"Dirigimo-nos para um governo chantagista que vai implantar o programa da grande rapinagem”

                                                                

Gabriel Brito (*) 

O Senado já aprecia o processo de impeachment de Dilma, que por sua vez parece se concentrar em promover gestos finais de despedida, em especial por conta de envios de projetos de lei de viés progressista que jamais estiveram em pauta quando a vida parecia normal. De toda forma, continuam obscuros alguns pontos que ativaram a ofensiva dos setores dominantes pelo fim de seu mandato e, ao passo que os alguns líderes discutem o eventual governo de transição, o Correio publica entrevista com a historiadora Virgínia Fontes.

“Tem algo muito estranho na origem do processo que deve nos deixar em alerta, pois a situação não está completamente clara. Parece que há tensões em setores dominantes. Tensões entre o ‘clube do milhão’ e o ‘clube do bilhão’, uma vez que as estruturas representativas do setor empresarial são muito mais voltadas ao primeiro do que ao pequeno grupo de grandes empresas bilionárias, constituídas desde o processo de privatizações da era FHC. E não está claro o que tudo isso significa”, disse.

Nesse sentido, Virgínia afirma que está na ordem do dia o desafio de uma melhor interpretação a respeito das características regionais das diversas frações da burguesia brasileira, o que ajuda a explicar a primazia do PMDB na mediação do jogo de interesses que costuma excluir os interesses das maiorias das grandes decisões.

“O PMDB assume centralidade diante da impotência do PT em ser de fato um partido de esquerda e do PSDB de ser algo além de expressão regional de uma certa burguesia, enclausurada em São Paulo, Minas Gerais e um pedaço do Paraná, enquanto as burguesias brasileiras são mais amplas. Temos o desafio de entender a regionalização da grande burguesia, as estratégias das suas estruturas representativas e o fato de que seu conjunto tenha adotado todos os partidos ao longo dos anos”, explicou.

Além de explorar a questão das disputas intercapitalistas, nacionais e internacionais, Virgínia não deixou de abominar o que considera um autêntico golpe – a seu ver já consumado na prática – marcado pelo “espetáculo inadmissível” da votação dos deputados em 17 de abril. Por fim, enfatiza que abrem-se as porteiras para um ciclo de exploração capitalista praticamente sem limites e leis.

“Estamos nos dirigindo para um governo capitaneado por um grupo chantagista que vai implementar o programa da grande rapinagem com um acordo frouxo, por enquanto, dos outros partidos da direita. E tais partidos (incluindo da atual oposição) irão aderir na medida em que a rapinagem for aplicada. Mas tenho absoluta certeza de que a massa da população brasileira não aguenta mais suportar o que suportou”, pontuou.

A entrevista completa com a historiadora Virginia Fontes pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como avalia a situação do Brasil e em especial da presidente Dilma após aprovação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados?

Virgínia Fontes: Avalio ser uma situação gravíssima, vivemos efetivamente um golpe, embora não seja exatamente como se explica em alguns casos. Significa, fundamentalmente, uma intervenção de uma Câmara dos Deputados dominada por um grupo extremamente complicado, com processos nas costas e irritados uns com os outros, a avançar sobre o voto popular. Não tenho dúvidas disso. Tal processo não começa na votação do impeachment, mas em meados de março, quando ficam evidentes as formas seletivas de interferência tanto do judiciário como nas decisões do legislativo. Portanto, um momento gravíssimo.

Esse momento gravíssimo, a meu ver, não tem uma razão disparadora clara. Por que razão começa se a grande burguesia brasileira foi absolutamente contemplada ao longo dos governos Lula e Dilma – em seu segundo, ainda mais? Se não tem resposta imediata, tal questão não pode ficar obscurecida, porque os fatores disparadores imediatos são vários. Um deles é o temor de setores da grande burguesia de irem pra cadeia. E não posso me furtar de dizer que a palavra de ordem da Fiesp é a mais esquisita, ou explícita, segundo uma leitura freudiana: “não vamos pagar o pato” significa que o empresariado brasileiro não o fará, mas a população sim.

Tem algo muito estranho na origem do processo que deve nos deixar em alerta, pois a situação não está completamente clara. Parece que há tensões em setores dominantes. Como já disse antes, tensões entre o “clube do milhão” e o “clube do bilhão”, uma vez que as estruturas representativas do setor empresarial são muito mais voltadas ao primeiro do que ao pequeno grupo de grandes empresas bilionárias, constituídas desde o processo de privatizações da era FHC. E não está claro o que tudo isso significa.

A situação política e econômica do Brasil não está clara e é muito inquietante. Outro ponto importante de mencionar é que, na ausência de clareza das tensões internas entre setores burgueses, um elemento que se torna mais evidente é que a direção intelectual e moral – como diria Gramsci – do processo vem sendo conduzida por uma aliança entre os setores mais retrógrados da sociedade e alguns mais reacionários, que não são exatamente retrógrados no sentido de serem herdeiros de períodos anteriores, mas coligados a setores mais reacionários e à direita do cenário internacional e em especial à extrema-direita dos EUA. Isso vem sendo expresso através do papel de entidades associativas do tipo Instituto Liberal e Movimento Brasil pela Democracia, cujos dirigentes são formados em grupos e escolas próximos da extrema-direita norte-americana.

Portanto, uma situação complexa. Nem o disparador e nem os desdobramentos estão claros. Uma situação gravíssima e de golpe, em meu juízo.

Correio da Cidadania: Antes de entrarmos em outras questões da política brasileira, o que comenta do discurso de Dilma na ONU, que evitou o uso do termo golpe e foi criticada por diversos setores que apoiam a manutenção do seu mandato?
                                               
Virgínia Fontes: É preciso analisar a timidez, pra dizer o mínimo, quando levamos em conta que há dois anos a Dilma não fazia discursos políticos em âmbito internacional. Não sei o que forma sua estratégia discursiva, mas não fez discursos de 1º de maio ou intervenções mais pontuais em questões sociais gravíssimas etc. A meu ver, tem a ver com a ambiguidade na qual vive o governo dirigido por ela. Foi eleita com uma plataforma e no dia seguinte adotou outra. Não se apresenta como uma direção efetivamente política para a classe trabalhadora brasileira. Dilma procura se apresentar como pêndulo suspenso acima das classes sociais, a procurar coordenação entre elas, uma posição impossível de sustentar por alguém apoiado por alguma coisa que um dia se chamou Partido dos Trabalhadores.

Portanto, a ignorância da existência de classes sociais, a tentativa de fazer conciliação pelo alto e acatar exigências do capital aceitando uma “piora menor” aos setores populares geram a postura vista na ONU. Significa que não temos uma liderança expressa pela presidente Dilma, com convicção clara da situação brasileira.

Correio da Cidadania: Voltando ao plano interno, como viu e sentiu o “espetáculo” da votação do impeachment no domingo, 17 de abril? O que comenta da postura dos membros da casa legislativa?

Virgínia Fontes: É lamentável, desastroso e inadmissível o que aconteceu naquele dia. Na verdade, o dramático aconteceu pelo conjunto do processo que se desenha. Uma Câmara de Deputados sem nenhuma legitimidade, cujo presidente já deveria estar afastado há muito tempo de suas prerrogativas, faz, por uma espécie de vingança própria, um determinado encaminhamento que é uma afronta a qualquer processo democrático burguês, por mais limitado que seja. Afronta brutal!

A partir do momento em que tais personagens começam a afronta, uma parcela da grande burguesia brasileira, pra não dizer toda, embarca nela. Tal conjunto é constituído por um partido sem credibilidade, uma direção da Câmara sem credibilidade e uma série de deputados que devem uns aos outros, em prováveis esquemas de chantagem que deixam-nos ligados a situações no mínimo envergonhantes. Tal conjunto toma a iniciativa, recebe o apoio de quase toda a classe dominante e inicia um processo altamente perigoso para a população brasileira. Pra não falar do imenso apoio da grande mídia.

Acho que qualquer pessoa com o mínimo de dignidade humana se sente enojada, afrontada. Não é exatamente surpresa, mas até que ponto é possível ir o espetáculo da degradação da política? Talvez o caso mais exemplar seja a deputada que votou em nome do marido que no dia seguinte foi preso. E do Bolsonaro, uma afronta a qualquer democracia. Um deputado que declara voto em nome da defesa de procedimentos de tortura na ditadura. Em qualquer país, e olha que eu acompanho debates parlamentares de vários países, é inadmissível. Foi inaceitável o espetáculo, em seu todo.

O conjunto do processo de impeachment é o conjunto do processo de golpe. E mais do que sobre a presidente Dilma, é um golpe sobre os setores da população brasileira que consideram uma sociedade de iguais condição fundamental da existência humana. Isso que precisamos ter claro. Não sei se a presidente está de acordo com isso, acredito que não, ante os discursos que faz. Mas aquele golpe colocado é contra a classe trabalhadora, contra sua auto-organização e em especial contra todas as parcelas dessa classe que tentam se organizar de forma autônoma, independente e com clareza da luta que precisam levar.

Correio da Cidadania: Como avalia a postura do PMDB e alguns outros partidos outrora aliados na evolução da crise?

Virgínia Fontes: Aqui tem uma situação interessante, porque o partido assumiu uma posição central por conta de uma estrutura de chantagem clássica que perdurou da ditadura para o Estado de direito de uma limitada democracia no Brasil, após 1989. Limitada em boa medida em função do PMDB, mas não apenas. Também pelo funcionamento do DEM e PSDB. Se o PMDB assumiu lugar principal foi exatamente pelo fato de ser quem centraliza ou coordena as estruturas de chantagem no cenário político nacional. Assim, é capaz de trazer ou pelo menos bloquear o conjunto dos outros, trazendo boa parte dos partidos de aluguel e bloqueando os três partidos de fato da esquerda brasileira – PSOL, PSTU e PCB.

Portanto, a postura do PMDB, que há tempos domina o Estado, é a síntese do conjunto de partidos da burguesia. São mais de 20 e nenhum destes expressa nenhum setor direto da burguesia. As burguesias brasileiras, desde o primeiro governo Lula, adotaram para elas praticamente todos os partidos que estão na disputa eleitoral. Financia todos, divide entre eles os recursos e assim, em seus mais diferentes formatos, as burguesias passaram a ter em sua mão o espectro dos partidos, desde a esquerda à extrema direita do capital.

Todo o espectro conforma o partido da burguesia. Em outros termos, o Partido da Ordem, termo de Marx retomado por Florestan Fernandes, é composto por uma quantidade enorme de partidos. E todos eles devem sua penetração às burguesias brasileiras, em termos de financiamento, acesso à mídia, programas e sobrevivência mais imediata.

Dentro disso, o PMDB é um daqueles que têm penetração e organização de escala nacional, e é síntese da podridão de uma política de tal tipo, herdada da estrutura ditatorial. Essa é uma situação complicada porque ocorreu em algum momento o que venho chamando de certo “paulistocentrismo”, isto é, uma oposição entre PSDB e PT muita clara em SP, mas não tanto assim pelo país, onde o papel de cada um deles é diferente.

Pra ficar claro, com exceção dos três partidos de esquerda, os demais são partidos da ordem burguesa, inclusive o PT, que faz a esquerda desse partido. Dentre os partidos que estão ali, nenhum deles têm claramente delimitado qual setor e fração representa das classes dominantes. Estas, investiram em todos eles, de maneira peculiar. O paulistocentrismo é uma avaliação um pouco irônica, porque a classe trabalhadora de São Paulo é forte, extremamente variada, rural e urbana, de escala enorme, mas tal conceito não se refere a ela. E de certa forma o PT adotou essa formula paulistocêntrica, criada na década de 40 na figura da Locomotivo do País, que por sua vez deveria seguir os desígnios ditados de São Paulo.

Entra no jogo o complicador da postura do PMDB e outros partidos. Embora o PSDB tenha veia fundamentalmente paulista e carioca, nunca conseguiu de fato uma distribuição nacional. PT e PMDB são os únicos que têm inserção, escala e abrangência nacionais. Ainda assim, ficamos encolhidos a um debate que opõe PSDB e PT em escala nacional. O problema dessa limitação é que só sobra o PMDB para mediá-la, pois abrange estados circunscritos de problemas de organização da política e da vida social que não podem ser resolvidos pelo PSDB e poderiam, mas não foram, ser enfrentados pelo PT.

O PMDB assume centralidade por diversas razões: a primeira é sua escala nacional. A segunda é que herda da ditadura as formas mais apequenadas da política: a negociação direta, caso a caso. Dessa herança, constitui uma parcela importante de sua liderança como algo diretamente chantagista, tanto com as classes dominantes como em relação aos setores populares.

Nessa circunstância, o que é o pior da nossa política do ponto de vista de herança histórica, o PMDB assume centralidade diante da impotência do PT em ser de fato um partido de esquerda e do PSDB de ser algo além de expressão regional de uma certa burguesia, enclausurada em São Paulo, Minas Gerais e um pedaço do Paraná, enquanto as burguesias brasileiras são mais amplas.

Portanto, estamos diante de um imenso desafio de compreensão, não simplesmente de uma resposta. Temos o desafio de entender a regionalização da grande burguesia, as estratégias das suas estruturas representativas e o fato de que seu conjunto tenha adotado todos os partidos ao longo dos anos.

Correio da Cidadania: O que pensa da postura da oposição após a vitoriosa votação pelo impeachment, por ela também apoiado?
                                                    
Virgínia Fontes: Continuamos numa situação gravíssima e longe de amainar. O fato de que todos tenham aderido a uma aventura golpista e uma vez, também devido a isso, que estejam todos numa bola de neve com a qual não podem brincar, não significa que não estejam com medo.

Em alguns artigos escrevi, e continuo pensando assim, que a Operação Lava Jato e o medo de grandes empresários de serem presos são temores reais, inclusive de partidários do impeachment, porque as operações da PF atingiram apenas o PT até o momento. Por um lado, há um temor real do que pode acontecer, um movimento que fuja de seu controle, afinal, como dissemos, o disparador de tudo isso ainda é um tanto incógnito.

A chantagem, a meu ver, se antecipa ao medo. E no caso é o medo de ser preso. Respeito os argumentos da crise econômica, mas não me convencem que tenham sido as razões principais do processo. Creio que temos a conjunção de crise econômica e fratura do pacto social um pouco mais complexa, relacionada também ao cenário internacional.

A certa cautela da oposição nos primeiros momentos após a votação na Câmara se deve ao temor do escândalo em que se meteu, coisa que o mundo inteiro reconhece e ela sabe. O Brasil não é uma republiqueta, como dizem, mas uma das dez maiores economias do planeta. Ao se abrir aqui uma situação que possa inaugurar um cenário de tensão social permanente, a América Latina toda pode se incendiar.

Eles toparam a chantagem número 1, junto com um conjunto expressivo da grande burguesia brasileira, e ao mesmo tempo temem os desdobramentos. É absolutamente vergonhoso assistir, porque não há nenhum posicionamento que seja claramente político. Não há proposta, não há projeto. A única proposta é de rapina. Avançar na DRU, portanto, sobre os recursos da previdência, de tudo aquilo que a Constituição definiu como recursos públicos que não deverão financiar o capital. Há pelo menos 70 projetos de lei na Câmara e Senado de retirada de direitos do trabalhador.

Portanto, entram como aves de rapina no processo, de maneira avassaladora, a fim de retirar direitos, mas uma coisa retroage sobre a outra – a chantagem política feita pelo PMDB, admitida pelo PSDB, depois de este tentar se colocar como um ente limpo, quando nunca houve tentativa de limpeza alguma e os demais partidos são apenas de aluguel. Por isso, querem diminuir o número de partidos, o que visa excluir exatamente aqueles que não lhes pertencem. Nesse processo, tais partidos temem o que pode acontecer, mas agora não têm como brecar o movimento iniciado por eles próprios. Por isso é gravíssima nossa situação.

Correio da Cidadania: Acredita que Dilma tem chance de sobreviver ao processo no senado?

Virgínia Fontes: Sou historiadora, não sou futuróloga. Para mim, independentemente de  sobreviver ou não, a sinalização que ela tem dado é de fazer a política que eles estão determinando. O golpe em boa parte já foi dado. Eliminou a direção política do governo brasileiro a sua capacidade de liderança. Esse golpe já foi dado.

Subsequentemente, alguma possibilidade há de a Dilma voltar ao governo. Sempre há uma possibilidade alucinada qualquer de o Senado votar diferentemente da Câmara ou de ela voltar 180 dias depois. Isso não é impossível.

Ou se faz mobilização popular para enfrentar qualquer que seja o dirigente que saia desse processo, a fim de exigir respeito aos recursos públicos, o fim da rapinagem na estrutura política (totalmente coligada e dependente dos grandes capitais brasileiros e estrangeiros) e exigir e impor decência aos representantes ou vamos descer ladeira abaixo.

Correio da Cidadania: Assim, chegaria a ser irrelevante a continuidade do mandato de Dilma.

Virgínia Fontes: Ela pode continuar no mandato com o golpe já feito e completamente refém. Ela já era refém do que estava posto no início do mandato, por isso digo que tem alguma coisa opaca no disparador de todo o processo. Dilma foi eleita com uma plataforma na campanha e na semana seguinte à sua posse adotou uma política oposta. De quem ela adotou tal política? Dos grandes grupos brasileiros e estrangeiros que aqui atuam. Portanto, o tipo de enfrentamento que estamos assistindo não faria muito sentido.

Mas por que tal enfrentamento ocorre? Porque há uma disputa. A meu juízo temos duas disputas subterrâneas. Uma é sobre a continuidade da investigação da Polícia Federal para além do PT. E apesar da seletividade que a Polícia Federal e o Ministério Público já demonstraram, essa é uma ameaça latente e patente na situação brasileira. Ninguém sabe se Sérgio Moro continuará fazendo investigações sobre outros grupos. Mas a massa que foi para a rua contra a corrupção o fez apoiando um Sérgio Moro que não foi além.

Portanto, tem um problema aí e a Fiesp diz que ela não vai pagar o pato, o que significa que nenhum empresário será preso e o resto que pague o pato. Outro problema é a captura do programa com acordo da presidência e de uma grande parcela do PT desde o primeiro governo Lula.

Nesse momento aparece a questão: “se ela faz o programa deles, por que está acontecendo tudo isso”? Uma questão é a Polícia Federal. O PT jamais pôde controlá-la – e não porque não quisesse, mas porque não podia. Além disso, quem leu o Valor Econômico, O Globo, a Folha e o Estado de S. Paulo nos últimos dois meses sabe que as promessas, e eles falam todos os dias, são jogar baldes de água nas operações da Polícia Federal, estabelecer um grande cenário de pacificação nacional e diminuir o impacto das investigações de corrupção, tanto entre as empresas brasileiras quanto em algumas entidades do Estado, a exemplo da própria representação política. Esse é um dos elementos.

O segundo elemento é que um dos setores mais corrompidos do PMDB assume o enfrentamento: o setor do Eduardo Cunha. Essas duas circunstâncias capturaram o processo em um ponto em que não houve nenhum enfrentamento, até o Cardozo dizer que se tratava de um golpe. Mas não houve um enfrentamento ao golpe do ponto de vista partidário e da direção política do país.

Não há uma liderança no país, de modo que a burguesia quer prender o Lula e impedi-lo de falar, porque ele é uma liderança. Por mais que eu discorde do Lula e dos governos petistas, algo que sempre deixei bem claro, a situação atual é: uma parcela grande da burguesia associada a parlamentares completamente corroídos quer impedir que surja qualquer liderança com algum cheiro popular. Isso porque eles dispararam um processo que não terão como frear e ameaça abrir lutas sociais que eles não terão como controlar.

Correio da Cidadania: Dentro de todo esse jogo, que inclui o esfacelamento do lulismo como mediador dos conflitos de classes e interesses, como avalia a declaração de Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, a afirmar que o PT deve abdicar de se apresentar como liderança majoritária da esquerda brasileira?

Virgínia Fontes: Primeiro tenho um pouco de dúvida sobre a capacidade nacional de liderança do Haddad. Ele tem uma postura muito centrada em São Paulo. Apesar de ter sido ministro da Educação sua postura é muito centrada em São Paulo e, portanto, temos novamente a disputa PT-PSDB, que é muito característica de São Paulo. Em segundo lugar, a minha avaliação é um pouco diferente da dele.

O PT já não é uma liderança da esquerda brasileira há muito tempo. O PT é a liderança de uma esquerda voltada para o capital. O que é uma “esquerda voltada para o capital”? Esse é o título de um belo livro do Eurelino Coelho, que se chama “Uma esquerda para o capital”, em que ele mostra como a expansão do capitalismo brasileiro precisou trazer para si, ou seja, para dentro do setor burguês, as lideranças que emergiam entre os trabalhadores, adequando-os à gestão do capital e se apresentando como uma esquerda capaz de lidar com o capitalismo. Não era mais uma socialdemocracia que fazia tal papel, estava mais próximo de um social-liberalismo, mas era essa a postura.

É preciso qualificar melhor o que estamos chamando de esquerda e o Haddad não está qualificando. Está simplesmente considerando que o PT historicamente expressa a esquerda, mas que esquerda expressa o PT? O PT já expressou uma esquerda, mas desde quando ele parou de expressá-la, desde agora?

Provavelmente, como um partido à esquerda do capital o PT não perde seu papel e nele continuará. Certamente, não é mais o papel de atuar como liderança máxima, uma vez que ao longo dos seus períodos de governo perdeu a capacidade convocatória que lhe dava acesso fundamental de esquerda conveniente para o capital.

Mas não estamos assistindo a isso somente no Brasil; acontece no mundo inteiro. Os partidos oficiais que vêm de uma tradição, seja do socialismo, do trabalhismo ou de qualquer viés de esquerda e se colocaram para atuar como uma mão esquerda do capital, estão perdendo rapidamente credibilidade social e capacidade aglutinativa. Basta ver o caso do PSOE espanhol, do Partido Socialista Português, do Partido Socialista Francês e de outros tantos partidos que transigiram tanto tempo com o capital. Eles foram perdendo espaço, inclusive de atuação como mão esquerda do capital, e abriram espaço, desgraçadamente, para a ascensão de uma extrema-direita que vem calcada em valores que tais partidos da esquerda do capital perderam, que são os valores da negociação a qualquer custo com a dominação. Estamos assistindo no cenário internacional à ascensão de uma direita difusa, muito articulada e bastante truculenta, ao lado do crescimento de formas de expressão da rebeldia popular descrentes dos partidos.

E não precisamos ir muito longe. Temos o Podemos na Espanha e o Movimento “Nuit Debout” (“Noite Desperta”) na França, cujos participantes passam noites em pé na praça da República em Paris e em várias outras cidades francesas. São expressões da rebeldia popular com a clareza de que estão lutando pela classe trabalhadora e de recusa aos partidos. Essa é uma situação dramática porque nós precisamos de organização. Precisamos da junção desses movimentos sociais às formas de organização que ainda resistem nas classes trabalhadoras. A situação é muito inquietante, mas podemos remontar mais atrás ao Occupy Wall Street e outras formas anteriores, como a Geração à Rasca de Portugal, o Syriza na Grécia, entre tantas outras.

Vivemos no mundo uma situação muito peculiar. E no caso brasileiro, com a situação golpista, é ainda mais complexo. Sequer as regras burguesas de funcionamento tradicionais vêm sendo respeitadas. Por essas razões que a declaração do Haddad me pareceu pretensiosa, ao partir do pressuposto de que o PT liderava, até agora, a esquerda brasileira.

Correio da Cidadania: Apesar de toda a discussão e o quadro complicadíssimo, qual poderia ser a melhor saída para a crise em sua visão? E como imaginaria um “governo de transição” capitaneado pelo PMDB?
            
Virgínia Fontes: Como Gramsci, sou uma pessimista da razão e uma otimista da vontade. Vamos para os dois aspectos. Primeiro, o pessimismo da razão. Do ponto de vista de uma análise absolutamente fria do que vem acontecendo, estamos nos dirigindo para o pior. Estamos nos dirigindo para um governo capitaneado por um grupo chantagista que vai implementar o programa da grande rapinagem com um acordo frouxo, por enquanto, dos outros partidos da direita. E tais partidos irão aderir na medida em que a rapinagem for aplicada. O PSDB, por exemplo, está oscilando, esperando as eleições, mas quando a rapinagem for flagrante estará ao lado. Algumas das suas lideranças inclusive já o declararam. Do ponto de vista do pessimismo da razão, eu diria que vamos para uma situação muito difícil, na qual certamente teremos lutas duríssimas.

Antes de entrar no aspecto do otimismo da vontade vou introduzir outro elemento que o Gramsci não considera, que é a razão conflitual. Do ponto de vista dessa razão conflitual, tais grupos não têm apoio social para implementar o programa de rapinagem que querem e, portanto, terão de defrontar-se com lutas que não sabemos quais são. Não sabemos quem conduz, nem que posição ou partido e nem quais movimentos emergirão para tentar unificar os setores e grupos contrários à rapinagem. Mas sabemos que surgirão. Isso porque a sociedade brasileira é uma sociedade complexa, hoje altamente urbanizada e já mostrou que não quer perder direitos – e o que está proposto é uma devastação dos direitos da maioria da população brasileira.

Portanto, eu não tenho dúvidas de que o pessimismo que a direção principal do processo traz tem de ser temperado por essa razão conflitual. É a razão conflitual que me permite dizer, como Gramsci, que existe um otimismo da vontade. A população brasileira, após um experimento de democracia, ainda que mendigada, dificilmente aceitará uma ditadura levada adiante pelo pior que essa sociedade já produziu. Vamos enfrentar lutas poderosas e eu tenho confiança de que se não for de maneira instantânea, mas a curto ou médio prazo, estaremos aqui enfrentando situações nas quais a classe trabalhadora dirá claramente que é insuportável aceitar alguma coisa do tipo que se desenha.

Sou pessimista pelo encaminhamento das nossas direções partidárias altamente comprometidas, basta ver o que estão fazendo e que são rapinantes, oportunistas e sem nenhuma responsabilidade sobre o conjunto da população brasileira. Assim, com eles sou pessimista. Mas tenho absoluta certeza de que a massa da população brasileira não aguenta mais suportar o que suportou. E em boa parte suportou pelo PT porque o próprio PT dizia ser em seu nome. Agora não terá quem diga ser em seu nome, portanto, a razão conflitual tende a emergir. Ao emergir, temos chances de ir muito além do que já fomos até aqui.

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 (*) Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

(Com o Correio  da Cidadania)

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