REPÚBLICA DOS BACHARÉIS

                                               

Se houver impeachment, Michel Temer 
será 22º advogado a presidir o Brasil

Sérgio Rodas

Depois de 26 anos governado por engenheiro, sociólogo, metalúrgico e economista, o Brasil pode restabelecer a hegemonia dos advogados. Caso a presidente Dilma Rousseff tenha de se afastar com a instauração  do processo de impeachment pelo Senado, seu vice Michel Temer será o 22º presidente formado em Direito, do total de 41. Não à toa, o país ganhou o apelido de a “República dos Bacharéis” no início do século XX.

Porém, ao contrário de ex-presidentes que se formaram em Direito, mas não trabalharam na área, como José Sarney e João Goulart, Temer possui longa experiência no ramo. Ele foi advogado e procurador do estado de São Paulo por mais de 20 anos antes de entrar de vez para a política. Além disso, deu aulas de Direito Constitucional e escreveu livros sobre o assunto.

Nascido em 1940, em Tietê (SP), Michel Miguel Elias Temer Lulia desejava ser escritor na adolescência. Contudo, seguiu o rumo de quatro de seus sete irmãos e foi estudar na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde se formou em 1964. Embora tenha se envolvido com a política estudantil, chegando a concorrer à presidência do Centro Acadêmico XI de Agosto e do Diretório Central dos Estudantes da USP, o peemedebista não lutou contra o golpe militar, nem o apoiou.

Formado, passou a advogar na área trabalhista para um sindicato de vendedores viajantes. “Ganhava pouco, era uma vida de muita luta, mas com muita dedicação”, afirmou em palestra na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo em 2012. Ao mesmo tempo, ajudou seu professor José Carlos de Ataliba Nogueira na Secretaria da Educação de São Paulo, estado governado à época por Ademar de Barros (PSP). Por meio do filho dele, Geraldo Ataliba – cuja irmã era casada com seu irmão Fued Miguel Temer –, Michel Temer conheceu Paulo de Barros Carvalho, futuro professor de Direito Tributário da USP e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Os dois rapidamente se tornaram amigos, e abriram um escritório com Celso Bastos e José Eduardo Bandeira de Mello. Aproveitando que o pai deste, Osvaldo Aranha Bandeira de Melo, havia sido nomeado desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo pelo quinto constitucional, os jovens advogados estabeleceram-se no escritório dele, na Rua Maria Paula, no centro de São Paulo.

                                            
Ao iniciar na advocacia, Michel Temer dividiu primeiro escritório com Celso Bastos e José Eduardo Bandeira de Mello.

No entanto, a empreitada estava mais para um “embrião de um escritório” do que para uma banca em pleno funcionamento, conta Barros Carvalho. Tanto que eles não chegaram a constituir uma sociedade advocatícia. Como a maioria dos advogados iniciantes, tinham poucos clientes.

Quando surgia algum caso, Michel Temer pedia ajuda a seu irmão Fued, que já era um profissional experiente e professor da USP. Essa parceria ocorreu especialmente em algumas ações de pensão alimentícia que os jovens atuaram.

A maioria do tempo no conjunto comercial era gasta com conversas e estudos, uma vez que Paulo de Barros Carvalho almejava passar em um concurso para o Ministério da Fazenda, e Temer e Bastos queriam virar procuradores do estado de São Paulo. Eles tinham companhia nas leituras jurídicas da futura professora de Direito Processual Civil da PUC-SP Thereza Arruda Alvim. Em 1969, todos eles foram aprovados nos exames, dando fim ao escritório.

Concurso público

A ideia de prestar concurso surgiu após Temer virar assistente de Geraldo Ataliba na disciplina de Direito Constitucional na PUC-SP, experiência que fez com que se interessasse por Direito Público. E a procuradoria foi a opção que mais se encaixa em seu perfil.

“Foi uma escolha compatível com a minha vocação — mesmo com toda a admiração que eu tinha pelo Ministério Público, pela magistratura, a vocação era mais advocatícia, e nada melhor para satisfazer essa vocação do que a advocacia pública. Tanto mais que, naquela época, você prestava o concurso e não havia dedicação exclusiva, você poderia optar pelo regime parcial e, por isso, pude advogar naquelas questões que não diziam respeito ao Estado”, explica o presidente licenciado do PMDB no livro Advocacia Pública – Apontamentos sobre a história da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, de Cássio Schubsky.

No órgão, Temer foi alocado na Procuradoria Administrativa, no subsetor Mandado de Segurança. Uma situação recorrente com a qual tinha de lidar era a de aprovados nas provas de concursos públicos, barrados em exame psicotécnico — muitas vezes, era uma forma de justificar a recusa baseada nas ideias políticas do candidato.

Em 1978, Temer virou procurador-chefe da Empresa Municipal de Urbanização da capital. Quando deixou o cargo, foi para a área contenciosa da PGE, e, posteriormente, retornou à seção de Mandado de Segurança.

Como procurador, Temer aprofundou seus estudos em Direito Público, o que o incentivou a fazer mestrado e doutorado na PUC-SP. Nesta segunda especialização, concluída em 1974, ele foi orientado pelo professor de Direito Administrativo da universidade Celso Antônio Bandeira de Mello, e sua tese virou seu primeiro livro: Território Federal nas Constituições Brasileiras (publicado pela editora RT).

Sociedade em escritório

Durante esse tempo, o peemedebista advogou no escritório de seu irmão Fued Temer. Certo dia, Celso Bastos estava no apartamento de Michel Temer com ele e Bandeira de Mello procurando um conjunto comercial para ser seu escritório nos classificados do jornal O Estado de S. Paulo. Diante da ajuda entusiasmada destes dois, Bastos perguntou: “Se vocês estão tão animados, por que não fazemos um escritório juntos?”. Bandeira de Mello virou-se para seu orientado e disse que a ideia era boa. Temer concordou. Para fechar o time, eles convidaram Geraldo Ataliba, amigo dos três.

Juntos, formavam o que chamavam de “quarteto mágico” da advocacia. Todos eram professores da PUC-SP, sendo que Ataliba e Bandeira de Mello tinham acabado de terminar seus mandatos como reitor e vice-reitor, respectivamente, da universidade. Além disso, os quatro tinham livros respeitados pela comunidade jurídica. Quando Bastos se desentendeu com Ataliba — conhecido por seu gênio forte —, a substituição foi à altura: Adilson Abreu Dallari, então assistente acadêmico de Bandeira de Mello.

Os advogados fixaram-se, em 1977, num amplo conjunto decorado com madeira escura na esquina da Avenida Paulista com a Alameda Casa Branca, de frente para o Parque Trianon. Os nomes dos quatro adornavam a porta de vidro da entrada. Mesmo assim, não criaram uma sociedade, embora, a princípio, funcionassem como uma, dividindo trabalho, despesas e lucros.

Com o passar do tempo, concluíram que era mais natural que cada um cuidasse dos seus casos, conta Bandeira de Mello, e mantiveram apenas a repartição dos gastos. Eventualmente, se aliavam em alguma empreitada. Independente disso, sempre travavam profundas discussões sobre pontos polêmicos que surgiam durante os trabalhos, relembra.

Ele e Dallari tratavam de questões de Direito Administrativo, enquanto Ataliba concentrava-se em assuntos tributários. Michel Temer atuava nas áreas cível, empresarial e trabalhista. Apesar da concorrência, Dallari e Bandeira de Mello garantem que o hoje vice-presidente da República era o melhor advogado do escritório.

“O Michel sempre foi um excelente advogado. Nós aprendemos muito com ele sobre a maneira de advogar. Nós tínhamos vícios de professor: muita teoria, petições longas. O Michel, não: fazia petições breves, extremamente objetivas – ele escreve muito bem – e não ficava com negócio de citação. Juiz não gosta de citação. A única citação que o juiz admite é a de jurisprudência. Mas o jurista A, B, C, ele não se interessa a mínima, pois não quer perder tempo. E o Michel tinha consciência disso. Ele advogava admiravelmente bem, e nós procuramos ver a maneira como ele fazia para fazer igual”, disse Bandeira de Mello à ConJur.

Perfil conciliador                                                       

Já Dallari destaca que a habilidade de Michel Temer no trato com clientes, juízes e adversários trazia novos casos para o escritório e gerava acordos que, de outra maneira, seriam impossíveis de ser costurados. Isso se deve, diz, ao seu perfil conciliador. “O Michel nunca diz ‘não’. Ele, em princípio, ouve o que você fala, diz que é pertinente e tal, daí vai levando, sugere algo diferente. Ele tem um jeito de conciliar, de juntar, de procurar o ponto comum”, relata o especialista em Direito Administrativo.

Esses traços de personalidade contribuíram para a imagem de político que sempre transitou com facilidade entre grupos políticos antagônicos e sempre esteve próximo ao poder. Não por acaso, Temer foi três vezes presidente da Câmara dos Deputados (por dois mandatos seguidos, entre 1997 e 2001, durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso, e depois entre 2009 e 2010, com Lula presidente da República). Desde 2001 comanda ainda o heterogêneo PMDB, partido com o maior número de filiados no Brasil.  

Festa surpresa

Bandeira de Mello acredita que Michel Temer definiu-se perfeitamente quando declarou “não ter vocação para carro alegórico”. O especialista em Direito Administrativo diz que Temer — a quem considera seu melhor amigo — possui duas características marcantes: delicadeza e lealdade. Como exemplo desses atributos, cita a festa que o peemedebista organizou por ocasião de Bandeira de Mello ter virado professor emérito da PUC-SP.

“Nunca vou me esquecer dessa delicadeza. Ele poderia ter ficado ofendido por eu não tê-lo visitado em Brasília durante seus dois primeiros mandatos como presidente da Câmara – algo que não fiz porque tinha horror ao Fernando Henrique Cardoso –, mas entendeu minha posição, não se irritou e priorizou nossa amizade”. Até hoje, eles almoçam sempre que possível às sextas-feiras. Mudou apenas o lugar: enquanto antigamente comiam massas no restaurante do Masp, agora preferem a culinária francesa do Freddy, que fica no Itaim Bibi, em São Paulo.


Entre amigos, Temer é visto como bombeiro, pela capacidade de conciliar.

E o tal lado bombeiro de Temer também era muito usado na PUC-SP, relembra Paulo de Barros Carvalho, que ressalta ser “um admirador” do jeito dele. “O Ataliba e o Celso Antônio eram meio precipitados, e às vezes isso gerava atritos com o então senador André Franco Montoro [que também era professor da universidade]. Daí a gente convocava o Michel para resolver os atritos. Ele aparava as arestas e, no fim, o senador convidava todos para almoçar em Brasília. Ele tem o dom da mediação.”

Na academia

Michel Temer é lembrado como uma das cabeças por trás da criação de um inovador curso de especialização na PUC-SP. Funcionava da seguinte forma: os alunos eram divididos em grupos de 10 a 20 membros, e assistiam a uma aula magna de um convidado de peso, como o argentino Agustín Gordillo e o português Diogo Freitas do Amaral. Depois disso, tinham que debater questões preparadas pelos professores com o resto da classe. Desse processo, os mestres chegavam a conclusões que eram sumarizadas ao final das aulas.

“Esses cursos, como se diz hoje, ‘bombaram’”, afirma Paulo de Barros Carvalho. Ele e Geraldo Ataliba cuidavam do programa de Direito Tributário, Celso Antônio Bandeira de Mello e Adilson Dallari ficavam com o de Direito Administrativo, Thereza Arruda Alvim com o de Direito Civil, e Temer com o de Direito Constitucional.

Thereza assegura que o peemedebista, hoje com grandes possibilidades de assumir a Presidência da República, “sempre foi um excelente professor”. Barros Carvalho concorda, e afirma que os alunos gostavam muito dele, tanto por seu conhecimento técnico quanto por sua retórica envolvente. O vice-presidente também lecionou na Faculdade de Direito de Itu (SP), e foi diretor dessa instituição e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.

Procurador do estado

A aproximação com Franco Montoro levou Michel Temer à política de forma definitiva. Em março de 1983, quando Montoro assumiu o governo de São Paulo, ele nomeou seu companheiro de MDB procurador-geral do estado. Nos nove meses que permaneceu no cargo, Temer editou uma súmula administrativa para acabar com recursos repetitivos da Administração Pública, mediou acordos de fazendeiros e sem-terra e iniciou a elaboração da Lei Orgânica da PGE-SP.

Ele voltou ao cargo em abril de 1991, na gestão de Luiz Antônio Fleury Filho (PMDB), que considera “excelente” seu desempenho na PGE. Para o ex-governador, a medida mais importante de Temer no período foi a elevação da verba honorária nas execuções fiscais, que passou a ser paga em triplo aos procuradores. Outra iniciativa relevante foi a atribuição de status de Secretaria de Estado à Procuradoria.

De acordo com o ex-presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (Apesp) Nelson Lopes de Oliveira Ferreira Jr., Michel Temer também se saiu bem ao organizar o funcionamento interno da PGE e obter uma valorização salarial para a carreira. A seu ver, o vice-presidente foi um procurador-geral “extraordinário” por unir a capacidade técnica com a política.

Nas duas vezes que foi PGE, o peemedebista deixou o cargo para virar secretário de Segurança Pública de São Paulo. Em sua primeira passagem pela pasta, criou a Delegacia de Defesa da Mulher e os Conselhos Comunitários de Segurança. Já sua segunda gestão, iniciada seis dias após o massacre do Carandiru, em outubro de 1992, foi voltada para acalmar os ânimos na Polícia Militar, que estava sob intenso ataque pela morte de 111 presos. Depois, Fleury nomeou-o secretário de Governo, cargo equivalente a chefe da Casa Civil atualmente.

Formação jurídica

Segundo Michel Temer, o Direito influenciou na sua escolha de enveredar pela política pela possibilidade de se obter "fórmulas democráticas por meio de uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico". Para ele, essa formação ajuda-o no exercício de cargos públicos.

“O que eu digo sempre em palestras: nós, da classe jurídica, temos muitas condições para participar de um sistema democrático, porque nós estamos acostumados à contestação. A primeira peça que um advogado recebe quando inicia a carreira é uma contestação. O recurso tenta destruir a sentença, portanto, contesta as razões do juiz, do promotor, do inquérito policial. Então estamos muito acostumados à contestação. E a democracia é o regime da contrariedade, da contestação”, analisou em 2014, em entrevista à revista Fórum Jurídico.

Quem já conviveu com ele tem visão semelhante. Celso Antônio Bandeira de Mello opina que o conhecimento jurídico lhe dá uma visão mais ampla sobre a sociedade. Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, destaca seu domínio de Direito Público, que rege as atividades do Estado. Já Fleury — que hoje é advogado — argumenta que saber leis permite que Temer avalie os projetos públicos.

Também nesse sentido, Adilson Dallari assegura que Michel Temer jamais indicaria um membro do Ministério Público para ser ministro da Justiça, como Dilma fez primeiro com Wellington César Lima e Silva — que foi derrubado pelo Supremo Tribunal Federal — e depois com Eugênio Aragão, que também terá sua permanência no cargo decidida pela corte, uma vez que a Constituição veda que integrantes do órgão exerçam funções no Executivo.

Outra medida de Dilma que seu vice não tomaria, conforme Dallari, seria propor uma Assembleia Constituinte exclusiva para fazer uma reforma política, como Dilma sugeriu ao Congresso após as manifestações de junho de 2013. Na ocasião, a presidente enviou a proposta sem consultar o constitucionalista, que já havia classificado a ideia como inviável.

                                                                    
Temer foi eleito deputado constituinte em 1986 e reeleito para a Câmara cinco vezes.
Reprodução

Projetos de lei

Temer foi eleito deputado constituinte em 1986, e reeleito para a Câmara mais cinco vezes até assumir a vice-presidência, em 2011. Em seus mandatos, foi responsável por normas que impactaram também o meio jurídico.

Foi o autor dos projetos que viraram o Código de Defesa do Consumidor, a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/1995) e a antiga Lei de Combate ao Crime Organizado (Lei 9.034/1995).

Durante a elaboração da Constituição de 1988, atuou como representante dos advogados e dos procuradores. Conseguiu emplacar o artigo 133, que estabelece que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. 

“Num primeiro momento, havia a ideia de que era uma emenda, digamos, corporativista. Eu fiz a demonstração de que, num Estado democrático, o advogado é essencial à administração da Justiça porque ele é o sustentáculo dos direitos individuais. Direito a uma boa defesa, por exemplo”, explicou o peemedebista no livro Advocacia Pública – Apontamentos sobre a história da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo.

Com relação aos procuradores, Temer agiu para separar as atividades da Procuradoria da República, que era responsável pela defesa do Executivo Federal e por dar pareceres. Dessa forma, a Advocacia-Geral da União ficou com a primeira função, e a PGR com a segunda.

(Com a Conjur)

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