Durante muito tempo "Nas terras do rio sem dono", contando a luta dos trabalhadores de Governador Valadares, liderados pelo sapateiro Chicão, foi um dos meus livros de cabeceira. Agora vejo com satisfação que ele volta à tona na forma de documentário. Imperdível para quem acompanha a historia do Brasil.(José Carlos Alexandre)


                                                                             

      NAS TERRAS DO RIO SEM DONO - Parceria Aysso Filmes, Núcleo Cidade Futuro e Biosphera Cinema e Vídeo

              Um novo olhar sobre a ditadura e reforma agrária no Brasil

Um dos trabalhos recentes que estamos encaminhando é o documentário Nas Terras do Rio Sem Dono, e tem como objetivo retratar as reais razões que motivaram o Golpe Militar de 1964. Estas razões, embora muitos ainda não saibam, serie o inicio da Reforma Agrária no Brasil, que deveria ser impedida a qualquer custo, ou seja, acabou resultando no Golpe de 64. O Projeto do documentário foi viabilizado através do Núcleo de Projetos Cidade Futuro (setor audiovisual). E é baseado na obra literária de Carlos Olavo.

Arte inicial de divulgação do documentário

Talvez seja possível falar de nossa moderna ficção cinematográfica (talvez seja mais exato falar no plural, de nossas modernas ficções cinematográficas, porque a vontade comum gerou diferentes modelos de ficção) como forma(s) nascida(s) de um impulso documentário, da mesma forma podemos falar do moderno documentário cinematográfico (e de novo: melhor falar no plural) como forma nascida de uma vontade de ficção. 

Nas Terras do Rio Sem Dono é um dos muitos filmes documentários que retratam a questão da Reforma Agrária no Brasil, muitos antes já o Fizeram, como Terra Para Rose, Cabra Marcado para Morrer, ou mesmo Jenipapo e Rebelião em Milagro. Mas são raros os trabalhos que constroem uma ligação tão clara e intensa entre as razões que motivaram o inicio do Movimeno Sem Terra no país e o Golpe Militar de 64. 

O documentário faz todo o possível para não falar de memória: procura anotar de modo objetivo aquele exato fragmento de realidade que se encontra diante da câmera – mais exatamente: aquele exato fragmento de realidade que se movimenta empurrado pela presença da câmera, porque neste documentário a câmera age mais do que em qualquer outro: não se limita a observar, registrar e comentar a ação, ela cria a ação. 

Age como a câmera de um filme de ficção, age mais que a câmera de um filme de ficção: deflagra uma situação e participa dela, radicaliza a intervenção do cinema mesmo quando sua presença parece se reduzir à função de observador que não interfere na cena filmada. O cinema, bem precisamente a câmera, aqui deflagra a cena. Não controla a cena, mas deflagra a cena que logo escapa de seu controle e no processo termina por inverter os papéis. A câmera determina que a cena aconteça e ao acontecer a cena determina como a câmera deve se comportar. 

O fillme registra imagens mais ou menos assim como Graciliano anota na prisão as histórias dos outros presos politicos em Memórias do Cárcere. Depois, na montagem, procura guardar estas anotações com a espontaneidade do instante em que foram anotadas. Quer dizer: é assim mas não é assim tão simples. 

Eu, como realizador agi na montagem tal como agi durante a filmagem. Interferi sim, cortei, montei, organizei as imagens numa certa ordem e aqui e ali, por meio de uma narração ou comentário, o video então apresenta e explica algo da questão filmada ou do modo de filmar. Enquanto o filme está na tela o espectador nem sente esta interferência, porque se deixa levar principalmente pela ação viva dentro da imagem. É natural.


Não e possível saber ao certo – nem é importante saber ao certo – se a pintura é que mostrou ao cinema, através da experiência das colagens, que um pedaço de objeto qualquer arrancado do mundo e colado numa tela passa a ser duas coisas ao mesmo tempo: sem deixar de ser aquilo que é de verdade passa a ser aquilo que passou a ser depois de transformado em verdade artística.

Não é possível saber ao certo se a pintura ensinou ao cinema ou se o cinema aprendeu com a pintura. Mas certamente Braque e Schwitters, entre outros pintores, influíram no modo de ver de toda a gente ao colar num quadro um pedaço de jornal, ou de uma caixa de fósforos, ou de um maço de cigarros, ou de um rótulo de um produto qualquer. Toda a gente aprendeu então a ver cada coisa como duas, a coisa como ela é e a coisa como ela é na estrutura da obra. 

Na pintura do tempo do cinema, no cinema como na pintura o fragmento do real passou a ser percebido enquanto fragmento do real e enquanto parte de um quadro ou de um filme. A estrutura da obra retira o fragmento do real para transforma-lo num todo à parte. O filme interfere, compõe, manipula, e o espectador sabe que isto é natural. A construção cinematográfica pode levar o espectador diante do filme a sentir a imagem primeiro a realidade documentada e só depois como ela é documentada, primeiro a realidade como se ela estivesse lá, presença viva, e só depois como realidade artística; a sentir a imagem com naturalidade, como imagem não manipulada nem intermediada. 

Mas no cinema o fragmento que passa na tela vive de fato e como representação, a cena que parece viva ali como referência do que é vivo fora dela. Ver, no cinema, na pintura, no desenho, na gravura, em toda a construção feita para o olhar, não se limita a ficar preso ao imediatamente visível. E mais do que qualquer outro modo de fazer cinema, o documentário deixa os olhos do espectador livres para passear através das imagens presas ao que se passou no instante da filmagem para perceber, sentir, ver até além do que está imediatamente visível no quadro.

CONTEXTO HISTÓRICO DO DOCUMENTÁRIO NAS TERRAS DO RIO SEM DONO
                                                                      
O livro Nas Terras do Rio Sem Dono, que deu origem ao documentário, foi baseado em fatos reais ocorridos em Minas Gerais, na cidade de Governador Valadares. o livro foi feito como uma ficção inspirada num fato real, a luta pela terras, os grileiros e posseiros da região, mortes, e repressão. A maioria do documentário retrata este periodo através de fotos e imagens antigas, mantendo o padrão predominante em preto e branco, que só é quebrado pelo momento das entrevistas. 

O filme é feito dos encontros com o jornalista e autor do livro Carlos Olavo, fundador do jornal O Combate, que lutava fortemente a favor de uma imprensa livre, e a favor dos mais fracos. Também estão presentes outros entrevistados que participaram dos movimentos políticos e/ou testemunharam o período. O documentário, assim, é um filme sobre um livro de ficção baseado em fatos reais e principalmente, sobre o que se passou com os camponeses retirados de suas terras, e os coronéis repressores. 

Carlos Olavo, atua como um guia através dos acontecimentos, dentro da imagem, autor e personagem da história, conversa com pessoas da época, e vai em busca de pessoas reais, que inspiraram seus personagens,  que para fugir de perseguições políticas mudaram de nome. O filme se ocupa de gente comum e a história que ele nos conta pode ser apanhada pelos olhos do espectador, numa certa medida, como uma outra representação do impulso que gerou o cinema do instante em que a filmagem de Nas Terras do Rio Sem Dono foi realizada, e o livro original concluído.

 As Ligas Camponesas vinham sendo criadas desde meados dos anos 50 com o objetivo de conscientizar e mobilizar o trabalhador rural na defesa da reforma agrária. Durante o governo de João Goulart (1961-64), o número dessas associações cresceu muito e, junto com elas, também se multiplicavam os sindicatos rurais. Os camponeses, organizados nessas ligas ou em sindicatos ganharam mais força política para exigir melhores condições de vida e de trabalho. 

A renúncia de Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, após apenas sete meses de governo, abriu uma grave crise política, já que seu vice, João Goulart, não era aceito pela UDN e pelos militares, que o acusavam de promover agitação social e de ser simpático ao comunismo. Assim como esses setores eram contrários à posse de Jango, existiam outros que defendiam o cumprimento da Constituição, como o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. 

O impasse foi resolvido com a adoção do regime parlamentarista de governo, aprovado pelo Congresso. Com esse regime, Jango era apenas chefe de Estado, sendo que o poder efetivo de decisão estava nas mãos de um primeiro-ministro escolhido pelos deputados e senadores. Diante da crise econômica, o regime parlamentarista imposto pelos conservadores, se mostrava ineficiente, com a sucessão de vários primeiros-ministros, sem que a crise fosse atenuada. 

Esse cenário fortalecerá o restabelecimento do presidencialismo, conquistado através de um plebiscito em 6 de janeiro de 1963. Reassumindo a plenitude de seus poderes, Jango lançou as reformas de base apoiadas por grupos nacionalistas e de esquerda.. Elas incluíam a reforma agrária, a reforma do sistema bancário, a reforma tributária e a reforma eleitoral. 
                                                                       
Muitos comícios foram organizados em apoio às reformas, destacando-se um comício-gigante realizado na Central do Brasil do Rio de Janeiro em 13 de março (foto). A mobilização popular nos comícios assustava as elites que, articuladas com as forças armadas e apoiadas pelos setores mais conservadores da Igreja, desferiram um golpe de Estado em 31 de março de 1964. 

No dia seguinte, o controle dos militares sobre o país era total e, no dia 4, Goulart se auto-exilou no Uruguai, sem impor qualquer resistência aos golpistas, temendo talvez o início de uma guerra civil no país. Iniciava-se assim um dos períodos mais obscuros da história do Brasil, com 21 anos de ditadura militar que promoveu uma violenta onda de repressão sobre os movimentos de oposição, além de ter gerado uma maior concentração de renda, agravando a questão social, produzindo mais fome e miséria. Os "anos de chumbo" da ditadura ocorreram após o AI5 (Ato Institucional número 5), no final do governo Costa e Silva (1968), estendendo-se por todo governo Médici (1969-1974).

Carlos Olavo da Cunha Pereira 
                                                                  

Por Fernanda Melo, Núcleo Cidade Futuro)

Nascido em 16 de março de 1923, em Abaeté, Carlos Olavo da Cunha Pereira teve a política presente em sua vida desde o berço. Embalado pelas histórias que ouvia de seu avô, senador da República, e do pai, deputado federal, foi formado numa família marcada pela intensa atuação política; o irmão Simão da Cunha Pereira foi deputado por vários mandatos. Quando jovem, à época residindo em Juiz de Fora, abandonou o curso de Odontologia faltando dois meses para concluí-lo, para mergulhar na Campanha “O Petróleo é Nosso”, que culminou na criação da Petrobras. 

Entrou para a militância política e iniciou as atividades profissionais no Jornalismo, na Belo Horizonte da década de 1940. Carlos Olavo atuou no Jornal do Povo, de Belo Horizonte, comprometido com lutas sociais e políticas de esquerda. Por esse motivo foi destacado para desenvolver uma série de reportagens especiais no Vale do Rio Doce onde cresciam os conflitos rurais por causa dos despejos em massa de posseiros.

O Jornal do Povo encerrou suas atividades e Carlos Olavo decidiu se transferir para Governador Valadares, onde havia realizado as reportagens sobre a região do rio Doce, com ampla repercussão. Era meados da década de 1950, Carlos Olavo decidi criar o jornal satírico O Saci, que levava no cabeçalho a figura do moleque travesso sentado em frente a uma máquina de escrever. 

Fala de todos, não briga com ninguém, era seu slogan. Lentamente, a luta pela terra, o assassinato de posseiros, a exploração dos trabalhadores urbanos, a violência urbana, as ações policiais arbitrárias e a corrupção de políticos foi transparecendo nas páginas do jornal. O Saci já não correspondia às intenções da linha editorial do jornal. 

Um concurso público foi promovido junto à população e, eis que surge um novo nome para o jornal: O Combate. O jornal era “desabusado”, como gosta de afirmar seu idealizador. Publicava sem censura o que ocorria na cidade e região, estampando as fotos dos mandantes dos crimes de latifúndio. As ameaças eram muitas, mas os apoios maiores ainda, com muita propaganda do comércio e uma tiragem expressiva, o jornal se mantinha com saúde financeira e independência política. 

Quando a edição semanal chegava às bancas, na manhã de domingo, era disputada e rapidamente se esgotava. As tensões cresceram muito com o anúncio das Reformas de Base pelo presidente João Goulart. No início de março de 1964, os fazendeiros locais pregavam abertamente contra a possibilidade de ser efetivado o decreto da Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA) e a execução do plano piloto da reforma agrária na Fazenda do Ministério. 

O presidente perdia apoio por causa da decisão de desapropriar as terras não produtivas às margens de rodovias, ferrovias e açudes federais com o objetivo de destiná-las aos trabalhadores rurais para se efetivar a reforma agrária no País. A atuação d’O Combate foi interrompida exatamente no dia 31 de março de 1964, quando teve sua sede praticamente destruída por um grupo paramilitar a serviço de setores latifundiários locais. 

O referido episódio foi possível porque o Golpe Militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, implantou uma ditadura e acabou com as liberdades sindicais. O governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, mandou a Polícia Militar dar proteção e retirar Carlos Olavo, que deixou Governador Valadares juntamente com o Chicão, líder dos trabalhadores rurais e posseiros. 

Carlos Olavo foi levado para Belo Horizonte, deixando sua esposa e filhos em Governador Valadares. De Belo Horizonte, rumou para Brasília, sob a proteção de seu irmão, o deputado federal Simão da Cunha. Depois, seguiu para o exílio na Bolívia, onde trabalhou como jornalista para a campanha de Paz Estenssoro, eleito em agosto de 1964, porém, derrubado por golpe militar em novembro do mesmo ano.  

Em seguida, Carlos Olavo foi para o exílio no Uruguai, onde terminou o livro Nas Terras do Rio Sem Dono. Ao retornar ao Brasil, em 1979 (Lei da Anistia), trabalhou em alguns jornais da capital e foi assessor de imprensa do antropólogo Darcy Ribeiro, durante sua curta passagem como Secretário de Estado da Educação de Minas Gerais; assumindo depois o cargo de jornalista da Imprensa Oficial Mineira. Após longos anos separado da família, Carlos Olavo vive atualmente em Belo Horizonte, na companhia de sua esposa, Dona Zuca, e de sua filha mais velha, Tânia Mara da Cunha Pereira, tendo sempre por perto os outros filhos e netos. Os muitos episódios da disputa pela terra no Vale do Rio Doce foram imortalizados no romance Nas Terras do Rio Sem Dono, publicado em 1988.

Créditos: Texto e Revisão - Fernanda Melo - Edição - Haruf Salmen

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