sistema dos «pais fundadores» se baseava no respeito mútuo, não tentava ultrapassar os outros, mas tentava alcançar acordos.

O principal é que este sistema precisa de se desenvolver e apesar dos vários curto-circuitos, tem de ser capaz de manter os problemas catuais dentro de certos limites, e de regular a intensidade da competitividade natural entre países.

Estou convencido de que não podemos agarrar neste mecanismo de verificação e equilíbrio, que construímos há décadas, por vezes com esforço e dificuldade e simplesmente desmanchá-lo sem erguer algo em seu lugar. A ser assim ficaríamos sem outro instrumento que não fosse a força bruta.
O que precisávamos era fazer uma reconstrução racional e adaptá-la às novas realidades no sistema de relações internacionais.

Mas os Estados Unidos, tendo-se declarado vencedores da Guerra-Fria, não viram a necessidade disso. Em vez de estabelecer um novo equilíbrio de poder, essencial para manter a ordem e a estabilidade, deram passos que levaram o sistema a um desequilíbrio profundo.

A Guerra-Fria acabou, mas não terminou com a assinatura de um tratado de paz de linhas transparentes e claras, sob o respeito das regras existentes ou a criação de novas regras e padrões. Isso deu a impressão que os chamados «vencedores» da Guerra-Fria decidiram pressionar os acontecimentos e redesenhar o mundo segundo os seus interesses e necessidades. Se o sistema existente de relações internacionais, lei internacional e os equilíbrios e desequilíbrios presentes não correspondiam a certos interesses, o sistema foi declarado sem valor, fora de moda e precisando de remodelação imediata.

Desculpem-me a analogia, mas esse é o comportamento dos novos-ricos quando se deparam com uma grande fortuna, neste caso, na forma da liderança mundial e da dominação. Em vez de utilizar essa riqueza sabiamente, também para seu próprio benefício, acho que cometeram muitas loucuras.

Entramos num período de interpretações diferenciadas e silêncios deliberados na política mundial. A lei internacional foi ultrapassada muitas vezes pelo niilismo legal. A objetividade e a justiça foram sacrificadas no altar da conveniência politica. Interpretações arbitrárias e acordos falsos substituíram normas legais. Ao mesmo tempo, o controle total da grande imprensa internacional tornou possível quando necessário tornar o preto branco e vice-versa.

Numa situação em que há a dominação de um país e seu aliados, ou melhor satélites, a procura de soluções globais transformou-se numa tentativa de impor as suas receitas universais. As ambições deste grupo cresceram tanto que começaram a pressionar as políticas que usam no seu corredor do poder como a visão de toda a comunidade internacional. Mas não é este o caso.

A própria noção de «soberania nacional» tornou-se um valor relativo para a maioria dos países. Essencialmente, o que se propunha era a fórmula: quanto maior a lealdade ao centro do poder mundial, maior a legitimidade deste ou daquele regime no poder.

Vamos depois ter uma discussão franca e responderei com prazer às perguntas, e quero ter também algumas respostas.
                                      
As medidas tomadas contra os que recusam submeter-se são bem conhecidas e foram testadas e tentadas muitas vezes. Incluem o uso da força, pressão económica e propaganda, ingerência em assuntos internos, e apelo a uma legitimidade «supralegal» quando têm de justificar uma intervenção ilegal neste ou naquele conflito ou deposição de regimes inconvenientes. E sabemos até que foi utilizada chantagem sobre vários líderes. Por alguma razão o «grande irmão» gasta milhões de dólares em manter sob vigilância o mundo inteiro, incluindo os seus maiores aliados.

E como nos sentimos nós, seguros, felizes neste mundo, qual é o sentido disto? Talvez não tenhamos razões para preocupações, para discutir, e para fazer perguntas? Talvez a posição excecional dos Estados Unidos e a maneira como executam a sua liderança seja realmente uma bênção, e a sua ingerência nos assuntos do mundo traga paz, prosperidade, progresso, crescimento e democracia, e devamos aproveitar e confiar.
Digamos que não é este o caso.

Uma ditadura unilateral e a imposição dos seus modelos produzem o resultado oposto. Em vez de serenar os conflitos dos países, exacerba-os, em vez de soberania e países estáveis vemos o alastramento do caos, e em vez de democracia, há o apoio de um público muito dúbio que vai de neofascistas a radicais islâmicos.

Por que apoiam essas pessoas? Fazem-no porque decidem usá-los como instrumentos para alcançar os seus fins mas queimam os dedos e recuam. Fico sempre admirado como os nossos parceiros, pisam sempre na mesma tecla, como dizemos na Rússia, ou seja, cometem os mesmos erros repetidamente.

Primeiro apoiaram os movimentos extremistas islâmicos para combater a União Soviética. Esses grupos adquiriram experiência no Afeganistão e deram depois origem aos taliban e à Al-Qaeda. O Ocidente se não ajudou, pelo menos fechou os olhos, e diria, deu informação, apoio político e financeiro à invasão da Rússia e dos países da Ásia Central por terroristas internacionais (não nos esquecemos). 

Só depois dos atentados horríveis cometidos nos Estados Unidos, os Americanos acordaram para a ameaça comum do terrorismo. Deixem-me lembrar que fomos o primeiro país a apoiar o povo americano, o primeiro a reagir como amigos e parceiros à terrível tragédia do 11 de Setembro.

Durante as minhas conversações com líderes americanos e europeus, sublinhei sempre a necessidade de nos unirmos contra o terrorismo, num desafio à escala global. Não podemos resignar-nos e aceitar esta ameaça, não podemos separa-la em pedaços e utilizar padrões duplos. Os nossos parceiros concordaram, mas pouco tempo depois estávamos de volta ao início. Primeiro foi a operação militar no Iraque, depois na Líbia, que foi quase desmantelada. Porque é que Líbia chegou a esta situação? Está hoje quase a desmembrar-se e a tornar-se um campo de treino para terroristas.

Só a determinação e sabedoria da liderança do Egipto salvou este país-chave árabe do caos e de ter extremistas à solta. Na Síria, como no passado, os Estados Unidos e seus aliados diretamente financiaram e armaram rebeldes e permitiram-lhes encher as suas fileiras de mercenários, de vários países. Pergunto de onde vem o dinheiro para estes rebeldes, as armas e os especialistas militares? De onde vem tudo isto? Como é que o ISIS se tornou um grupo tão poderoso, uma verdadeira força armada?

Quanto às fontes fornecedoras, o dinheiro hoje vem não só da produção das drogas que aumentou desmedidamente, desde que as forças da coligação internacional foram para o Afeganistão. Todos sabemos isto. Os terroristas recebem dinheiro também da venda do petróleo. O petróleo é produzido em território controlado pelos terroristas, que o vendem a preços imbatíveis, produzem-no e transportam-no. Mas alguém compra esse petróleo, o revende, e obtém lucro, não pensando no facto que assim estão a financiar os terroristas que mais cedo ou mais tarde vem para o seu país e semeiam aí a destruição.

Onde conseguem novos recrutas? No Iraque, depois de Saldam Hussein ser afastado, as instituições do estado, incluindo o exército, ficaram em ruínas. Nessa altura dissemos para terem cuidado. Atiram pessoas para a rua, e que o que fazem eles? Não se esqueçam (certo ou errado) que lideram um grande poder regional, e agora, vão transformá-los em quê?

Qual foi o resultado? Dezenas de milhares de soldados, oficiais e antigos ativistas do partido Baath foram atirados para a rua e hoje unem-se aos rebeldes. Talvez isso explique porque o grupo do estado islâmico se tenha tornado tão ativo? Em termos militares, atua com grande eficiência e tem muitos profissionais. 

A Rússia avisou repetidamente sobre os perigos das ações militares unilaterais, a intervir em assuntos de soberania de estados, e a flirtar com extremistas e radicais. Insistimos em incluir os grupos a lutar contra o governo central da Síria, principalmente o estado islâmico na lista de organizações terroristas. Vimos algum resultado? Apelamos em vão.

Por vezes temos a impressão de que os nossos colegas e amigos estão constantemente a lutar contra as consequências das suas próprias políticas, envidam todos os esforços para combater os riscos que eles próprios criaram e pagam um preço impossível.

Colegas, este tempo de dominação unipolar já demonstrou que ter um único centro de poder não torna mais maleáveis os processos globais. Pelo contrário, o estilo de construção instável demonstrou a sua incapacidade de combater as verdadeiras ameaças como conflitos regionais, terrorismo, tráfico de droga, fanatismo religioso, chauvinismo e neonazismo. Ao mesmo tempo, abriu a estrada larga ao orgulho nacional extremado, manipulação da opinião pública, a lei do mais forte sobre o mais fraco.

Essencialmente, o mundo unipolar é simplesmente um meio de justificar a ditadura sobre pessoas e países. O mundo unipolar tornou-se demasiado desconfortável, pesado e incontrolável, mesmo para o autoproclamado líder. Foram feitos comentários sobre isto aqui e concordo plenamente com eles. Por isso vemos tentativas neste novo palco histórico para recrear uma semelhança de um mundo quase-bipolar como um modelo conveniente para perpetuar a liderança americana. 

Não interessa quem toma o lugar do centro do mal na propaganda americana, o lugar da velha URSS, como principal adversário. Poderia ser o Irão, como um país que procura adquirir tecnologia nuclear, a China, como a maior economia global, ou a Rússia, como uma superpotência nuclear.

Hoje, vemos novos esforços para fragmentar o mundo, fazer novas linhas divisórias, criar coligações não para construir mas para destruir alguém, criar a imagem de um inimigo como foi o caso da Guerra Fria. Todos compreendemos isto e sabemos isto. Os Estados Unidos disseram sempre aos seus aliados: «Temos um inimigo comum, um inimigo terrível, o centro do mal, e estamos a defende-los, aos nossos aliados, deste inimigo. 

Portanto temos o direito de lhes dar ordens, força-lo a sacrificar os seus interesses económicos e políticos e faze-lo pagar a sua parte dos custos desta defesa coletiva, mas claro que somos nós que mandamos. Em resumo, vemos hoje tentativas de um novo mundo em mudança para reproduzir os modelos familiares da direção global, e tudo isso para garantir a sua (EUA) posição excecional e alcançar dividendos políticos e económicos.

Mas estas tentativas estão incrivelmente divorciadas da realidade e estão em contradição com a diversidade do mundo. Passos deste género criam inevitavelmente confronto e contra medidas e tem o efeito contrário do que se espera. Vemos o que acontece quando os políticos se metem na economia e a lógica das decisões racionais dá lugar à lógica de confronto que só fere as posições e interesses económicos, incluindo os interesses comerciais nacionais.
                                            
Projetos económicos em conjunto e investimento mútuo unem mais os países e ajuda a resolver problemas normais em relações entre estados. Mas hoje, a comunidade global enfrenta uma pressão desconhecida dos países ocidentais. De que negócios, economia e pragmatismo podemos nós falar quando escutamos slogans como «a pátria está em perigo», o «mundo livre sob ameaça», e a «democracia está em perigo». Portanto todos precisam de se mobilizar. É o que parece ser uma verdadeira política de mobilização.

Sanções já estão a minar as fundações do comércio mundial, as regras WTO e o princípio da inviolabilidade da propriedade privada. Estão a atacar o modelo liberal de globalização assente em mercados, liberdade e competividade, que, em minha opinião, é um modelo que beneficia em primeiro lugar precisamente os países ocidentais. E agora arriscam-se a perder a credibilidade como líderes da globalização. Perguntamo-nos, para que serve isto? 

Afinal, a prosperidade dos Estados Unidos assenta em grande parte na confiança de investidores e detentores estrangeiros de dólares e securities americanas. Esta confiança está claramente a ser minada e surgem sinais de desapontamento nos frutos da globalização em muitos países. O conhecido precedente de Chipre e as sanções politicamente motivadas só favorecem a tendência para apoiar a soberania económica e financeira de países ou o desejo dos seus grupos regionais para descobrir maneiras de se protegerem dos riscos da pressão externa. 

Vemos que cada vez mais países procuram maneiras de se tornarem menos dependentes do dólar e preparam alternativas financeiras e sistemas de pagamento e moedas de reserva. Penso que os nossos amigos americanos estão simplesmente a serrar o ramo em que se sentam. Não se pode misturar política com economia, mas é o que acontece hoje. Achei sempre e continuo a achar que as sanções politicamente motivadas são um erro que vai prejudicar toda a gente, mas tenho a certeza que ainda voltaremos ao assunto.

Sabemos como estas sanções foram aplicadas e quem aplicou a pressão. Mas garanto-lhes que a Rússia não vai ficar alvoroçada, ofendida ou andar a pedir às portas. A Rússia é um país autossuficiente. Vamos trabalhar no ambiente económico externo que se formou, desenvolver a produção doméstica e tecnologia e conseguir uma transformação mais rápida. A pressão do exterior, como tem acontecido noutras ocasiões, só vai consolidar a nossa sociedade, manter-nos alerta e fazer-nos concentrar nos nossos alvos de desenvolvimento.

Claro que as sanções são um problema. Estão a tentar ferir-nos com estas sanções, bloquear o nosso desenvolvimento e empurrar-nos para um isolamento cultural, político e económico, forçar-nos a retroceder. Mas afirmo que o mundo é hoje um lugar muito diferente. Não temos intenção de fechar-nos e escolher uma espécie de estrada interior, procurando viver numa autarquia. Estamos sempre abertos ao diálogo, incluindo a normalização das nossas relações políticas e económicas. Contamos aqui com a aproximação pragmática e posição de comunidades comerciais nos países líderes.

Alguns afirmam hoje que a Rússia está a voltar as costas à Europa — provavelmente também já o disseram aqui — e procura novos parceiros comerciais, principalmente na Ásia. Não é verdade. A nossa política na região Ásia-Pacífico já não é de ontem nem é devida às sanções, mas é uma política que temos vindo a seguir há muitos anos. Como muitos outros países, incluindo os países ocidentais, vemos que a Ásia tem um papel cada vez mais importante no mundo, na economia e na política, e simplesmente não é possível ignorar esse progresso.

Digamos que todos o fazem, e nós também, tanto mais que, uma grande parte do nosso país está geograficamente na Ásia. Porque não aproveitar as vantagens competitivas nessa área? Seria absurdo não o fazer.

Desenvolver laços económicos com esses países e projetos de integração conjunta cria também, grandes incentivos para o nosso desenvolvimento interno. Todas as tendências atuais demográficas, económicas e culturais sugerem que a dependência de uma única superpotência vai diminuir objetivamente. É uma coisa sobre a qual os especialistas europeus e americanos tem vindo a falar e a comentar.

Talvez os desenvolvimentos na política global espelhem os desenvolvimentos que vemos na economia global, nomeadamente, competição intensiva para nichos específicos e mudança frequente de líderes em áreas específicas. É inteiramente possível.


Não há dúvida que fatores humanitários como educação, ciência, saúde e cultura têm um grande papel na competição global. E tem um grande impacto nas relações internacionais, até porque este «poder suave» dependerá muito mais do que se conseguir no desenvolvimento do capital humano do que truques de propaganda sofisticada.
    
Ao mesmo tempo, a formação do chamado mundo policêntrico (gostaria também de chamar a atenção para isso, colegas) não aumenta a estabilidade; na verdade, antes pelo contrário. Conseguir-se o equilíbrio global está a tornar-se um puzzle difícil, uma equação com muitos desconhecidos.
Assim, o que nos resta se escolhermos não obedecer às regras — mesmo que sejam estritas e inconvenientes — ou viver sem elas? E esse cenário é inteiramente possível; não podemos afastá-lo, dadas as tensões na situação global. Muitas predições podem ser feitas, levando em conta as tendências atuais, e infelizmente, não são otimistas. Se não criarmos um sistema comum de compromissos mútuos e acordos, se não criarmos os mecanismos para resolver e contornar situações de crise, os sintomas da anarquia global vão crescer inevitavelmente.

Hoje, vemos já um interesse crescente na semelhança de um total de conflitos violentos tanto com participação direta ou indireta pelos maiores poderes do mundo. E os fatores de risco incluem não só conflitos multinacionais tradicionais mas também a instabilidade em estados separados, especialmente quando falamos de nações localizadas nas intersecções de interesses geopolíticos de estados-maiores, ou nas fronteiras de continentes civilizacionais culturais, históricos e económicos.

A Ucrânia, que estou certo que foi discutida longamente e que vamos discutir ainda mais, é um dos exemplos dessa espécie de conflitos que afetam o equilíbrio do poder internacional, e acho que não será o último. Daí emana a próxima futura ameaça de destruição do sistema atual do controle de armas. E este processo perigoso foi lançado pelos Estados Unidos da América quando se afastou unilateralmente do Tratado de Mísseis antibalísticos em 2002, e depois estabelecido e continua hoje a ativar incansavelmente a criação do seu sistema de mísseis de defesa global.

Colegas, amigos, quero lembrar que não começámos isto. Mais uma vez, encaminhamo-nos para tempos, em que, em vez do equilíbrio de interesses e garantias mútuas é o medo e o equilíbrio de destruição mútua que impede as nações de se meterem num conflito direto. Na ausência de instrumentos legais e políticos, as armas estão mais uma vez a tornar-se o ponto fulcral da agenda global; são utilizadas por todo o lado, e por todos sem qualquer sanção do Conselho de Segurança das Nações Unidas. E se o Conselho de Segurança recusar essas decisões, será imediatamente declarado instrumento sem efeito e ultrapassado.

Muitos estados não veem outro modo de garantir a sua soberania a não ser pelas suas próprias bombas. É extremamente perigoso. Insistimos em prosseguir conversações; somos não só a favor de conversações, mas insistimos em continuarmos conversações para reduzir os arsenais nucleares. Quanto menos arsenais nucleares existirem no mundo, melhor. E estamos prontos, a discussões serias e concretas sobre o desarmamento nuclear — mas só conversações serias sem segundo sentido.

E quero dizer o quê? Hoje, muitos tipos de armas de alta precisão estão muito perto do armamento de destruição massiva em termos de capacidade, e no caso de uma renuncia total de armas nucleares ou redução radical do potencial nuclear, as nações lideres na criação e produção de sistemas de alta precisão tem uma clara vantagem militar. A paridade estratégica está desequilibrada e claro que isso traz desestabilização. A utilização do um ataque de prevenção global pode ser tentadora. Em resumo, os riscos não diminuíram, aumentaram.

A ameaça óbvia seguinte é o aumento de conflitos étnicos, religioso e sociais. Esses conflitos são perigosos não apenas como tais, mas também porque criam zonas de anarquia, sem lei, e caos à sua volta, lugares confortáveis para terroristas, e criminosos, onde a pirataria, tráfico humano e de drogas florescem.

Incidentalmente, quando os nossos colegas tentaram controlar estes problemas, utilizaram conflitos regionais, e «revoluções coloridas» para enquadrar os seus interesses, mas o génio escapou da garrafa. Parece que esses países não conseguem executar a teoria do caos controlado, há uma grande confusão nas suas fileiras.

Seguimos atentamente as discussões tanto com a elite governativa como com a comunidade de especialistas. Basta ver aos títulos da media ocidental no último ano. As mesmas pessoas são designadas combatentes da democracia, e islamistas. Primeiro escrevem sobre revoluções e depois chamam-lhes levantamentos e distúrbios. O resultado é óbvio: uma expansão crescente do caos global.

Colegas, dada a situação global, é tempo de começar a acordar nas coisas fundamentais. É muito importante e fundamental, é muito melhor, do que cada um voltar ao seu canto. Quanto mais enfrentamos problemas comuns, melhor estamos no mesmo barco, por assim dizer. E a lógica é a cooperação entre: nações, sociedades, respostas coletivas a desafios crescentes, e na cooperação conjunta de risco. Claro, que alguns dos nossos parceiros só se lembram disso quando lhes interessa.

A experiência prática mostra que as respostas conjuntas não são sempre uma panaceia; temos de entender isso. Além disso, na maioria dos casos é difícil de entender, não é fácil vencer as diferenças nos interesses nacionais, a subjetividade de diversas aproximações, principalmente quando se trata de nações com tradições culturais e históricas diferentes. Mas, temos exemplos quando, com fins comuns e agindo dentro dos mesmos critérios, juntos conseguimos o verdadeiro êxito.

Deixem-me lembrar-lhes a solução do problema das armas químicas na Síria e o diálogo substantivo do programa nuclear iraniano, assim como o nosso trabalho nos assuntos da Coreia do Norte que teve também alguns resultados positivos. Porque não utilizar esta experiência no futuro para resolver desafios locais e globais?

O que poderia ser a base legal, económica e politica para uma nova ordem mundial que permitirá estabilidade e segurança, enquanto encorajará competição saudável, não permitindo a formação de novos monopólios que impedem o desenvolvimento? É impossível que alguém possa apresentar soluções absolutamente exaustivas e prontas agora. Vamos precisar de um imenso trabalho participativo, com muitos governos, comércio global, sociedade civil e plataformas de especialistas como as nossas.

Mas, é óbvio que só serão possíveis resultados e sucesso se os participantes em assuntos internacionais concordarem em harmonizar interesses básicos, com contenção razoável, e dando o exemplo de liderança positiva e razoável. Temos de identificar claramente onde acabam as ações unilaterais e temos de aplicar mecanismos multilaterais, e como parte de melhorar a efetividade da lei internacional, temos de resolver o dilema entre as ações da comunidade internacional para garantir a segurança e os direitos humanos e o princípio da soberania internacional e a não interferência dos assuntos internos de cada estado.

Essas coligações levam cada vez mais à interferência externa arbitrária em processos internos complexos e de vez em quando provocam conflitos perigosos entre os principais jogadores globais. O problema de manter a soberania torna-se quase equivalente a manter e fortalecer a estabilidade global.

Claro, que discutir critérios para o uso da força externa é extremamente difícil: é praticamente impossível separa-la dos interesses de nações particulares. Mas, é muito mais perigoso quando não há acordos claros para todos, quando não há condições claras para todos, quando não há condições claras para uma interferência legal e necessária.

Devo acrescentar que as relações internacionais devem ser baseadas na lei internacional, que deve assentar em princípios morais como a justiça, igualdade e verdade, Talvez o mais importante seja respeitar os parceiros e os seus interesses. É uma fórmula óbvia, mas se fosse simplesmente seguida podia mudar radicalmente a situação global.

Tenho a certeza de que há uma vontade, que podemos restaurar a efetividade, do sistema das instituições internacionais e regionais. Nem sequer precisamos de fazer nada de novo, não é um campo verde, principalmente desde que as instituições criadas após a Segunda Guerra Mundial são universais e tem substância moderna, adequada a coordenar a situação atual.

Isso melhorará o trabalho da Nações Unidas, cujo papel central é insubstituível, assim como ao da OSCE, que no decorrer dos últimos 40 anos, tem provado ser um mecanismo necessário para garantir a segurança e cooperação na região euro-atlântica. Devo dizer que mesmo agora, ao tentar resolver esta crise no sueste da Ucrânia, a OSCE tem um papel muito positivo.

À luz de mudanças fundamentais no ambiente internacional o aumento da incontrolabilidade e várias ameaças precisamos de um novo consenso global de forças responsáveis. Não se trata de assuntos locais, ou divisão de esferas de influência no espírito da diplomacia clássica, ou do domínio global completo de alguém. Não devemos recear isso. Pelo contrário, é um bom instrumento para harmonizar posições.

É particularmente relevante dado o alargamento e crescimento de algumas regiões no planeta, cujo processo objetivamente requer a institucionalização de novos pólos, criando organizações regionais poderosas e desenvolvendo regras para a sua interação. A cooperação entre esses centros auxiliaria muito à estabilidade da segurança, politica e economia globais. 

Mas para estabelecer este diálogo, precisamos de assumir que todos os centros regionais e projetos de integração formados à sua volta têm de ter direitos iguais ao desenvolvimento, para se complementarem e ninguém poder forçá-los ao conflito ou a uma oposição artificial. Ações assim destrutivas quebram os laços entre estados, e os próprios estados seriam submetidos a condições duras e até à própria destruição.

Gostaria de lembrar os acontecimentos do último ano. Declaramos aos nossos parceiros europeus e americanos que as decisões rápidas por exemplo, sobre a associação da Ucrânia com a União europeia originariam sérios riscos na economia. Nem sequer falamos de política, falamos só da economia, afirmando que esses passos, tomados sem conversações, tocam os interesses de muitas outras nações e que uma discussão alargada sobre os assuntos é necessária. Incidentalmente, sobre este assunto, devo lembrar, por exemplo, as conversações sobre o acesso da Rússia a WTO há 19 anos. Foi um trabalho muito difícil e alcançou-se um certo consenso.

E por que falo disto? Porque ao implementar o projeto de associação da Ucrânia, os nossos parceiros deviam ter falado connosco, mas os seus serviços e mercadorias apareceram ao portão, por assim dizer, e não aceitamos isso, ninguém nos perguntou. Tivemos discussões sobre todos os tópicos relacionados com a associação da Ucrânia com a União Europeia, discussões persistentes, mas quero afirmar que tudo foi feito de maneira civilizada, indicando problemas possíveis, mostrando razões e argumentos. Ninguém nos quis ouvir e ninguém quis conversar. Disseram-nos apenas: isso não lhes diz respeito, fim de conversa. Em vez de um diálogo compreensivo e civilizado, fez-se um golpe de estado, mergulharam o país no caos, num colapso económico e social, numa guerra civil com muitas baixas.

Por quê? Quando perguntei a razão disso aos meus colegas, já não tiveram resposta, ninguém disse nada. Ninguém sabia, diziam, aconteceu. Essas ações não deviam ter sido encorajadas, não devia ter acontecido.

Afinal (já falei sobre isso) o anterior presidente da Ucrânia Yanukovych assinou tudo, concordou com tudo. Porquê? Discutir para quê? Afinal o que é isto, uma maneira civilizada de resolver problemas? Aparentemente, aqueles que passam a vida a organizar «revoluções coloridas» consideram-se «artistas brilhantes», e não conseguem parar.

Tenho a certeza que o trabalho de associações integradas, a cooperação de estruturas regionais deve ser construído numa base clara e transparente; a formação da União Económica da Eurásia é um bom exemplo dessa transparência. Os estados que participam neste projeto informaram os seus parceiros dos seus planos com tempo, especificando os parâmetros da nossa associação, os princípios do seu trabalho, que obedeceu totalmente as regras da Organização Mundial de Comercio.

Acrescento que teríamos aceitado o início de um diálogo concreto entre a União Europeia e a Eurásia. Incidentalmente, quase que nos recusaram a ideia e creio que a receiam?

E, claro, nesse trabalho e conjunto, pensamos que devíamos estabelecer diálogo (já falei disto e obtive acordo da parte de muitos parceiros ocidentais, pelo menos na Europa) da necessidade de criar um espaço comum para a cooperação económica e humanitária que se estenderá do Atlântico ao Pacifico.

Colegas, a Rússia fez a sua escolha. As nossas prioridades são: melhorar as nossas instituições políticas e democráticas, acelerar o desenvolvimento interno, tendo em conta todas as tendências positivas do mundo e consolidar a sociedade baseada nos valores tradicionais e patriotismo.

Temos uma agenda de integração, positiva, pacifica; trabalhamos ativamente com os nossos colegas da União Económica da Eurásia, de Xangai, os BRICs e outros parceiros. Esta agenda procura desenvolver laços entre governos, não dissociações. Não planeamos juntar uns blocos ou lutarmos uns com os outros.

As alegações e afirmações de que a Rússia tenta estabelecer uma espécie de império, avançando na soberania dos vizinhos, são infundados. A Rússia não precisa de qualquer espécie lugar especial e exclusivo no mundo. Se respeitarmos os interesses dos outros, queremos que respeitem os nossos e a nossa posição.

Sabemos que o mundo entrou numa era de mudança e transformação global, quando todos precisamos de um grau particular de cuidado, a capacidade de evitar passos em falso. Nos anos depois da Guerra Fria, participantes da política global perderam estas qualidades. Agora precisamos de recorda-las. Senão, a esperança de um desenvolvimento pacífico, estável, será uma ilusão perigosa, enquanto o vendaval de hoje servira simplesmente de prelúdio ao colapso da ordem mundial.

Como já disse, criar uma nova ordem mundial estável é uma tarefa difícil. Estamos a falar de um trabalho longo e duro. Pudemos estabelecer regras para interação depois da Segunda Guerra Mundial e conseguimos um acordo em Helsínquia nos anos 70. O nosso dever comum é resolver este desafio fundamental nesta nova era de desenvolvimento».

(Com o Diário Liberdade)

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