Chile: a rebelião dos aposentados

                                                             

 Horácio Brum (*)

Foram mais numerosos do que os estudantes em seu melhor momento: cerca de 100 mil pessoas marcharam pela avenida principal de Santiago no último dia 24 de julho, e outras dezenas de milhares o fizeram nas cidades mais importantes de todo o Chile para defender seu direito a uma velhice tranquila, sem a angústia de saber que sua aposentadoria pode ficar reduzida a zero caso vivam bastante ou se caiam as cotações das bolsas em Frankfurt e Londres.

“AFP não mais” era a bandeira que se repetia na demanda de mudanças radicais no sistema de aposentadoria criado pela ditadura e mantido por todos os governos democráticos. As administradoras de fundos de pensões (AFPs) são criações emblemáticas do neoliberalismo chileno, filhas do cálculo e da imaginação de José Piñera, ex-ministro do Trabalho do regime de Augusto Pinochet e irmão de Sebastián Piñera.

De raízes democrático-cristãs, José Piñera se vinculou à ditadura depois de estudar em Harvard nos violentos anos do boicote e derrota do governo Salvador Allende. No final da década de 1970 passou a integrar o círculo de jovens talentos recrutados por Pinochet para “modernizar” o país, e aos 30 anos chegou ao Ministério do Trabalho.

Como parte da ofensiva para desmantelar o Estado, o jovem ministro recebeu do governo plenos poderes para substituir o sistema público de aposentadorias e pensões, supostamente deficitário, por um plano de poupança privado. Com essa mudança todos os trabalhadores foram obrigados a entregar uma porcentagem dos seus salários a administradoras privadas, sem que tivessem qualquer aporte dos empregadores. A exceção: membros das forças armadas e polícia, que até hoje se aposentam através do sistema fiscal, no qual suas pensões se mantêm estáveis.

Piñera deixou em um livro alguns objetivos claros da reforma que pouco tinha a ver com o discurso oficial de fazer com que os chilenos tivessem melhores aposentadorias: a privatização do sistema “significou uma diminuição gigantesca do poder político do Estado sobre a economia”, e “equivaleu a privatizar dezenas de empresas que efetivamente passaram ao setor privado”.

Pelo menos dez dos ex-ministros da ditadura foram e seguem sendo membros dos diretórios das AFPs, onde convivem sem problemas com ex-funcionários dos governos democráticos, incluindo vários do primeiro governo de Michelle Bachelet. Assim como os militares, nenhum deles tem a obrigação de entregar uma porcentagem dos seus ganhos para as administradoras, porque a lei que rege o sistema – imposta pelo governo militar – estabelece comissão compulsiva apenas para os trabalhadores em relação de dependência ou os independentes de médios e baixos recursos.

Segundo a Fundação Sol, que estuda as condições do trabalho no Chile, mais que para beneficiar cotistas, o sistema de AFP serve para dar financiamento barato às grandes empresas, nas quais as administradoras investem mediante ações. Segundo Marco Kremerman, economista da Fundação Sol, os grupos empresariais são assim subsidiados pelos trabalhadores e obtêm fundos a uma taxa de juros mais baixa que a do mercado. O cofre das AFPs contém uns 170 bilhões de dólares.

Um exemplo dado pela Fundação Sol para demonstrar como o dinheiro dos trabalhadores proporciona capital para as empresas é o do grupo da família Matte, proprietária de uma companhia fabricante de papéis e cartões que foi símbolo da resistência da direita econômica ao governo de Allende. Como acionistas de novas empresas do grupo Matte, que incluem bancos, créditos florestais, papeleiras e companhias de eletricidade e telefonia, as AFPs deram a esse conglomerado empresarial 4,5 bilhões de dólares.

Por outro lado, na intersecção de interesses, comum no meio empresarial chileno, as grandes empresas participam na propriedade das AFPs, cujos lucros são obtidos da comissão que cobram a cada contribuinte e que está entre 0,5 e 1,5%, adicional ao 10% do salário mensal que deve ser entregue por lei. Uns 2,3 milhões de dólares diários é o que deixa essa comissão nas mãos dos donos das AFPs, com um aumento do benefício entre 2014 e 2016 perto dos 70%. Entretanto, a aposentadoria média chegou em 2015 a 382 dólares.

Por causa das marchas contra as administradoras, José Piñera resolveu abandonar o circuito internacional de bem pagas conferências e aulas nas quais vende o modelo econômico chileno, e fez uma declaração em tom messiânico: “suspendo minha cruzada mundial, para lutar de novo no Chile”. Nos jornais El Mercurio e La Tercera, diários de maior circulação e claramente aliados da direita empresarial, a notícia da manifestação do domingo, 24 de julho, foi posta em páginas e setores marginais; uma medição feita entre o dia seguinte e o domingo, 7 de agosto, indicou que entre ambos meios de comunicação foram publicados 41 artigos favoráveis às AFPs e apenas nove com posições contrárias ao sistema.

Faz um ano que o governo recebeu o informe sobre as AFPs preparado por uma comissão de especialistas, que recomendou mudanças profundas no sistema. Bachelet demorou a fazer um pronunciamento, mas a saída às ruas dos cidadãos fez com que na terça-feira, 9 de agosto, ela anunciasse algumas modificações.

A principal novidade, ao menos para a realidade chilena, é que os empregadores deverão complementar em 5% a contribuição dos trabalhadores, para elevá-la a 15%. E ainda, quando os fundos sofram perdas, as AFPs terão que devolver as comissões; será criada uma administradora estatal; e buscar-se-á forma de dar aos cotistas uma representação nos diretórios. Boas intenções, que devem passar pela peneira parlamentar, a qual a direita parece ter no bolso.

 (*) Horácio Brum é jornalista chileno.

Artigo publicado em espanhol no jornal La Brecha, do Uruguai.

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania

http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=11921

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