Problemas com o espelho?

                                                                              

                Mauro Luis Iasi.

“Acho que não podem me escutar…
e tenho quase certeza de que não podem me ver.
Alguma coisa me diz que estou invisível…”
– LEWIS CARROLL, ALICE NO PAÍS DO ESPELHO

Há muito tempo atrás você descobriu com inebriante alegria e espanto sua imagem refletida no espelho, mais ou menos quando você tinha seis meses de idade. Em um momento, nos lembra Jacques Lacan, no qual você era menos inteligente que um chimpanzé, mas demonstrou a incrível capacidade de se reconhecer sua imagem no espelho. Este processo que o psicanalista francês afirma se estender até os dezoito anos, o chamado “estádio do espelho”, seria uma identificação, isto é, uma “transformação produzida no sujeito quando assume uma imagem”.

A função do estádio do espelho seria estabelecer uma relação com a realidade, um nexo entre o mundo interior e o mundo exterior, mas deixemos as pertinentes e profundas reflexões lacanianas (por vezes impenetráveis), por um tempo, para nos debruçar na análise de um fenômeno mais prosaico.

No último domingo, um grupo de pessoas que se caracteriza por ainda guardar alguns resquícios de bom senso e capacidade intelectiva, ficou chocado com o ritual grotesco da sucessão de discursos que antecediam os votos dos senhores e senhoras deputados e deputadas. Produziu-se em massa um fenômeno que popularmente conhecido como vergonha alheia, isto é, o embaraço que causa uma pessoa que paga um mico colossal e perece ser incapaz de ela própria expressar a vergonha que lhe caberia, levando as outras pessoas, gentil e sofridamente, a sentirem vergonha por ela.

Poderíamos começar pelo óbvio, ou seja, pelo fato dos deputados federais, com um tempo exíguo, falarem de tudo menos do assunto em pauta. É certo que sabíamos que deputado nenhum vai ler mais de trinta pastas e treze anexos, coisa que ele normalmente deixa para o trabalho de assessores. Mas o cara podia ao menos falar do tema, da denúncia, dos argumentos, para depois proferir o voto pelo sim ou pelo não.

No entanto, creio que isso não espante mais ninguém, com ou sem bom senso. O estranhamento começou antes mesmo daqueles habitantes do lago Cocite, mais conhecido como o nono círculo do inferno de Dante, iniciarem sua fala. Acharam por bem se vestir com a bandeira nacional, colocar fitas na cabeça, justo eles que tinham a preferência pelo cinza, o terno e o tailleur, como forma de produzir a única padronização possível, já que ali ninguém é igual nem perante a lei.

Logo em seguida o estranhamento se expressa na ansiosa necessidade de aparecer, portanto cartazes ridículos, mas ainda assim, menos ridículos que as feições dos que os portavam. Os nobres parlamentares comportavam-se como aquela malta que desprezam. Como aquele sujeito que se coloca atrás do entrevistado nas ruas para aparecer no enquadramento da câmara, para logo em seguida não saber para onde olhar, expressando em sua face o pensamento recôndito que grita para si mesmo, “mamãe estou na TV”, com um sorriso bobo e o olho indo de um lado para outro, como que procurando alguém que pudesse depois comprovar o feito.

O choque que se produz na nossa percepção é inevitável. Em um momento dramático e sério da vida política, que pode culminar em nada menos que o afastamento de uma presidente eleita (porque tem também os presidentes que não são…), aqueles deputados estavam, para dizer o mínimo, eufóricos. Manifestavam uma alegria infantil. Bastava alguém com presença de espírito forrar a mesa com decorações do homem aranha ou da pequena sereia, distribuir balões e chapeuzinhos, colocar um bolo e umas velinhas e todos cantariam parabéns a você (na versão da Xuxa).

Mas, aí eles começaram a falar. O companheiro Gilberto Calil, num ímpeto estatístico e sadomasoquista, resolveu copilar as palavras chaves que abriam os discursos, até as 23h10, quando se somava 477 votos. A grande maioria (92 citações) referiu-se à sua família (esposa, filhos, pai, mãe, avó, avô… gostaria de lembrar aqui minha querida tia Antonieta que sempre guardarei na memória com afeto e admiração). Segue-se a referencia a Deus (43 citações) que, preocupado com a crise política e moral brasileira, certamente está preparando um dilúvio ou algo mais forte, além das seis pragas que faltam (a primeira, que é o mosquito multitransmissor de dengue, zika e chikungunya, já veio) para ver se consegue acertar o Cunha de alguma forma.

Chamou-me a atenção o fato que as referências ao Brasil (60 citações) e aos eleitores, que vêm logo em seguida, perdem para as referencias diretas ao estado do deputado(a) e sua cidade (69 citações). Aquelas figuras são deputados federais. O bairrismo grosseiro é algo assustador, voto aqui pelos mineiros, os baianos que se virem, voto aqui pela progressista cidade de Cotia (o que me lembra que esqueci de citar um amigo de meu avó paterno).

Significativamente, o fim da corrupção foi citado apenas dezesseis vezes. As chamadas pedaladas foram citadas apenas duas vezes. Dá até para imaginar um colega deputado tentando soprar para o cara do microfone, “Psiu, fala das pedaladas!”, “O que, pedaladas? O que tem haver as pedaladas? Queria agradecer aqui publicamente ao meu personal trainer!”

Uma pessoa de bem – certamente haverá algumas pessoas de bem naquela malta grotesca – ao tentar encadear um raciocínio elementar, considerando as denúncias apresentadas, os argumentos jurídicos e políticos apresentados, refletindo sobre o processo orçamentário e aquela sugestão indicativa que recebe o nome de Constituição Federal, receberia a reprovação dos olhares bovinos de seus colegas e ouviria do réu confesso que presidia a sessão: “como vota o deputado”!

As pessoas de bom senso estão como que atordoadas. Não é exatamente raiva que sentimos, seria um misto de espanto e pena, além, evidente, de uma vergonha que quase nos leva a comprar um bloco de papel de carta e começar a escrever a todos os povos do mundo para que busquem compreender, se possível relevar e, quem sabe um dia, nos perdoar por este espetáculo grotesco.

Creio que há duas expressões, muito distintas, que expressam a carnavalização política que nos foi imposta. O deputado do Solidariedade, notório pelego, corrupto comprovado e deputado medíocre, um rato chamado Paulinho da Força, encaminhando o voto daquilo que chama de partido, cantou uma parodia tendo por base uma música de Vandré (“Para não dizer que não falei de flores”) em que enxotava Dilma e pedia que levasse o “vagabundo do Lula com você”. 

Outra foi a homenagem do fascista Bolsonaro ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Imediatamente, centenas de corpos dilacerados levantam-se de suas tumbas, conhecidas ou não, carregam seus hematomas, as unhas arrancadas, as feridas abertas na carne e na alma, se fazem acompanhar de ausências, de famílias destruídas, de filhos que não conheceram seus pais, de abraços no vazio, de cadeiras sentadas à mesa do sofrimento, de oceanos cruzados por exílios, de poetas escrevendo com sangue e ira, de músicos calados, artistas em busca de suas mãos e sonhos, de militantes… levantando como uma onda de proporções tsunâmicas diante da pequenez medíocre daqueles vermes engravatados.

Talvez nunca consigamos apagar a ignomínia deste ato. São daquelas marcas que não saem com água e sabão, com autocrítica e perdão, são cicatrizes que persistirão para sempre para nos lembrar, para não nos deixar esquecer.

As pessoas sensatas, que gostam de acreditar que são racionais, olhavam para o vídeo que azulava à noite irracional. Nosso desconforto aumentava a cada vez que ouvíamos uma expressão hecatômbica: “representantes”.

Eis que a tela da TV convertia-se em um espelho. Aquilo… somos nós? A dialética temporal das projeções e reflexos que impactam o sujeito pelas imagens que o constituem, deformam-se, fragmentam-se, produzem o “rompimento do círculo do mundo interno para o mundo externo, gerando a quadratura inesgotável das enumerações do eu” (Lacan, “O estádio do espelho”). O corpo despedaçado. Como num filme de terror, ou em um pesadelo, quando olhamos para o espelho e de lá nos olha alguém que não somos nós, até que pela mão do diretor ou da psicanalista, chegamos à dramática sentença: “Tu és isto”.

Aqui, no âmbito do juízo político, podemos coletivamente nos insurgir contra o espelho, ainda que como indivíduos isolados nos reste a depressão. Não, não somos isto. Isto é aquilo no que nos transformaram. Já passou da hora de aprender com Alice e olhar o que está atrás do espelho.

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

https://blogdaboitempo.com.br/2016/04/20/problemas-com-o-espelho/

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