As cidades e o urbanismo no impasse


                                                             
Renato Cymbalista (*) 

Ilustração: Odyr

Um dos mais importante sites de repúdio aos acontecimentos recentes na política brasileira é a plataforma Alerta Social, que usa o eficaz moto “Qual direito você perdeu hoje?”.

No que diz respeito às políticas urbanas, temos muito a dizer nesse sentido. O anúncio do cancelamento do Minha Casa, Minha Vida – Entidades (do qual o governo federal recuou dali a alguns dias, sob pressão do MTST), os cortes na faixa mais baixa do programa e o aumento do limite máximo para os financiamentos da Caixa são medidas que convergem para o mesmo sentido: a volta do financiamento aos segmentos da cidade que dão melhores retornos financeiros, que “não dão prejuízo” aos cofres públicos. Já conhecemos os efeitos dessas medidas sobre o território: crescimento das desigualdades e aumento da precariedade e da informalidade, com graves consequências ambientais e sociais.

O problema maior: não me parece que tenhamos uma situação clara para onde voltar. O Minha Casa, Minha Vida foi escrutinado e analisado de muitas formas, e seus graves problemas já foram apontados, como a produção de unidades longínquas, a baixa qualidade dos assentamentos e a defesa dos interesses das empresas construtoras. Se é verdade que “é melhor com ele do que sem ele”, é um pouco constrangedor lutar por um programa que oferece tão poucas possibilidades de redução de desigualdades nas cidades, ainda mais tendo em vista seu alto custo.

Não foi dessa vez que conseguimos colocar em curso mecanismos efetivos de redistribuição do bem-estar no território das cidades. Nesse sentido, o Minha Casa, Minha Vida atacava o problema pelas bordas – até mesmo no sentido literal. O problema da moradia nas grandes cidades requer instrumentos de enfrentamento do tecido urbano já construído: como acessar as partes mais providas de infraestrutura das cidades? Como disponibilizá-las para os mais pobres? E, mesmo no caso de produção de moradias em áreas bem providas de infraestrutura, como evitar que a médio prazo essas unidades caiam no mercado e sejam adquiridas pelos que têm mais dinheiro, no processo conhecido como “gentrificação”?

Parece claro que políticas públicas baseadas exclusivamente na casa própria e na propriedade privada não têm condições de atacar esses problemas. Esse foi o caso do Minha Casa, Minha Vida, e é por isso que tenho muitas ressalvas em relação ao programa. Ficamos bastante ocupados nos últimos anos em defender, atacar ou disputar recursos do Minha Casa, Minha Vida e deixamos de fazer algumas lições de casa. Acredito que seja a hora de retomar alguns debates e propostas que foram atropelados pelos bilhões desse programa.

A questão essencial aqui é a propriedade privada: ainda que para os beneficiários a conquista da casa própria possa trazer um impacto positivo tremendo, do ponto de vista do funcionamento da cidade como um todo não é isso que acontece. Empregar recursos públicos para impulsionar a propriedade privada tradicional é uma medida profilática, para dizer o mínimo. Os recursos públicos em urbanismo não devem ser gastos para produzir mais da mesma cidade, e sim para produzir uma cidade diferente. 

De 2001 a 2004, no município de São Paulo, foi operado o programa Locação Social, um importantísismo ponto de partida para nossas reflexões atuais. O programa consistia na construção de um parque público de moradia que seria alugado para as faixas mais baixas de renda a preços baixos e vinculados à renda de cada família. Como o beneficiário adquiria um serviço, e não uma propriedade, não precisava se endividar, e a moradia era acessada a um custo bem mais baixo do que qualquer financiamento.

Alguns conjuntos foram realizados dentro desse programa (Olarias, Parque do Gato, Vila dos Idosos), mas ele foi quase paralisado desde 2005, sob alegações de que a informalidade e os contratos de gaveta dominavam os projetos, de que a inadimplência subia exponencialmente, de que o poder público não tem a capacidade de gerenciar um parque de moradia próprio. Desde então – e já se passou uma década – até bem pouco tempo atrás, o debate esteve essencialmente entrincheirado: alguns defendiam que a locação social é um programa virtuoso cuja paralisação era fruto de olhares neoliberais e reacionários, enquanto outros apontavam para um conjunto de vícios de origem que inviabilizariam o modelo.

De meu ponto de vista, os dois lados cometeram erros: os que atacam o Locação Social deixaram de atentar que em alguns casos, como a locação para idosos, o programa funciona bastante bem. Os que defendem o programa raramente levam a sério falhas e limitações administrativas que efetivamente comprometem sua viabilização. Em uma apresentação que fiz recentemente sobre o tema, ouvi uma moradora de um conjunto de locação social dizer que, por falta de recursos, ficou alguns meses sem pagar o aluguel e que, quando voltou a pagá-lo, quis sanar sua dívida, mas não houve meios de descobrir como isso poderia ser feito ou de receber um recibo de quitação de dívidas.

Parte dos problemas é, em minha opinião, de desenho administrativo: a gestão de um parque de moradia pelo Estado é muito difícil. Por exemplo, o que fazer em caso de inadimplência de um morador ou família? Despejá-lo é uma opção politicamente custosa e até juridicamente questionável, pois o Estado não pode simplesmente jogar pessoas na rua. Por outro lado, aceitar a inadimplência é algo que compromete a sustentabilidade financeira dos empreendimentos. Se um apartamento deixa de pagar o aluguel e nada lhe acontece, o vizinho pode também parar de pagar, e assim por diante, até a inadimplência assumir proporções epidêmicas.

É o que acontece com os dois maiores conjuntos de locação social. O Parque do Gato (486 unidades) e o Olarias (137 unidades) tinham proporções de inadimplência de até 70% apenas cerca de cinco anos após serem entregues, conforme avaliação da própria prefeitura.

Outro ponto a ser levado em conta: após 2004, quando se encerrou a gestão petista de Marta Suplicy, o programa praticamente não se expandiu. Em São Paulo, foram entregues em 2009 dois projetos iniciados ainda na gestão Marta, com apenas 85 unidades no total, e em 2014 mais cinquenta unidades foram inauguradas no Palacete dos Artistas, aumentando o universo de unidades em locação social para cerca de novecentas. Outras cidades, mesmo aquelas que possuíram ou possuem uma gestão progressista, não ativaram programas de locação social. São limitações importantes de difusão do programa, e sabemos que boas ideias tendem a se difundir.

Por um lado, reconheço que, se tivermos alguma chance de redução das desigualdades nas cidades, isso será por meio de políticas de moradia que desafiem a propriedade privada, como o Locação Social. Por outro, não me parece saudável apenas defender a continuidade e expansão do programa sem enfrentar as significativas dificuldades.

Um caminho interessante, a primeira inovação em mais de uma década, encontra-se apontado no novo Plano Municipal de Habitação de São Paulo, cuja minuta se encontra em discussão pública. Nele, foram criadas duas novas alternativas: a locação social por autogestão e o Programa Locação Social de Mercado. Este dará incentivos para proprietários oferecerem imóveis para a locação social. Na autogestão, organizações da sociedade civil sem fins lucrativos podem se engajar na gestão do programa. 

É mais ou menos o modelo utilizado para alguns hospitais públicos, geridos por braços filantrópicos de hospitais privados. A gestão ganha em agilidade, pois uma entidade do terceiro setor terá mais facilidade em efetuar despejos, cobrar dívidas e não permitirá que a inadimplência se generalize. No caso de subsídios serem necessários para a permanência de famílias com insuficiência de renda, a mediação da entidade tenderá a dar mais transparência à destinação desses recursos.

Tais modalidades de atendimento habitacional tratam a moradia como serviço, aproveitam a cidade já existente e provida de infraestrutura, enfrentam a subutilização, promovem o adensamento e o uso mais racional do espaço. Parecem-me perspectivas bem mais virtuosas a defender do que o Minha Casa, Minha Vida. É necessário ainda um bom trabalho para a viabilização dessas novas modalidades dos pontos de vista administrativo e jurídico, mas essa será uma contribuição efetiva para alargar nosso restrito arco de atendimento habitacional, dessa vez pensando a moradia estruturalmente inserida na cidade, e não como um produto isolado e setorial.

Trata-se de desenhos institucionais que apontam para o aperfeiçoamento de uma esfera pública não estatal, com algumas semelhanças com os fundos comunitários de terras, os community land trusts existentes nos países anglo-saxões desde a década de 1990. Nesse aspecto específico da construção de espaços públicos de caráter mais comunitário – em inglês, o termo commons vem sendo utilizado para designar esse tipo de espaço –, a política de habitação converge com algumas das iniciativas mais recentes de ocupação dos espaços públicos pelos novos movimentos sociais, como o Ocupe Estelita, em Recife, ou a Batata Precisa de Você, em São Paulo.

Tais construções de espaços comunitários ou comuns apresentam um desafio para a própria moldura institucional das políticas participativas que o urbanismo progressista desenhou a partir da década de 1980: a ideia da gestão democrática da cidade procurava alargar a presença de segmentos tradicionalmente excluídos como interlocutores das políticas públicas, mas o que está em demanda atualmente é a autonomia e a possibilidade de definição da esfera e dos espaços públicos pelos próprios grupos sociais. Institucionalidades celebradas como inovação democratizante, como os conselhos gestores de políticas e equipamentos públicos, são frequentemente rejeitadas pelos novos movimentos sociais e coletivos como instâncias lentas e tecnocráticas.

Assim, o cenário que se desenha para o futuro próximo é bastante desafiador para o urbanismo progressista, tanto pelas dificuldades econômicas quanto pela correlação de forças políticas negativa. Mas não devemos nos esquecer de que algumas das soluções mais inovadoras nas áreas do desenvolvimento urbano e da moradia foram construídas em situações de extrema escassez de recursos, frequentemente em situações políticas adversas: projetos em mutirão, autogestão, urbanização de favelas, instrumentos de regularização fundiária. A esquerda de certa forma precisará reaprender a pensar soluções para as cidades, em outro patamar, com menos dinheiro e com menos poder. Mais do que render-se aos limites, ela deve identificar as frentes de luta possíveis e incidir nelas, como já fez em tantas ocasiões em que esteve inferiorizada no jogo político.

Renato Cymbalista

(*) Renato Cymbalista é professor da FAU-USP e presidente do conselho de administração do Instituto Pólis

(Com Le Monde Diplomatique)

Comentários